Afinal, riqueza é renda ou patrimônio?

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A incompreensão sobre o que, afinal de contas, pode ser considerado ou não riqueza é responsável por acaloradas discussões. Para além de alimentar divergências ideológicas, penso que o tema é de fundamental importância, sobretudo por suas implicações na formulação de políticas públicas.

Um dos argumentos que escuto com mais frequência é o de que, para definir quem é rico, devemos basear-nos tão somente na grandeza patrimonial e não na renda, uma vez que um trabalhador assalariado – ainda que um executivo altamente remunerado –, mas não detentor de patrimônio, na verdade se descobriria pobre no momento em que perdesse seu emprego. Antes de comentar essa visão, cabe questionar: qual o objetivo de se definir a riqueza? A pergunta pode soar estranha, mas para diferentes respostas haver[a diferentes definições. Pode ser que queiramos, com tal definição, traçar um trajeto adequado para aqueles que desejam acumular riqueza pessoal. Pode ser que queiramos usar tal definição para subsidiar uma melhor formulação de políticas públicas, bem como uma tributação mais eficiente.

Em se tratando do primeiro caso, eu condescendo com a visão de que riqueza, de fato, é patrimônio. É evidente que faz todo sentido buscar uma renda elevada e é com essa expectativa em mente que muitas pessoas passam anos estudando. Ocorre que a renda por si só, por mais elevada que seja, não é o fim do processo para aqueles que desejam se tornar ricos. Seja investindo no mercado financeiro, seja em empresas de capital fechado, seja em um negócio próprio, ou alguma outra alternativa, é tão somente por meio da construção de um patrimônio – que não necessariamente precisa ser físico – que alguém pode atingir esse objetivo, ainda que em um prazo longo.

Para ilustrar, podemos pegar dois casos hipotéticos. O primeiro é o de um executivo com uma renda mensal girando em torno de R$50 mil. Trata-se de uma cifra impressionante, muito maior do que a da maior parte da população. Com uma renda tão elevada, imaginemos que esse executivo viva uma vida nababesca, pagando aluguel em uma cobertura de luxo, fazendo viagens internacionais todos os anos, tendo sempre um carro zero da garagem, além de pagar a faculdade dos filhos em universidades de ponta. No entanto, como não existe almoço grátis, esse estilo de vida demanda grandes dispêndios, e nosso executivo devota, todo mês, a totalidade de sua renda para isso. Já vivendo em grande conforto material e convicto de que possui estabilidade profissional, ele não se preocupa em poupar e investir. Imaginemos, no entanto, que uma grave crise econômica acometa o país e ele perca seu emprego e, como a situação é muito grave, ele não consiga se recolocar no mercado instantaneamente, mesmo tendo um excelente currículo. Da noite para o dia, nosso executivo, cujo acúmulo de patrimônio foi zero, precisa abandonar a vida nababesca e encarar a dura realidade de que vivia uma ilusão de riqueza. É provável que tenha recebido valores indenizatórios pela rescisão, mas isso não durará para sempre.

Em nossa segunda hipótese, imaginemos um trabalhador braçal que angaria uma renda mensal de R$2 mil, em valores atuais. Trata-se de uma cifra bem menos impressionante do que a do nosso executivo. Diferentemente do executivo, no entanto, nosso personagem é bastante comedido em seus gastos, o que lhe permite poupar em média 30% de sua renda mensal. Vamos imaginar, também, que ele já esteja no mercado há 20 anos. Tendo seguido esse mesmo procedimento desde o início de sua carreira, ele não se tornou nenhum Warren Buffett, mas logrou acumular certo patrimônio, incluindo uma casa, própria e já quitada, alguns investimentos em renda fixa, além de uma polpuda reserva de emergência. Digamos, então, que ele seja afetado pela mesma crise econômica do caso anterior e perca seu emprego. Diferentemente do executivo, nosso segundo personagem não precisa se preocupar em pagar aluguel, ainda que viva em uma casa muito mais simples do que o apartamento luxuoso do executivo. Além disso, ele possui uma reserva de emergência que lhe permite segurar as pontas por meses a fio e seus investimentos lhe fornecem alguma renda, de modo que não depende inteiramente da reserva.

A conclusão é que, partindo da consideração desses dois casos em uma situação adversa, como uma crise econômica, o patrimônio acaba sendo o ponto mais relevante. Para aqueles que desejam construir riqueza pessoal, o melhor conselho seria, de fato, focar na acumulação de patrimônio, e não apenas na renda, embora esta também seja importante. Ocorre que, quando estamos falando de definição de riqueza para fins de políticas públicas e tributação, não faz o menor sentido considerar apenas o patrimônio. Primeiro, é preciso considerar que a hipótese foi deliberadamente exagerada, e não pretendo sugerir que um executivo altamente remunerado enfrenta maior vulnerabilidade financeira do que um trabalhador braçal. Segundo, se uma pessoa que recebe uma renda tão elevada não adquire patrimônio, não há ninguém mais a ser culpado – salvo situações excepcionalíssimas – a não ser ela mesma.

