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Caminhos doutrinários para uma sociedade aberta (primeira parte)

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Este artigo foi publicado originalmente no blog do autor. 

A atual pandemia obrigou-nos a mudarmos o ritmo de vida. Aproveitei o ensejo para escrever e pôr em dia antigos trabalhos iniciados, mas que, pela correria do dia a dia, deixei inconclusos. A crise pandêmica obrigou todos os países, e o Brasil não é exceção, a reformularem as suas políticas internas, como se estivéssemos numa guerra. E, como em crises anteriores, e faço referência específica à crise econômica de 1929, obrigou-nos a pensar o papel do Estado e das nossas instituições.

Não há dúvida de que o Estado é a instância social com que contamos para fazermos frente ao repto que se nos apresenta. Da sua eficiência dependem as políticas públicas, na área da saúde, para conseguirmos dar um passo à frente, sem comprometermos a sobrevivência da nossa sociedade. Lembro que, logo após a primeira Guerra Mundial, lorde John Maynard Keynes (1883-1946) escreveu, quando regressou de participar, como representante do Tesouro Britânico, da Conferência de Paz de Versalhes, um livrinho instigante: As consequências econômicas da paz (1919), em que colocava que, após o conflito mundial, o mundo não seria mais o mesmo, em termos de modelo econômico. Sendo professor de Economia em Cambridge, fundou, para os seus alunos debaterem com ele as novas condições mundiais, o “Clube de Economia Política”, em que destacava a necessidade de pensar as políticas econômicas, à luz dos novos acontecimentos, que deitaram por terra a credibilidade da economia alicerçada no singelo laissez fairismo de fins do século XIX. Estava plantada a semente da magna obra que possibilitaria, ao Capitalismo, superar as crises cíclicas e enveredar por um novo caminho, que abriria as portas para a reconstrução da Europa, após a Segunda Guerra Mundial, cujos começos se situam no clima de crise das instituições que afetou ao mundo após a Primeira Guerra. Faço referência específica à obra de Keynes, intitulada: Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro (1936). Era necessário restabelecer o equilíbrio da economia e, para isso, tornava-se necessária a intervenção temporária do Estado, a fim de garantir o pleno emprego e evitar a falência generalizada, como a ocorrida em 29.

Algo semelhante estamos a enfrentar, ao ensejo da pandemia que nos assola. É necessária uma “economia de guerra”, em que o Estado invista fortemente nos meios para controlar a doença universal. Mas, como nos tempos de Keynes, trata-se de uma intervenção passageira. Não podemos desengarrafar o gênio do intervencionismo, para, depois, deixarmos o estatismo flutuando irresponsavelmente no ar. São necessárias medidas para que a sociedade retome a sua iniciativa e parta para controlar o velho estatismo, uma vez solucionadas as questões emergenciais na área da saúde. A minha hipótese é que, só à sombra do debate inspirado pelas ideias liberais, será possível colocarmos, novamente, a casa em ordem. Lembremos que o gênio do intervencionismo estatal foi desengarrafado, de forma irresponsável, num contexto de cientificismo gramsciano, pelo PT, ao longo dos quase quinze anos de mandatos petistas, que deram ao traste com a saúde da economia do país. O esforço hodierno, portanto, deve ser redobrado, não somente para esconjurar o militante intervencionismo petista, como, também, para corrigir os excessos do intervencionismo “de guerra”, que a pandemia nos obrigou a colocar em funcionamento.

Neste artigo serão desenvolvidos os seguintes itens: I – A pesada herança do ciclo lulo-petista e o repto do estudo do Liberalismo. II – Núcleos atuais para o estudo do Liberalismo no Brasil. III – Entrevista à Revista do Clube Militar do Rio de Janeiro, publicada em agosto de 2016, com o seguinte título: “Sociedade brasileira e Patrimonialismo: as janelas para a democratização brasileira”.

I – A pesada herança do ciclo lulo-petista e o repto do estudo do Liberalismo.

