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“A Virtude do Egoísmo”: Ayn Rand e o Objetivismo

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Como parte de seu clube de assinaturas, o Clube Ludovico, a LVM Editora editou no Brasil a obra A Virtude do Egoísmo, da filósofa russo-americana Ayn Rand, fundadora da escola filosófica do Objetivismo. A edição conta com uma apresentação do professor Dennys Xavier, um dos mais dedicados divulgadores do pensamento desta autora no Brasil.

Conforme define Dennys, “Rand responde a um desejo represado de doses hiperbólicas de realidade, de mundo tangível, objetivo, sem gracejos linguísticos, sem artifícios hermenêuticos pensados para projetá-lo para além de si mesmo, ou seja, numa celebração irracional de expectativas sem lastro nos fenômenos tal como se nos apresentam”. Nascida em São Petersburgo em 1905, a pensadora viveu os horrores do totalitarismo soviético, desenvolvendo profunda aversão ao comunismo, e migrou para os EUA.

Lá, Ayn Rand se tornou um enorme sucesso por seus romances, como A Revolta de Atlas e A Nascente, que geraram adaptações dramatúrgicas e cinematográficas, popularizando uma concepção filosófica calcada na hostilidade a qualquer gênero de coletivismo e, em consequência, na adoção do mais completo individualismo. Apesar de seus livros de maior impacto serem suas narrativas ficcionais, através de cujos personagens ela ilustrava os princípios do Objetivismo, A Virtude do Egoísmo é uma apresentação mais didática de sua doutrina, posto que se trata de uma coletânea de textos dissertativos publicados nos anos 60, tanto de autoria de Ayn Rand quanto de seu ex-discípulo e ex-par romântico Nathaniel Branden, com quem se desentendeu posteriormente.

Em vez de apreciar artigo por artigo, dedico-me a sintetizar alguns dos princípios expostos no conjunto da obra, perfazendo os diferentes aspectos da filosofia objetivista – por óbvio, sem a menor pretensão de esgotá-la, apenas de introduzir o assunto aos interessados.

Em primeiro lugar, o Objetivismo não é apenas uma corrente liberal, mas se pretende um autêntico paradigma ou filosofia de vida, estabelecendo um norte moral que abrange os diversos aspectos da existência – não apenas a discussão da organização política com vistas a resguardar o indivíduo contra o arbítrio, o que seria a temática mais particular do liberalismo. As orientações sistematizadas por Ayn Rand se pretendem afeitas a qualquer indivíduo, em qualquer lugar e tempo, partindo de uma constatação básica: a de que somos seres racionais.

O ser humano, dispondo da razão, distingue-se por encontrar nessa faculdade o seu meio básico de sobrevivência. Não lhe seria possível sobreviver e realizar a maior parte das operações que realiza em sua vida sem exercitar a razão, ao contrário de outros seres vivos, como os animais e as plantas. Não existem, para o Objetivismo, ideias inatas, logo tudo de que o ser humano dispõe para atuar e decidir o que fazer depende daquilo que aprende. Para que não escolha os caminhos que levam à sua destruição, importa que se oriente por uma ciência ética, corporificada sob a forma de um código fundamentado em leis racionais.

“A ética é uma necessidade metafísica e objetiva da sobrevivência do homem – não pela graça do sobrenatural, de seus vizinhos ou de seus caprichos, mas pela graça da realidade e da natureza da vida”, disse Ayn Rand. Sua ética deve basear-se no exercício do pensamento e do trabalho produtivo. Deve ainda assentar-se, como alicerce primordial, na vida humana como padrão de valor e na própria vida como o propósito maior de cada indivíduo. “O homem deve escolher suas ações, valores e objetivos pelo padrão daquilo que é apropriado para o homem a fim de alcançar, manter, satisfazer e usufruir esse valor último, esse fim em si mesmo, que é sua própria vida”, sintetizou a filósofa.

