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Autoritarismo escancarado

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Por ocasião da determinação de busca e apreensão e do confisco de bens de empresários por suposta apologia a atos antidemocráticos em grupo privado de WhatsApp, publiquei um artigo sobre as inúmeras irregularidades formais da decisão, então mantida em sigilo, assim como sobre a impossibilidade, até mesmo física, de classificar e punir como “golpismo” meras conversas entre amigos[1]. De lá para cá, com a divulgação da íntegra da decisão do ministro Alexandre de Moraes[2], a brasa deu lugar às chamas, e caiu por terra qualquer véu de apreço à democracia em torno de uma deliberação monocrática que, na verdade, não passa de decreto ditatorial.

Após seu relatório sobre a ação, proposta por um senador que não dispunha de legitimidade para tanto, e perante a corte suprema (STF) que não possuía competência para sequer apreciar o caso, como explanado em detalhes no artigo mencionado acima, Moraes começa a referir-se ao grupo de empresários como “verdadeira organização criminosa (…) com a nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito.” Como é do conhecimento de qualquer figura do universo jurídico, ou, pelo menos, deveria sê-lo, o Direito Penal é o último instrumento a ser empregado pelo braço punitivo estatal para a sanção a condutas muito gravosas, desde o início da execução destas até o momento da sua consumação. De fato, o Estado não pode punir o intercâmbio de ideias, projetos ou até de desejos, por mais imorais ou repulsivos que sejam, pois não lhe é dado intervir na chamada “fase de cogitação”, anterior à implementação efetiva do delito.

Uma tímida exceção a esse princípio reside na presença, em nossa legislação, de crimes como o de associação criminosa, onde os agentes são sujeitos a penas, não pelo simples fato de se reunirem, e sim por formarem um coletivo para o fim específico de cometer crimes[3]. Como consectário lógico, as reuniões virtuais entre os empresários só poderiam ter configurado crimes, se eles tivessem se associado com o único e preciso propósito de delinquirem. Portanto, convido você, caro leitor perplexo diante desse caso midiático, à análise de cada conduta atribuída por Moraes aos empresários, para avaliar se alguma delas seria descrita como crime pela nossa lei penal, mais especificamente pela Lei 14.197/21, que revogou a Lei de Segurança Nacional do período militar, e passou a definir os crimes contra as instituições democráticas, seja na modalidade de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (artigo 359-L), seja na de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” (artigo 359-M).

Assim, com paciência e muita coragem, vamos ao rol das práticas aludidas, na decisão do togado, como delitos gravíssimos:

  • afirmar, no grupo de amigos, a intenção de encomendar “milhares de bandeirinhas para distribuir para os lojistas e clientes do Barra World Shopping a partir de setembro”: conduta que não padece de qualquer ilicitude, refletindo, antes, o amor à bandeira do país;
  • sustentar, no grupo de amigos, que “prefiro golpe do que a volta do PT (sic)”: não se pode vislumbrar qualquer ilicitude na manifestação de uma preferência, ou até de um desejo, muito menos em âmbito privado;
  • cogitar, no grupo, que “quero ver se o STF tem coragem de fraudar as eleições após um desfile militar na Av. Atlântica com as tropas aplaudidas pelo público”: trata-se de mera especulação sobre uma eventual fraude de eleições pelo STF, em uma afirmativa que não foi dirigida à corte, razão pela qual sequer poderia configurar uma ameaça, que pressupõe que o ameaçado tenha ciência da iminência do ataque do agente; aliás, nessa conversa privada, sequer foi mencionado um plano de destruição do tribunal, razão pela qual não apresenta qualquer traço ilícito;
  • afirmar, no grupo, que “o 7 de setembro está sendo programado para unir o povo e o Exército e ao mesmo tempo deixar claro de que lado o Exército está. Estratégia top e o palco será o Rio. A cidade ícone brasileira no exterior. Vai deixar muito claro”: a mera intenção de união entre o povo e o Exército, seja lá o que isso signifique, não apresenta qualquer ilegalidade, pois, mais uma vez, reflete o simples desejo em torno de um suposto significado político da parada militar;
  • sustentar, no grupo, que “golpe foi soltar o presidiário!!! Golpe é o ‘supremo’ agir fora da constituição”: mais uma vez, nenhuma ilicitude foi configurada, pois trata-se da manifestação de uma opinião, e em privado, sobre uma determinada decisão judicial;
  • afirmar, no grupo, que “o golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo”: mais uma vez, nenhuma conduta ilícita, pois reflete um mero desejo, manifestado em privado, relativo a acontecimentos pretéritos;
  • sustentar, no grupo, que “se for vencedor o lado que defendemos, o sangue das vítimas se tornam [sic] sangue de heróis! A espécie humana SEMPRE foi muito violenta”: mais uma especulação vazia de providências concretas, quase uma divagação filosófica, em privado, sobre a natureza bélica da nossa espécie, e onde a expressão “sangue das vítimas” pode até possuir um sentido metafórico, razão pela qual não se pode vislumbrar qualquer ilícito;
  • sustentar, no grupo, que “o STF será o responsável por uma guerra civil no Brasil”: mera manifestação, em privado, de natureza opinativa e até especulativa sobre um futuro incerto, e que nada apresenta de ilícito;
  • afirmar, no grupo, que “[O STF] “é o mais forte partido político da esquerda que faz oposição ao Poder Executivo” “Até quando vamos assistir (sic) o abuso de poder prevalecer?”: mais uma manifestação opinativa, em privado, de indignação, sem alusão a qualquer providência concreta, o que não pode ser tido por ilícito;
  • sustentar, no grupo, que “[Bolsonaro] tem que intervir antes, esquecer o TSE, montar uma comissão eleitoral (como quase todos os países do mundo fazem), votação em papel e segue o jogo! Simples assim.”: novamente, a manifestação, em privado, de uma opinião que, quer concordemos ou não, não foi acompanhada de medidas efetivas, razão pela qual não apresenta ilicitude;
  • afirmar, no grupo, que “se não precisar mentiras… ótimo!!!! Mas se precisar para vencer a guerra é aceitável. Muito pior é perder a guerra!!!! Esta mídia e políticos em geral são todos mentirosos profissionais! O Bolsonaro é o esteio da verdade”: eis aí mais uma mera opinião manifestada em privado e que, assim, não configura qualquer ilícito; e
  • afirmar, no grupo, que “graças ao STF, que criou ilegalmente o crime inexistente de homofobia. Precisa eleger um congresso de grande maioria de direita e acabar com esse absurdo, enquanto isso PM tem que estudar VIADOLOGIA para ir resolvendo essas ocorrências”: novamente, a manifestação, e em privado, de uma opinião sobre a atuação de um tribunal, que não redundou em qualquer conduta efetiva, seja contra a corte ou contra seus membros, donde não haver que se falar em ilicitude.

Portanto, TODAS as práticas acima se encontram no plano da retórica, sendo certo que nenhuma das falas incriminadas foi seguida de qualquer ato violento, atentatório à integridade física dos ministros, à estrutura dos prédios das cortes superiores ou à paz social. Ora, em suas longas 32 páginas de vociferação e puro sentimentalismo, o ministro Moraes foi incapaz de apontar o número de tropas arregimentadas pelos empresários, a quantidade de armamentos bélicos por eles adquiridos para o cerco às principais capitais brasileiras, o desenho das estratégias táticas de deslocamento de tanques, a colocação de explosivos em instalações judiciárias, ou o posicionamento de mísseis voltados para o STF.

Será que Moraes jamais folheou Tucídides, Clausewitz e outros famosos historiadores e estrategistas de guerra para ter alguma noção sobre o modus operandi dos golpes de Estado, revoluções, guerrilhas, ou demais insurreições armadas nas coletividades humanas? Ou será mesmo que suas leituras se restringem ao periódico Metrópoles, sua única fonte para a obtenção das ditas provas contra os tão temidos empresários e “golpistas” de WhatsApp?

