fbpx

Bastiat, “A Trapaça”, Custo de Oportunidade, Guerras, Impostos e Outras Considerações

Print Friendly, PDF & Email

RAFAEL SALOMÃO AGUILLAR*

O filme “A Trapaça” (American Hustle, 2013) recebeu, há pouco tempo, bastante atenção do público, por ter vencido o Globo de Ouro de Melhor Filme de 2014 e por ter sido indicado para esta mesma e ainda para outras categorias do Oscar de 2014. Nesta película, chamou-me particularmente a atenção uma de suas primeiras cenas, na qual se começa a contar a história de vida do personagem interpretado por Christian Bale. Na referida sequência, o jovem futuro “trapaceiro”, filho do vidraceiro local, passa os dias a jogar pedras e a quebrar as vidraças dos comerciantes da região, a fim de beneficiar os negócios do pai com o aumento da demanda por novas vitrines.

Ao ver essas cenas, na sala de cinema lotada, imediatamente lembrei-me da “parábola da janela quebrada”, do economista francês Frédéric Bastiat, e me perguntei: será que as pessoas aqui presentes ainda acreditariam na falácia? Vale dizer, o menino quebrou os vidros, logo, criou uma necessidade que antes não havia de repô-los, e, desse modo, “girou a roda da economia”, pois aumentou a demanda pelo trabalho dos vidraceiros, gerando, assim, mais empregos e renda, a qual será gasta pelos vidraceiros e seus fornecedores e empregados em outros setores da economia. Todos, então, saem ganhando. Ou será que não?

Para refutar esse lugar-comum, fonte de inegáveis desventuras, Bastiat escreveu, na primeira metade do século XIX, o célebre panfleto Ce Qu’on Voit Et Ce Qu’on Ne Voit Pas (“O se vê e o que não se vê”) 1, expressando uma ideia que hoje é mais comumente identificada com o conceito de custo de oportunidade. O enriquecimento do vidraceiro e os seus desdobramentos, afirma Bastiat, constituem o efeito visível e imediato do fato de as vitrines terem sido quebradas (aquilo que se vê), mas escondem dos desatentos os outros efeitos e as consequências a longo prazo do fenômeno (aquilo que não se vê).

Com efeito, o que não costuma ser observado é o que o vidraceiro teria feito com o dinheiro caso não tivesse que gastá-lo com a reparação da janela quebrada. Trata-se do custo de oportunidade que ele teve que suportar pelo evento inesperado. Ele poderia ter comprado um livro ou um par de sapatos, por exemplo. Assim, ele teria uma vitrine e um livro ou uma vitrine e um sapato. Mas agora terá apenas uma vitrine. Não há dúvidas de que, graças ao acidente, o vidraceiro enriqueceu e seu negócio recebeu um estímulo; mas isso ocorreu à custa do empobrecimento do dono da loja cuja vitrine foi estilhaçada. Ele deixou de poder gastar seu dinheiro com outras coisas, em outros setores da economia, porque teve que consertar seu vidro, o que fez com que esses outros setores deixassem de receber esses estímulos, indevidamente desviados para a produção de vidros. O resultado no longo prazo é o empobrecimento geral da economia, prejudicando a todos, pois os recursos, de matéria-prima e de mão de obra, que poderiam estar sendo usados em outras atividades produtivas que atendessem aos desejos dos consumidores, são desviados para a indústria dos vidros. Esses recursos são desperdiçados e o empobrecimento geral da economia é causado pela destruição dessas riquezas (há menos vidros, carência esta que terá que ser suprida com a produção de novos vidros, os quais, em condições normais, não teriam sido produzidos, liberando, assim, recursos para outros setores da economia).

As implicações e possíveis aplicações da falácia revelada por Bastiat nesta ilustração simples são inumeráveis. Tomem-se as guerras, por exemplo. É muito comum aprendermos na escola que os conflitos armados são benéficos para a economia, pois os gastos militares estimulam diversos setores produtivos, gerando empregos e desenvolvendo tecnologia. Isso nos faz pensar, como alguém pode em sã consciência conceber que a destruição, resultado inevitável de uma guerra, pode ser algo positivo? Ora, se as guerras fossem benéficas para a economia, eis uma sugestão para Brasil e Argentina: cada um deveria construir, todo ano, uma enorme frota de encouraçados de guerra e, numa determinada data combinada entre as partes, as duas marinhas se encontrariam no Atlântico e afundar-se-iam mutuamente 2. Pronto, os dois países estariam mais ricos agora, porque afundaram toneladas de aço no oceano.

