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Amor e Justiça, segundo Paul Ricouer

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Paul-Ricoeur_390-81925No ensaio Amor e Justiça, Paul Ricouer tenta encontrar uma dimensão conciliadora entre esses dois elementos, cuja relação normalmente apresenta-se problemática na medida em que se trataria, para o autor, do entrecruzamento de uma dimensão supra-ética com uma dimensão ética. Ou seja, antes de empreender uma aproximação dialética entre amor e justiça, o filósofo reconhece uma desproporção entre esses termos, assim como sua pertença a esferas diferentes de discurso. A necessidade de lançar uma ponte entre a poética do ágape e a prosa da Justiça, entre o hino de louvor e a regra formal, é justificada pelo fato de que ambos os discursos  remetem à praxis, ao mesmo mundo de ação em que ambicionam se manifestar.

A teoria do ágape levantaria o problema de se saber até que ponto ela trata de uma construção capaz de descrever ações realizadas por pesssoas na realidade ou de uma mera utopia. Nesse sentido, Paul Ricouer cita o livro de Dostoiévski, O Idiota, como exemplificação do mal-entendido e da confusão suscitada pela tentativa de aplicação do ágape em situações concretas. Outro problema suscitado pela teoria do ágape se apresenta a Ricouer na medida em que este busca nas experiências pacifistas uma alternativa à idéia de luta nos processos de reconhecimento mútuo. Os modelos dos chamados estados de paz estariam ligados na nossa cultura a suas denominações gregas philia (sentido aristotélico), eros (sentido platônico) e ágape (sentido bíblico e pós bíblico), sendo que este último, ágape, parece refutar a idéia de reconhecimento mútuo na medida em que a prática generosa do dom não requer nem esperar o dom em retorno.

Recorrendo à exegese bíblica, Ricouer analisa as peculiaridades do discurso do amor, chegando às seguintes conclusões: O amor é louvor, diferentemente da justiça que busca se estabelecer através de uma retórica. Enquanto o ágape se declara,  a justiça argumenta. O mandato amoroso como obrigação moral é irredutível ao sentido kantiano de dever.  O mandamento do amor brota do vínculo entre Deus e uma alma solitária.

Segundo Ricouer, a lógica do amor é a lógica da super-abundância, enquanto a lógica da justiça é a lógica da equivalência. Enquanto a justiça busca dar a cada um o que  lhe é devido, estabelecendo uma correlação razoável entre delitos e penas, o amor se caracteriza pelo perdão e pela gratuidade. A questão de Ricouer é saber se, apesar dessas divergências, é possível e/ou necessário estabelecer uma relação entre ambos.

O amor resiste à análise ética, à tentativa de clarificação conceitual, primeiramente na sua forma de exposição como louvor, mas, principalmente, na paradoxal forma imperativa na qual se exprime: “Tu amarás ao senhor teu Deus e amarás ao próximo como a ti mesmo”. Qual o estatuto deste mandato? Como é possível comandar um sentimento? Tal comando é comparável aos princípios morais, tais como o são o imperativo categórico e mesmo os princípios utilitaristas? Interpretando a obra de Franz Rosenzweig, A estrela da redenção, Paul Ricouer encontra possibilidades de resposta para estas questões: o comando de amar é o amor ele mesmo se recomendando ele mesmo. Tal comando contém as condições de sua obediência pela essência terna de seu apelo: “Ame-me”. Ou seja, trata-se de um uso poético do imperativo. Tal uso torna o comando do amor irredutível, em seu teor ético, ao imperativo kantiano. A tentativa de Paul Ricouer de estabelecer uma dialética entre amor e justiça partirá justamente dessa separação entre o uso poético do comando e o comando em sentido estritamente moral.

A justiça é uma atividade comunicacional, argumentativa, se impõe através do confronto discursivo, racional, analógico. A marca maior da justiça está nesse formalismo. Entretanto, para além da justiça tomada assim na perspectiva de aparelho judiciário de um Estado de direito, há os princípios de justiça ou a idéia de justiça, cujas fronteiras com o amor são mais tênues, mais difíceis de traçar. Mas, mesmo nesse sentido, a quase total identificação da justiça com a justiça distributiva reforça a sua antinomia em relação ao amor. “Dar a cada um o que lhe é devido” seria a fórmula mais geral da justiça, em contraposição às características de generosidade e gratuidade próprias do amor.