O Brasil, após 13 anos de lulopetismo no poder, poderia ter afundado no socialismo bolivariano. Isso, certamente, se Lula e os seus seguidores pautassem, eles sozinhos, os rumos da sociedade. Os lulopetistas ocuparam setores essenciais do Estado, numa ação progressiva que se desenvolveu ao longo das três últimas décadas. O aparelhamento petista da máquina pública começou antes da eleição de Lula, mediante a ocupação de cargos de chefia nos ministérios, nas universidades, nas redes oficiais de ensino básico e fundamental, nos Municípios e nos Estados, nas empresas estatais e nos sindicatos.

Até a Igreja Católica abriu as portas à militância petista, ao aderirem, não poucos bispos e padres, à teologia da libertação, tendo passado a fazer dos templos lugar de reunião e fortalecimento dos sindicatos. Nisso os petistas foram muito disciplinados, como no fato de pagarem, religiosamente, o dízimo ao Partido, uma vez empossados em funções burocráticas. Mas eles estão longe, muito longe, de fazer com que o Brasil, como um todo, aceite esse modelito defasado, afinado com o que de mais atrasado há no mundo da política e consolidado, no nosso país, ao ensejo da pérfida colaboração entre militância lulopetista, políticos tradicionais corruptos e empresários cooptados pelo PT.

Como frisava o mestre Antônio Paim, no seu livrinho intitulado: Para entender o PT , o Partido dos Trabalhadores é a maior manifestação do espírito patrimonialista na cultura brasileira. Nos seus quase quinze anos de mandato, o Partido tratou o Brasil como propriedade privada dos donos da legenda, Lula, Dilma e amigos. Eles, simplesmente, cuidaram para que o Estado fosse o seu instrumento de privatização do espaço público, em benefício da sigla partidária, com exclusão dos que se opusessem. Foi uma ação sistemática de ocupação e de aparelhamento, tendo utilizado a filosofia gramsciana, como alicerce doutrinário, para a empreitada. O PT não teve dúvidas em utilizar todas as táticas de intimidação, desde o patrulhamento e a calúnia, até a eliminação dos militantes que ousassem se desviar dos interesses dos chefões. Os assassinatos de Celso Daniel (1951-2002) e de Antônio da Costa Santos (1952-2001), Toninho do PT, são prova disso. Esses atos de terrorismo lembram as conhecidas “purgas” com que os comunistas castigavam dissidentes, no reinado de Lenine e Stalin, na Rússia bolchevique, ou a eliminação de críticos e oposicionistas, na China de Mao.

No trabalho de marxistização no ensino básico, fundamental e secundário, foi de grande valia a ajuda de pedagogos socialistas, como Paulo Freire (1921-1997). Ele, de fato, embora tivesse recebido a influência dos teóricos da Escola Nova e da filosofia personalista de Emmanuel Mounier (1905-1950), terminou se afinando com o ideal do marxismo cultural na América Latina e com a tentativa de implantar esse modelo no Brasil, com a ajuda da doutrinação de pedagogos e alunos.

Nos anos setentas, em Paris, Paulo Freire dirigia o Instituto Ecumênico para o Desenvolvimento dos Povos (Institut Oecumenique pour le Développement des Peuples – INODEP), uma fundação que acolhia militantes de organizações guerrilheiras latino-americanas, com a finalidade de intercambiar experiências no combate ao capitalismo, com financiamento do Conselho Mundial de Igrejas. Eu próprio, militante de esquerda, em 1972, recebi bolsa para passar um ano em Paris, no mencionado Instituto. Terminei renunciando à bolsa, sendo que a minha esposa de então fez o mesmo, para proteger dois conhecidos tupamaros que fugiam, na Colômbia, da repressão desatada pelo governo de Jorge Pacheco Areco (1920-1998) no Uruguai. Eles passaram um ano na França, como alunos do Instituto dirigido por Paulo Freire. O mencionado pedagogo acreditava no valor da luta armada para implantar o socialismo. A sua “pedagogia libertadora” não era, apenas, pedagogia. Era doutrinação, com abertura para a luta guerrilheira.