Da valorização da própria vida, decorre uma série de virtudes elogiadas pelo Objetivismo. A primeira delas, a racionalidade, seria a fonte de todas as demais, sendo, em consequência, o afastamento da consciência e da razão o maior vício que se pode praticar. Por racionalidade, os objetivistas entendem “o reconhecimento e aceitação da razão como sua única fonte de conhecimento, seu único juízo de valores e seu único guia de ação”. À racionalidade, se somariam a independência (“aceitação da responsabilidade de formar seus próprios julgamentos e de viver pelo trabalho de sua própria mente”); a integridade (“nunca sacrificar suas convicções às opiniões ou desejos de outros”); a honestidade (“nunca deve tentar falsear a realidade de qualquer forma”); a justiça (“nunca deve procurar ou conceder o que não obteve ou mereceu, seja em matéria ou em espírito”); a produtividade (“reconhecimento do fato de que o trabalho produtivo é o processo pelo qual a mente humana sustenta a sua vida, o processo que liberta o homem da necessidade de ajustar-se ao seu ambiente”) e o orgulho (“um indivíduo deve conquistar o direito de considerar a si próprio como seu valor mais elevado por meio da realização de sua própria perfeição moral, que é conquistada ao, jamais, aceitar códigos de virtudes irracionais impossíveis de praticar e nunca deixando de praticar as virtudes reconhecidamente racionais”).   

A partir dessas virtudes, Ayn Rand deduziu que o ser humano nunca deve enxergar a si mesmo como um meio para os fins ou para o bem-estar dos outros. Deve enxergar sua vida como um fim em si mesma, o maior de todos os valores, sem se sacrificar pelos outros e sem sacrificar os outros para o seu benefício – dado que, por óbvio, eles também têm o direito ou prerrogativa de enxergar a existência da mesma forma. Deve perseguir a felicidade, vista como “o estado de consciência que surge da realização dos próprios valores”. Porém, isso não significa o apoio a qualquer capricho ou anseio hedonista; ao contrário, o Objetivismo o encoraja a ancorar essa busca da felicidade em meios e propósitos racionais, definidos por seu específico código de ética que se pretende deduzido das exigências para a sobrevivência humana na Terra.

“A ética objetivista defende e apoia orgulhosamente o egoísmo racional, que significa: os valores exigidos pela sobrevivência do homem enquanto homem, ou seja, os valores exigidos pela vida humana – e não os valores produzidos pelos desejos, emoções, ‘aspirações’, sentimentos, caprichos ou necessidades de brutamontes irracionais”, sustentou a filósofa. O bem humano deve ser alcançado sem o sacrifício próprio e sem sacrificar outras pessoas.

O único princípio que deve reger as relações entre os seres humanos é o princípio da troca, mediante a qual não há imposição ou coerção nas relações. Mesmo nas relações afetivas, como a amizade e o amor, que os objetivistas de modo algum condenam, eles enxergam uma relação, sobretudo, de troca, nunca de sacrifício. Quando, por exemplo, um amante arrisca a própria vida por sua amada, o Objetivismo não vê nisso um sacrifício propriamente dito, porque visa à própria felicidade do amante, cuja vida decai em sentido e prazer sem a presença da amada; é produto racional da importância que vota a ela. Por razão similar, os objetivistas não considerariam racional sacrificar a própria vida por um desconhecido, a quem essa importância não é direcionada. O altruísmo, defendido como um valor por inúmeras doutrinas, filosofias e religiões – ainda que o termo em si seja uma concepção do positivista Augusto Comte -, é visto pelos objetivistas como uma “teoria ética que considera o homem como um animal de sacrifício, que sustenta que o homem não tem direito a existir para seu próprio interesse, que servir aos outros é a única justificativa de sua existência, e que o autossacrifício é seu dever, virtude e valor moral mais elevado”. O verdadeiro valor, portanto, estaria no egoísmo racional, no auto interesse ancorado nas bases da racionalidade.

