Um dos preceitos básicos do esquerdismo é o de que os indivíduos (ou pelo menos a maioria deles) são incapazes de dirigir suas próprias vidas. No terreno coletivo, impera a crença de que as organizações humanas carregam imperfeições que lhes são intrínsecas, geradoras de muitos conflitos e desequilíbrios, cujos ajustes exigem a permanente interferência do Estado, seja em sua forma protetora ou provedora. O corolário obrigatório desse pensamento é que as soluções para os problemas sociais passam, necessariamente, por uma boa dose de autoritarismo.
Fora da ação impositiva dos governos, parece-lhes improvável que as sociedades disponham de instituições capazes de resolver conflitos e, ao mesmo tempo, fomentar a cooperação. Não lhes ocorre que pessoas absolutamente diferentes no que diz respeito às suas habilidades, religiões, raças, etc. sejam perfeitamente aptas a cooperar, produzir, negociar e comerciar voluntariamente, gerando sempre maiores níveis de bem-estar.
Nunca é demais lembrar que foi a interação espontânea entre os indivíduos o grande motor do progresso humano, desde as cavernas até a civilização como a conhecemos hoje, e não a clarividência de meia-dúzia de planejadores engajados. Aliás, ao contrário do que pensam estes, a excessiva regulamentação das relações sociais, não raro voltada a resolver conflitos que muitas vezes só existem nas suas imaginações, acaba sempre gerando animosidades reais. É assim, por exemplo, com as questões trabalhistas, raciais, sexuais e outras oriundas da dogmática luta de classes.
Como Platão, a esquerda confia na superioridade natural de certos homens, os quais, como se fossem ungidos com dons especiais, devem ficar encarregados de guiar os demais na busca de ideais superiores e do bem comum. Quantos exemplos de regimes bárbaros, produzidos a partir das mais belas e pungentes intenções, a história da humanidade já nos forneceu?
Só o século XX encontra-se repleto deles, mas pelo que temos assistido, especialmente na América Latina, ainda não aprendemos a lição, sendo urgente, portanto, rememorá-la.
No início, o processo de instalação da tirania se desenvolve no terreno cultural e envolve altas doses de hipocrisia e mentira. Nesse contexto, a redefinição de certo vocabulário chave é imprescindível. Termos caros à maioria dos homens de bem, como liberdade, propriedade, democracia, direito, justiça e igualdade são usados amiúde com significados absolutamente diversos dos originais – exatamente como na célebre “novilíngua”, descrita por George Orwell no romance “1984”. Não por acaso, quanto mais ameaçada pelo autoritarismo encontra-se uma sociedade, mais ela convive com expressões do tipo: “justiça social”, “propriedade solidária”, “democracia radical”, dentre outras.
Quando as ações arbitrárias tornam-se corriqueiras, especialmente as perpetradas contra os direitos individuais elementares (vida, liberdade e propriedade), a justificativa ideológica subjacente é a de que, nas sociedades organizadas politicamente, o consentimento de cada indivíduo aos poderes normativos da maioria é, de certa forma, expresso, originado de um tal “contrato social”. Desse modo, quando por exemplo o governo tira do ar canais de TV, expropria empresas ou impõe tabelamentos de preços e salários, estes atos não seriam propriamente agressões ao direito de propriedade, mas simples rearranjos de certas concessões que o definem. Implicitamente, portanto, a propriedade privada seria uma mera coleção de permissões (a título precário) que o Estado outorga aos cidadãos, e nada além disso.
No âmbito das leis, “o caminho da servidão” – cujo mapa foi exaustivamente traçado pelo grande economista austríaco (Prêmio Nobel de 1974) F. V. Hayek – passa pela freqüente conversão de velhos clichês em normas legais. O exemplo clássico é aquela famosa cláusula, amplamente utilizada em constituições de matiz socialista, que subordina toda e qualquer propriedade a uma hipotética “função social”. O perigo por trás desse disparate é idéia de que qualquer coisa que você porventura possua, inclusive a força do próprio trabalho, na verdade pertence ao Estado, e é “sua” somente no sentido de que os “príncipes eleitos” delegam a você certos privilégios temporários em relação a ela.
Publicado em O Globo no dia 08/01/2008 |