Contra a tentativa hegemônica petista e reagindo, também, contra a farta divulgação do pensamento marxista no sistema de ensino, incluindo aí as universidades, começaram a aparecer, ao longo dos últimos vinte anos, organizações de jovens que buscavam ares menos contaminados. É particularmente visível, no meio universitário, essa reação. Embora o grosso do professorado esteja constituído por docentes afinados com o pensamento de esquerda, os jovens buscam alternativas ideológicas, se destacando, entre elas, o pensamento liberal. Na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde lecionei até maio de 2013, notei isso. Para responder a essa preocupação da nova geração, criei, ali, vários espaços em que o pensamento liberal tinha lugar importante. Menciono-os: o Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, que coordenei até final de 2018; o Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos; o Núcleo de Estudos sobre o pensamento de Madame de Staël e o Liberalismo Doutrinário; o Núcleo Tocqueville-Aron para o estudo das Democracias Contemporâneas. Ao redor de todos esses pequenos centros de pensamento e pesquisa, reuniram-se alunos da UFJF e de outras Universidades e centros de estudo do Brasil.

Dessas iniciativas surgiram várias realizações acadêmicas, sendo a primeira o Portal Defesa (www.ecsbdefesa.com.br) sob a direção do professor Expedito Bastos, que divulgava as análises desenvolvidas pelos membros do Centro de Pesquisas Estratégicas. A segunda realização foi concretizada nas revistas eletrônicas Ibérica (www.estudosibericos.com) e Cogitationes (www.cogitationes.org), ambas coordenadas por dois alunos do Curso de Filosofia da UFJF, Alexandre Ferreira de Souza e Marco Antônio Barroso. Essas publicações arejaram o ambiente rarefeito da cultura universitária, discutindo propostas liberais e liberais-conservadoras, bem como analisando temas relativos à história da cultura ocidental. Pena que o Portal Defesa, ao ensejo da aposentadoria do seu diretor, o professor Expedito Bastos, foi fechado pela direção da Universidade Federal de Juiz de Fora, em dezembro de 2019, após 14 anos de funcionamento. O espírito de abertura a todas as correntes de pensamento e o compromisso com o estudo diuturno das necessidades estratégicas do Brasil, incomodaram à direção da mencionada Universidade.

Particular impacto causaram-me os Encontros de Estudantes de Relações Internacionais. Participei de dois desses eventos, o realizado em Ribeirão Preto, São Paulo, em 2009 (quando apresentei uma análise do fenômeno do neopopulismo na América Latina) e o promovido pelo Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, e que teve lugar de 19 a 22 de Setembro de 2013, quando proferi palestra com o título: “Tocqueville e a agitação das ruas”. Em ambos os eventos, o primeiro de caráter nacional (com mais de dois mil participantes) e o segundo de alcance regional (com 400 participantes), fiquei impressionado com o interesse dos alunos pelos temas relacionados com a filosofia liberal. Percebo que os estudantes dos cursos de Relações Internacionais (que já passam da centena, cobrindo o Brasil de sul a norte) são, especialmente, sensíveis ao atraso representado pelo nosso Estado patrimonial, tacanhamente confinado nos limites ideológicos de uma geopolítica de esquerda e afinado, na era lulopetista, com o chavismo bolivariano.

Duas tarefas inadiáveis vejo, como necessárias, para que frutifique o trabalho destes grupos de jovens liberais: em primeiro lugar, aprofundar no conhecimento sistemático dos clássicos do liberalismo, tanto dos iniciadores dessa corrente na Europa (Locke, Kant, Montesquieu, Tocqueville, Benjamin Constant, Madame de Staël e os Doutrinários franceses, etc.), quanto dos liberais americanos, os chamados Patriarcas fundadores das instituições republicanas nos Estados Unidos. O estudo dos clássicos deve, evidentemente, abranger, também, os pensadores da Escola Austríaca e as suas fontes ibéricas, que se remontam às teses da soberania popular, especialmente no pensamento do maior filósofo espanhol do século XVII, o padre Francisco Suárez (1548-1617), cuja obra: De legibus ac de Deo legislatore (= Sobre as leis e Deus legislador) (1613) deveria ser traduzida e publicada no Brasil.