“Nenhum homem deve iniciar o uso da força física contra os outros. Nenhum homem, grupo, sociedade ou governo tem o direito de assumir o papel de criminoso e iniciar o uso da compulsão física contra qualquer homem. Os homens têm o direito de recorrer à força física apenas em retaliação e somente contra aqueles que iniciam seu uso”, estabeleceu Ayn Rand, acrescentando que o governo ou Estado deve existir – ela era francamente contrária ao anarquismo propriamente dito, visto como “uma ingênua abstração flutuante”, deixando a sociedade “a mercê do primeiro criminoso que surgisse, arrastando-a para um caos de conflito de gangues” – apenas para proteger os direitos individuais à vida, à liberdade, à propriedade privada e à busca pela felicidade. Os direitos de propriedade, importa dizer, constituem condição inescapável para os demais direitos ou propósitos do ser humano em sociedade.

Dessa construção teórica, o Objetivismo deduz que o único sistema econômico condizente com os seus princípios morais é o capitalismo laissez-faire – sem relativizações. O governo, na visão de Ayn Rand, se deveria limitar em absoluto à polícia, às forças armadas e aos tribunais, julgando com base em leis objetivas, e não seria, ao contrário de quase todas as demais vertentes do liberalismo, financiado através de impostos, mas de contribuições voluntárias, com os mais abastados mantendo seus serviços para os que não podem ou não querem pagar. Em sua visão, contudo, os que podem desejariam fazê-lo, em virtude da utilidade que demonstrariam e da dimensão reduzida da máquina necessária para operá-los.

Contrário a qualquer crença mística ou baseada alegadamente em uma revelação ou algo que não seja puramente racional, o Objetivismo é também contrário ao que usualmente se designa por pragmatismo, visto por Ayn Rand como implicando a negociação dos fatos objetivos, ou, em outros termos, a violação das virtudes da integridade e da honestidade – “não pode haver acordo algum sobre princípios morais”, ela diria. Isso se aplicaria, por exemplo, a qualquer suporte a políticas assistencialistas por parte do Estado para benefício dos menos afortunados; um objetivista não aceitaria tal concessão, que dependeria da coerção, inerentemente imoral, sobre outros indivíduos de quem os recursos seriam espoliados. Portanto, apostaria todas as fichas na caridade – por definição, voluntária. Do fato de certos propósitos serem desejáveis, como a eliminação da pobreza, não se segue que todos os meios pretendidos para atingi-los possam ser sancionados moralmente.

Uma das mais enfáticas adversárias do socialismo, de cuja tirania foi vítima, Ayn Rand era também contrária à “inflação de direitos” que “progressistas” e sociais-democratas introduziram através das Constituições, projetos de lei e parlamentos. Os EUA, em sua visão, “foram a primeira sociedade moral da história”, aproximando-se do seu ideal ao sustentar os direitos verdadeiros, os individuais, e enaltecer o auto interesse e o capitalismo. Os únicos direitos “econômicos” do ser humano são os de propriedade e livre comércio, para perseguir sua felicidade e seus objetivos através das trocas livres. Ela se posicionou, por fim, de forma vigorosamente contrária ao coletivismo medonho do racismo, de que o liberalismo é o mais eficaz opositor.

Pessoalmente, sempre deixei claro que não sou objetivista. Não cabe empreender uma longa digressão acerca das razões, bastando dizer que nunca fui particularmente influenciado de forma direta pelo pensamento de Ayn Rand. Também enxergo problemas em sua natureza muito mais abrangente, como uma filosofia geral, o que entra em choque com outras concepções pessoais que não dizem respeito diretamente à problemática liberal; por exemplo, um indivíduo que, como eu, tiver convicções espiritualistas de qualquer natureza, rejeitadas enfaticamente por Ayn Rand, terá enorme dificuldade em considerar que se deva erigir todo um sistema ético válido com base nesta vida – “biológica”, material – como o valor supremo em vez da vida espiritual, que, a nosso ver, é a principal.

De qualquer modo, os objetivistas estão entre os ativistas mais ardorosos do movimento liberal, no Brasil como em outros países, e entre os mais participativos colaboradores e parceiros das instituições de difusão de nossas agendas comuns. É indiscutível para qualquer observador honesto que a filosofia de Ayn Rand inspirou intrépidas personalidades a se lançarem em defesa da causa e que é uma presença relevante no debate teórico do liberalismo contemporâneo.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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