Se pensarmos de modo diverso, chegaríamos à estranha conclusão de que o segundo personagem deve ser visto como alguém mais rico do que o segundo, o que nos leva ao primeiro problema dessa abordagem, que é a qualidade da aferição da real condição socioeconômica das pessoas, sobretudo se disso se tentam derivar determinadas conclusões ideológicas; um pequeno empresário, dono de uma quitanda, com uma renda mensal de, digamos, R$3 mil, poderia muito bem ser pintado como um “capitalista privilegiado”, enquanto um servidor público com uma renda de R$20 mil poderia ser visto como um mero assalariado, em situação análoga à dos demais trabalhadores assalariados. Na verdade, essa deturpação é, infelizmente, bastante frequente, já tendo virado lugar-comum.

O segundo problema, que se relaciona com o primeiro, é o fato de essa abordagem permitir a distorção, não apenas da realidade alheia, mas da própria realidade. Com frequência, tenho o desprazer de ver pessoas a defender que quem ganha R$10, R$15, R$20 mil, especialmente no caso de servidores públicos, não é de uma condição financeira abastada, alguns chegando ao cúmulo de dizerem ser “pobres”. De fato, muitos, habituados ao próprio conforto, genuinamente pensam que o que desfrutam é o mínimo desfrutado por todos, e que ricos mesmo são os bilionários. É uma visão dicotômica, absolutista e irrealista da realidade econômica, que, dividindo a sociedade entre ricos e pobres, só reconhece nomes como Jeff Bezos e Jorge Paulo Lemann como sendo do primeiro grupo, com o resto da sociedade (a maioria esmagadora) compondo o segundo.

De acordo com o IBGE, a renda per capta média no Brasil foi de R$1.380 em 2020. A cifra esconde uma grande variação regional, tendo atingido o maior valor no Distrito Federal, R$2.475, e o menor no estado do Maranhão, R$676, que se junta a outros doze estados em que a renda média foi inferior ao salário mínimo vigente no período: R$1.045. Ainda conforme o IBGE, com base na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2019, metade dos brasileiros, em torno de 105 milhões de pessoas, viviam com uma renda média de R$438 mensais. Os que integravam o estrato dos 10% mais pobres sobreviviam com R$112 mensais, o equivalente a R$ 3,73 por dia. Diante desse cenário, fica patente o quão ridículo e alheio à realidade do país é alguém com uma renda de R$10 mil, ou mais, pensar que é pobre. Para ilustrar, alguém com uma renda de R$5 mil ganhava mais de onze vezes a renda média de metade dos brasileiros em 2019, chegando próximo a setenta vezes para escalões mais elevados, com renda de R$30 mil.

Uma das consequências políticas dessa leitura equivocada são as propostas que se apresentam como panaceias. Não é raro termos conhecimento de políticos prometendo uma expansão desmedida do Estado de bem-estar social, a ser financiada por uma tributação mais intensiva sobre os “mais ricos”. Para apaziguar os eleitores que questionam se isso não poderia lhes acabar pesando no bolso, se apressam em dizer que só os “super-ricos” serão taxados. Tendo ocasião de dar sequência às suas propostas de expansão do gasto público, seus apoiadores cedo descobrirão o embuste. Com os chamados super-ricos perfazendo um percentual tão baixo da população e sendo melhor equipados para fugir legalmente do fisco, seja por um planejamento tributário eficiente ou pela simples fuga de capital, o ônus recairia, inelutavelmente, sobre o restante da população, sendo que a equidade da incidência poderia acabar dependendo do poder de lobby de determinados grupos. Como sabemos, quinhões de renda mais elevada, especialmente em carreiras públicas, ou grupos de pressão do setor privado, tendem a reunir maior poder de barganha do que a arraia-miúda.