Na tentativa de superar as divergências entre amor e justiça acima apontadas, Paul Ricouer irá encontrar em Lucas 6 uma tensão viva a ser trabalhada entre a regra de ouro (que anunciaria a regra de justiça) e o novo mandamento (que anunciaria a nova lei do amor). Apesar da aparente contradição, a regra de ouro (“aquilo que queres que os homens vos façam, fazei-vos a eles” Luc 6, 31) e o mandamento de amar os inimigos – ou simplesmente o mandamento do amor – estão presentes em um mesmo contexto. Isso sugere uma outra perspectiva na qual o amor, ao invés de contradizer a regra de ouro, fornece-lhe uma nova interpretação no sentido da generosidade, lançando assim um comando “que em razão de seu estatuto supra-ético, só acede à esfera ética ao preço de comportamentos paradoxais e extremos.[1]“Tratar-se-ia de engajamentos singulares extremos que, segundo  Paul Ricouer, ofereceriam uma extrema dificuldade de aplicação prática devido ao fato de erigirem a não equivalência em regra geral. Tais posturas, historicamente assumidas por indivíduos como, por exemplo, Francisco de Assis, Gandhi ou Martin Luther King, arriscariam se virar da supra-moral para a não moral ou mesmo para o imoral, caso não passassem pelo crivo do princípio de moralidade resumido na regra de ouro e formalizado pela regra de justiça.

O imperativo do amor não é auto-suficiente, mas advém daquilo que Ricouer chamou de economia do dom,  da projeção ética mais próxima daquilo que transcende a própria ética: “porque te foi dado, dá à seu turno”. Essa expressão constituiria uma possibilidade de redução ética da supra-ética. Entretanto, em sua aplicação prática, a economia do dom desenvolve uma lógica de super-abundância aparentemente oposta à lógica da equivalência que prevalece no princípio de justiça. Em Luc 6, 32-34, a regra de ouro (ou a lógica da equivalência) parece ser dasautorizada pelas graves palavras de Jesus representando o novo mandamente do amor ou a lógica da super-abundância:

E se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? Também os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo. E se emprestardes àqueles de quem esperais tornar a receber, que recompensa tereis? Também os pecadores emprestam aos pecadores para tornarem a receber outro tanto. Amai, pois, aos vosso inimigos, e fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes em troca. (Lucas 6:32-35)

Por outro lado, a justiça ou lógica da equivalência receberia de sua confrontação com a lógica da super-abundância ou do amor a capacidade de superar a má interpretação utilitarista a que está sujeita. Assim a fórmula geral: “eu dou para que tu me dês” seria corrigida pela fórmula “dá, porque te foi dado”. As palavras de Jesus em Luc 6, 32-34 seriam então menos uma crítica à lógica de equivalência da regra de ouro que uma crítica contra uma sua possível interpretação perversa utilitarista. Da antinomia inicial entre amor e justiça, Paul Ricouer chega à justiça como mediador necessário para o amor, na medida em que o amor, sendo supra-moral, requer o crivo da justiça para entrar na esfera prática da ética:

Desorientar sem orientar é, em termos kierkegaardianos, suspender a ética. Em um sentido, o comando de amor, enquanto supra-moral, é uma maneira de suspenção da ética. Este só é reorientado ao preço de uma retificação da regra de justiça, de encontro à sua inclinação utilitária[2].

Haveria, portanto, segundo Ricouer, uma complementaridade entre a lógica de superabundância e a lógica de equivalência ou entre o amor e a justiça. O imperativo ético do amor necessita do ideal ético da justiça, assim como a justiça deve ser complementada pelo mandamento do amor. Trata-se aqui de fundamentar a ética para além de sua funcionalidade legal, descobrindo no amor o móbil para a renovação constante das leis que visam ao ideal de justiça:

[…] a empresa de exprimir esse equilíbrio na vida cotidiana, no plano individual, jurídico, social e político é perfeitamente praticável. Eu diria mesmo que a incorporação tenaz, passo a passo, de um grau suplementar de compaixão e generosidade em todos nossos códigos – código penal e código de justiça social – constitui uma tarefa perfeitamente racional, embora difícil e interminável[3]“.

[1]Idem, p. 38

[2]RICOUER, P. Amour et justice. p. 41

[3]RICOUER, P. Amour et justice. p.42

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Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".

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