Em decorrência das conversas privadas transcritas acima, e, reitere-se, todas irrelevantes para fins criminais, o togado ainda decretou o bloqueio dos ativos dos empresários, com vistas a impedir o financiamento do que, em seu fluxo iracundo de consciência, Moraes indevidamente chamou de organização criminosa. No entanto, pelas razões já articuladas, como não há que se falar, nesse caso, em qualquer associação delitiva, o referido bloqueio constituiu mais um abuso, ou, em português claro, um confisco do patrimônio de quem ousou, em privado, manifestar suas opiniões, talvez a atividade mais arriscada no Brasil de hoje.

O patético de todo esse imbróglio reside no fato de que somos, de longe, um dos países mais violentos e inseguros de todo o mundo, onde, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2022, registramos o maior número absoluto de homicídios em todo o mundo, tendo respondido por cerca de 20,5% dos homicídios praticados no planeta, em 2020[4]. Cumpre salientar, por óbvio, que todo esse cenário de caos na segurança é arquitetado por poderosíssimas facções, essas sim rentáveis “franquias” do crime, atuantes tanto fora quanto dentro do próprio universo político, e que tais empreendimentos delitivos, desde a criminalidade urbana até a corrupção grossa do colarinho branco, são fomentados pelo clima de impunidade instaurado, em boa medida, pelo nosso Judiciário. Na nossa tragédia Brasileira, as togas não só deixam de encarcerar meliantes verdadeiramente ameaçadores para a sociedade, como ainda se esmeram em punir os ditos crimes de opinião, como vimos no caso dos empresários.

Em seu icônico Discurso sobre a Servidão Voluntária, Étienne de la Boétie se debruça sobre tiranias que marcaram a História, e indaga a razão pela qual povos inteiros teriam anuído à crueldade do jugo de autocratas que poderiam ter deposto com facilidade, se tivessem se unido em torno desse propósito. Afinal, como tão bem colocado por Étienne, se vivêssemos conforme os direitos que a natureza nos deu, seríamos apenas obedientes aos nossos ascendentes, guiados pela razão e servos de ninguém. Assim, o que nos leva a acatar tão docilmente os desmandos de um fenômeno tão antinatural quanto a servidão? Seria apenas medo, covardia, ou a bestialização promovida pelos Neros e Calígulas de seu tempo?

É claro que, no início, serve-se por receio da punição do autocrata. Porém, o filósofo francês chega à conclusão de que, ao longo do tempo e das gerações, a servidão se impõe por costume, por força do velho hábito de desviar o olhar, e, cabisbaixo, repetir o mesmo “Yes, Sir”, sem reflexões ou juízos, mas apenas de modo maquinal. Quase como que uma predestinação de subserviência à casta investida de supostos direitos senhoriais.

No Brasil, nós nos habituamos, cada dia mais, ao autoritarismo de toga, Toleramos o inconstitucional inquérito das fake news, assim como o dos tais atos antidemocráticos, em cujo escopo foram determinadas as medidas contra os empresários, e seguimos acompanhando bovinamente o crescente ativismo judicial, cercado pelo silêncio complacente de outros órgãos, tais como associações de magistrados, de procuradores e a própria Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, que deveria ser um dos maiores bastiões das garantias democráticas, dentre as quais as garantias à intimidade e à livre manifestação de opiniões, feridas de morte a cada decisão como a que ora comentamos.

No que depender desse espaço, seguiremos, com tristeza, escancarando os vícios das recentes deliberações dos tribunais superiores, e defendendo todas as liberdades individuais. Inclusive a de proferir afirmações das quais porventura discordemos, mas cuja censura não cabe a quem quer que seja, nem a nós, e muito menos a autoridades togadas por nós remuneradas, a peso de ouro, para atuar a nosso serviço.

[1] https://diariodorio.com/katia-magalhaes-a-ditadura-travestida/

[2] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Decisa771oPET10543.pdf

[3] Lei 12.850/13 – Art. 1º. § 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

[4] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/01-anuario-2022-a-fragil-reducao-das-mortes-violentas.pdf

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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