No caso dessa corrente, deveriam ser estudados os textos dos fundadores do Instituto Liberal, Og Leme (1922-2004) e Donald Stewart Jr. (1931-1999), os ensaios de Roberto Fendt (1944), ex-presidente do Instituto, a obra do mais importante historiador das ideias econômicas da Escola Austríaca entre nós, Ubiratan Jorge Iorio (1946), os escritos do jovem economista Rodrigo Constantino (1976), e as fundamentadas análises feitas por dois scholars, professores da UFRJ, no terreno daquilo que convencionou-se em chamar de “modéstia epistemológica” do Liberalismo: Alberto Oliva (1950) e Mário Guerreiro (1944).

Esse esforço teórico teria de se alargar, no âmbito ibérico e ibero-americano, ao estudo dos pensadores que se debruçaram sobre as fontes liberais, projetando-as sobre a nossa realidade. Ressalta, aqui, a figura de José Ortega y Gasset (1883-1955), na Espanha, e a de Fidelino de Figueiredo (1888-1967), em Portugal. No caso latino-americano, sobressaem nomes como os de Antonio Caso (1883-1946) e Daniel Cossío Villegas (1898-1976), no México. Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), na Argentina. José Maria Samper (1828-1888), Rafael Núñez (1825-1894), Carlos Lleras Restrepo (1908-1994) e Otto Morales Benítez (1920-2015), na Colômbia, e o prêmio Nobel peruano Mario Vargas Llosa (1936).

No caso brasileiro, deveriam ser estudados Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Hipólito José da Costa (1774-1823), Paulino Soares de Sousa (1807-1866), Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-1875), Rui Barbosa (1849-1923), Tobias Barreto (1839-1889), Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), Gaspar da Silveira Martins (1835-1901) e, na realidade atual, Miguel Reale (1910-2006), Antônio Paim (1927), Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999), José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017), José Guilherme Merquior (1941-1991), Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007) e Vicente de Paulo Barreto (1939), para citar, apenas, autores pioneiros.

Uma segunda linha de trabalho deveria ser abarcada pelos jovens liberais: projetar, sobre a realidade brasileira contemporânea, as luzes da luta em prol da liberdade, defendida, com denodo, pelos clássicos do pensamento filosófico e político que acabo de mencionar, a fim de enxergar soluções para os grandes problemas que afetam às nossas instituições republicanas. Sílvio Romero (1851-1914), o fundador da sociologia brasileira, afirmava que, em matéria de pensamento social e político, não há monocausalismos. A reflexão que proponho sobre a realidade brasileira deveria ser efetivada, portanto, de maneira monográfica, abarcando os três grandes aspectos que se entrecruzam na sociedade: o cultural, o político e o econômico. Cada um desses aspectos é essencial e não pode se sobrepor aos outros. Surgirá dessa reflexão, com certeza, uma agenda liberal para ser implementada na luta político-partidária, sem a qual não se consegue pôr em prática os nossos ideais, para termos uma sociedade com instituições que defendam a liberdade e não a ameacem, como acontece atualmente.

Os estudos sobre as fontes do Liberalismo e a sua expressão, no Brasil, deveriam ser complementados com a análise diuturna da história da nossa formação social, à luz dos postulados da Escola Culturalista presentes na corrente do Culturalismo Sociológico. Quanto aos acervos onde se podem encontrar as obras dos clássicos brasileiros, recomendo, aos jovens estudiosos, o Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (www.cdpb.org.br), organizado em Salvador, na Bahia, pelo professor Antônio Paim. Esse acervo encontra-se na Universidade Católica de Salvador, sob os cuidados da presidente do Centro, a professora Dinorah d´Araújo Berbert de Castro (1933). Recomendo, igualmente, o acervo digital do Instituto de Humanidades, para aqueles que buscam se familiarizar com as fontes do liberalismo clássico (www.institutodehumanidades.com.br).

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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