Mais uma vez, Bastiat chama a atenção nesse caso para aquilo que não se vê: os gastos militares são financiados com impostos, isto é, com a riqueza e os bens extraídos da população. Sendo assim, todo o dinheiro que é gasto pelos militares estaria, de outra forma, nas mãos do povo, sendo investido em outros produtos e serviços, certamente mais úteis para a sociedade e para os consumidores do que tanques e caças. Não há dúvidas de que a indústria de armamentos, entre outras que sejam fornecedoras das forças armadas, sejam beneficiadas por uma guerra; mas os recursos que vão para elas estão, na verdade, sendo desviados, pois os indivíduos teriam gastado esses recursos em outras atividades de seu interesse, gerando igualmente empregos e renda nesses outros setores da economia (ao invés de alocá-los na produção de munição e explosivos, que, numa guerra, destroem as riquezas já existentes e acumuladas no passado, como no caso das janelas quebradas). Isso tudo, claro, para não contar as demais intervenções e distorções tradicionalmente causadas pelo estado em tempo de guerra, tais como o racionamento de bens essenciais, como combustíveis, o controle de preços e a elevação não natural da demanda por determinados bens, provocando aumentos no preço, como no caso aço.

No campo dos gastos militares, Thomas Woods, citando Seymor Melman, trata do caso pitoresco dos Estados Unidos, cujas forças armadas notoriamente possuem o orçamento mais dilatado do mundo:

Nos anos 1960, o governo dos EUA, apenas com as suas aeronaves e mísseis estratégicos, era capaz de liberar o equivalente a 6 toneladas de TNT em poder de explosão para cada pessoa na Terra. “Agora que nós temos 6 toneladas de TNT por pessoa, apenas nas nossas aeronaves e mísseis estratégicos”, questionava-se Melman, “será que nós ficamos mais seguros do que quando nós tínhamos apenas 1 tonelada de TNT por ser humano na Terra?” O trabalho, o tempo e outros recursos que foram usados para produzir esse excesso de material explosivo foram pagos com impostos extraídos da população produtiva e desviados da criação de bens civis 3. [Tradução livre]

Da mesma forma que na guerra, já estamos mais do que acostumados a ouvir diuturnamente, sempre que uma catástrofe natural acontece, que os seus efeitos serão benéficos para a economia local, já que os esforços de reconstrução vão gerar milhares de empregos e movimentar a economia local. Por isso, devemos ficar contentes com furacões, terremotos e enchentes, pois todos eles geram incontáveis empregos. Keynesianos em ação….

No panfleto em comento, Bastiat também analisou ironicamente o uso de obras públicas para gerar emprego, ainda em pleno começo do século XIX, muito antes, portanto, do New Deal e doutrinas afins:

O sofisma que combato aqui é ainda mais perigoso quando aplicado às obras públicas, porque serve para justificar os projetos e as prodigalidades mais estapafúrdios.  Quando uma estrada de ferro ou uma ponte têm uma utilidade real, basta invocar essa utilidade.  Mas se tal não é possível, o que fazer?  Recorre-se a esta mistificação: “É preciso arranjar trabalho para os operários”.4

Ora, se o objetivo é apenas gerar empregos, ao invés de produzir riqueza, Bastiat se perguntou, então por que o governo simplesmente não contrata os trabalhadores para escavar e recavar o Champ de Mars, em Paris, eternamente? 5 Teríamos pleno emprego, o que seria ótimo para a economia. Pense bem: o turno dos trabalhadores do dia cavaria vários buracos o dia inteiro, ao passo que os empregados do turno da noite iriam tapá-los. Ainda uma vez, reflita-se sobre o que não é visto: obras públicas são financiadas com o dinheiro de impostos, o qual poderia estar sendo investido em outras atividades pelos indivíduos se não fosse extorquido deles pelo estado. A sociedade suporta, portanto, o custo de oportunidade das escolhas feitas pelos nossos sábios dirigentes, em seus palácios em Brasília.

Infelizmente, a única conclusão a que podemos chegar, depois de repassar esses exemplos tão antigos, é que a falácia das janelas quebradas está ainda muito viva e intrincada na cabeça das pessoas hodiernamente. E é a ela que devemos creditar boa parte dos subsídios, bolsas e programas de estímulo do governo, que assombram a economia mundial ainda hoje em dia, para o desespero de Bastiat, mais de 150 anos depois.

 

1 O original em francês pode ser gratuitamente baixado no site do Internet Archive, neste link: https://archive.org/details/oeuvrescomplt05bast.