Isso nos leva à outra consequência, que é a questão tributária. Os que prometem operar maravilhas apenas tributando os super-ricos visam principalmente dois tipos de tributos que incidem sobre o patrimônio: imposto sobre heranças e imposto sobre grandes fortunas. O primeiro já existe a nível estadual no Brasil, mas há os que defendem expandir a alíquota a patamares elevadíssimos. Quanto ao imposto sobre grandes fortunas, apesar de uma previsão constitucional, ele, felizmente, nunca foi regulamentado e nunca entrou em operação. Tecer considerações sobre cada um deles fugiria do escopo deste artigo, mas basta dizer que considero ambos meios ruins de tributação, significando uma forma dissimulada de confisco, além de ter um poder arrecadatório pífio. A França é um caso clássico de evidência empírica acerca da ineficácia do imposto sobre grandes fortunas. Conforme estudo do economista francês Éric Pichet, publicado em 2008, o Imposto Sobre Grandes Fortunas da França, desde a data inicial de sua aplicação (1988) até a data da análise (2007), representou módicos 1,6% do total arrecadado, a despeito de sua ampla abrangência naquele país.

Além da pífia arrecadação, preconizar um sistema tributário mais dependente da tributação sobre o patrimônio do que sobre a renda traz outros inconvenientes. Uma pessoa com uma renda elevadíssima, mas perdulária, ao não acumular patrimônio, acabaria beneficiada e, pasmem, até mesmo considerada pobre. Já uma pessoa com uma renda mais modesta, mas comedida nos gastos e diligente na gestão financeira, ao acumular patrimônio poderia acabar tratada como sendo privilegiada e arcando com uma maior incidência tributária. O que se perde de vista aqui é que, embora o perdulário não tenha acumulado patrimônio, por ter uma renda mais elevada ele tinha mais possibilidades de acumular. Ao considerá-lo pobre por não ter patrimônio acumulado, dar-se-ia um estímulo para o consumismo desenfreado, ao mesmo tempo em que se penalizaria a poupança e o investimento. As razões que levaram um a acumular patrimônio e o outro não devem ser irrelevantes para o governo, afinal, não é papel do Estado guiar a formação de riqueza privada; as pessoas devem ser livres para perseguir seus objetivos materiais.

Além disso, uma tributação que vise mais a renda do que o patrimônio e que ocorra de forma equitativa deveria servir (ao menos teoricamente) para minimizar as retóricas a respeito da suposta injustiça da existência de super-ricos. Ao se tributar a renda, especialmente se de forma mais progressiva (com alíquotas razoáveis e sem viés confiscatório), tributa-se mais aqueles que têm maior possibilidade de criar riquezas, antes que isso ocorra. Ao se tributar mais o patrimônio, pune-se a diligência, ignorando-se o processo de acumulação de riquezas de cada caso em particular. É por ignorarem isso que vemos tantas pessoas escandalizadas com o crescimento patrimonial de celebridades que costumam figurar na Forbes. Quando lemos que o patrimônio de Jeff Bezos, por exemplo, aumentou tantos por cento, isso tão somente significa que as ações da Amazon se tornaram mais caras; nem é preciso dizer que, quando o contrário acontece, e no mercado de capitais isso acontece o tempo inteiro, não vemos a mesma repercussão. Se o governo americano estabelecesse um teto para a riqueza, como alguns chegam ao extremo de defender, Bezos teria que alienar periodicamente sua participação na empresa que fundou, até diluí-la e perder totalmente o controle. Acredito que não é preciso elaborar mais para se entender os efeitos disso para os investimentos e a geração de riquezas, não é mesmo?

É claro que, na prática, a tributação sobre a renda, junto com a tributação sobre o consumo, acontece com mais frequência do que a sobre o patrimônio, mas não só na tributação per se nós podemos discernir o poder do lobby motivado por essa visão distorcida. Durante a tramitação da Reforma da Previdência, por exemplo, sindicatos e associações de servidores realizaram forte propaganda tentando convencer a população de que mesmo aqueles que compunham a elite do funcionalismo não poderiam de forma alguma ser tratados como ricos, estando no mesmo patamar que o restante da classe trabalhadora. Apelou-se, então, para a tributação sobre grandes fortunas como alternativa à reforma, que, felizmente, acabou aprovada.

Em suma: considerar riqueza apenas patrimônio serve tanto ao propósito dos expansionistas do gasto público, fiscalmente irresponsáveis, que prometem uma tributação sobre o patrimônio como panaceia para fazer frente a toda sorte de necessidades, quanto para aqueles que falam em causa própria, apelando ao imaginário popular com o adjetivo de “assalariados”, como se entre assalariados não houvessem desde garis, passando pela elite do funcionalismo, até executivos com salários anuais milionários.

Fontes:

https://economia.ig.com.br/2021-02-26/renda-media-no-brasil-foi-de-r-1380-em-2020-confira-os-maiores-rendimentos.html

https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/06/metade-dos-brasileiros-sobrevive-com-menos-de-r-15-por-dia-aponta-ibge.htm

Pichet, Eric. (2008). The Economic Consequences of the French Wealth Tax.

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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