A versão completa em português está disponível no site do Instituto Ludwig von Mises Brasil: http://www.mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=342.

 2 WOODS Jr., THOMAS E. Meltdown: A Free-Market Look at Why the Stock Market Collapsed, the Economy Tanked, and the Government Bailouts Will Make Things Worse. Regnery, 2009. Pág. 105. 

3 By the 1960’s the U.S. government, in its strategic aircraft and missiles alone, was capable of unleashing in explosive power the equivalent of six tons of TNT for every person on Earth. “Now that we have 6 tons of TNT per person in our strategic missiles and aircraft alone,” Melman wondered, “have we become more secure than when we had only 1 ton of TNT per human being on Earth?” The labor, time, and other resources that were used to produce this overkill material were taxed away from the productive population and diverted from the creation of civilian goodsWOODS Jr., THOMAS E. Rollback: Repealing Big Government Before the Coming Fiscal Collapse. Regnery, 2011. Pág. 96-97.

4 Le sophisme que je combats dans cet écrit est d’autant plus dangereux, appliqué aux travaux publics, qu’il sert à justifier les entreprises et les prodigalités les plus folles. Quand un chemin de fer ou un pont ont une utilité réelle, il suffit d’invoquer cette utilité. Mais si on ne le peut, que fait-on? On a recours à cette mystification : « Il faut procurer de l’ouvrage aux ouvriers. » Oeuvres Complètes de Frédéric Bastiat. Mises en Ordre, Revues et Annoteés d’Après les Manuscrits de l’Auteur. Tome Cinquième. Sophismes Économiques.Petits Pamphlets. Guillaumin et Cie. Libraries. Paris, 1854. Pág. 354-355. Em português: http://www.mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=342#Parte5.

5Ibid.

*Advogado, formado pela PUC-Rio. Autor de estudos sobre a relação entre o estado e a Igreja no Brasil e sobre Cooperação Jurídica Internacional

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Instituto Liberal

Instituto Liberal

O Instituto Liberal é uma instituição sem fins lucrativos voltada para a pesquisa, produção e divulgação de idéias, teorias e conceitos que revelam as vantagens de uma sociedade organizada com base em uma ordem liberal.

3 comentários em “Bastiat, “A Trapaça”, Custo de Oportunidade, Guerras, Impostos e Outras Considerações

  • Avatar
    18/05/2014 em 11:03 am
    Permalink

    Muito bem pensado, bastante atual, vale refletir!

  • Avatar
    04/05/2014 em 3:23 pm
    Permalink

    Onde está escrito “o que não costuma ser observado é o que o vidraceiro teria feito com o dinheiro caso não tivesse que gastá-lo com a reparação da janela quebrada”, me parece que deveria ser: “o que não costuma ser observado é o que o COMERCIANTE teria feito com o dinheiro caso não tivesse que gastá-lo com a reparação da janela quebrada”. No mais, o texto ficou muito bom! Obrigado por mais esta aula!!!

  • Avatar
    01/05/2014 em 11:25 am
    Permalink

    Bom artigo, mas uma correção. No início do quarto parágrafo menciona-se o que o vidraceiro faria com o dinheiro caso não tivesse a janela quebrada. Ora, o vidraceiro não teria dinheiro pois o conceito das vidraças quebradas é exatamente para dar emprego ao vidraceiro. Ele é o único diretamente beneficiado da situação. Assim como a indústria bélica que prospera graças ao dinheiro que é desviado para ela. No Brasil restringimos, por exemplo, postos de gasolina sem frentistas e ônibus sem cobrador para criar empregos. Não existem mais ascensoristas, cocheiros, moleques de recados, acendedores de lampiões, ferreiros, e uma infinidade de empregos acabaram até mesmo em mercado mais recentes nas indústrias de disquetes, câmeras fotográficas analógicas, video-cassetes etc. Esquecemos que os empregos destruídos pela tecnologia de um lado são substituídos por outros. Os lobbies para preservar empregos na realidade procuram preservar privilégios para um grupo em detrimento de toda a sociedade. Esses lobbies porém não se restringem aos sindicatos de trabalhadores mas também são fartamente utilizados pelas indústrias e suas entidades de classe que com poder de influenciar os políticos com muita per$ua$ão, conseguem restringir a competição em seus mercados cativos, criar barreiras para novos entrantes e demandas artificiais para seus produtos. Observando os lobbies nos países mais adiantados ficamos pensando se existe alguma saída…

Fechado para comentários.

Pular para o conteúdo