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A imaturidade da política de oposição

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E é assim que, cem anos depois, o nazismo volta a fazer parte dos noticiários e do assunto do povo, entrando em nossas casas e em nossos assuntos sem que nos demos conta, impondo, desagradavelmente, sua fétida presença. Dessa vez, no entanto, sem bombardeios, sem blietzkrieg, queima de livros, campos de concentração ou juventude hitlerista.

Cem anos depois, mais uma vez nos vemos obrigados a negar ou apoiar, assim, implacavelmente, o nazismo; não por imposição do próprio regime, do matar ou morrer, mas por imposição das pessoas que nos cercam rotineiramente.

O motivo, no entanto, me espantou – eu que não sou dado a modernidades e dificilmente as conheço: ao que parece, Monark, sócio de um podcast chamado Flow, em uma entrevista com Kim Kataguiri e Tabata Amaral, disse que naquele assunto de liberdades era mais maluco que ambos os convidados e que, para ele, deveria existir um partido nazista.

A reação popular foi feroz; campanhas foram feitas contra o nazismo, discursos, Monark foi demitido de seu próprio podcast, textos foram escritos sobre liberdade de expressão, textos foram escritos sobre o nazismo, Kim Kataguiri pediu desculpas, todos, sim, todos tiveram que falar algo, neste momento angular, onde só a vitória sobre o nazismo poderia garantir nossa sobrevivência. Projetos de lei foram feitos, alguns mais antigos voltaram à pauta, liberais se aproveitaram para criticar o comunismo, Eduardo Bolsonaro voltou a promover a sua intenção de criminalizar ambos. Essa foi, definitivamente, nossa hora mais importante – até ontem, hoje já temos uma pauta nova.

Nem Winston Churchill foi tão tenaz contra o nazismo; nem Neville Chamberlain foi tão inoperante. Em meio ao fervilhar de opiniões contrárias, cada um com a intenção de parecer menos nazista do que o outro, mais contrário ao nazismo do que o outro, entre brados loquazes e discursos vaidosos, um argumento central, um dos poucos que pôde ser racionalmente inteligido, foi encontrado: o de que devemos repudiar qualquer tipo de manifestação sobre o nazismo, por menor que seja, pois assim ele não voltará… Será?

Em vistas de não ser enfadonho, anteciparei os pontos pelos quais acredito que esse argumento não tem o menor sentido e é, de certo modo, prejudicial a tudo aquilo que prezamos – ou prezávamos, ou ao menos deveríamos ainda prezar: i) o mal se manifesta de diversas formas e combater o nazismo é anacrônico e superficial, ii) proibir certas ideias é dar a oportunidade de que elas cresçam na clandestinidade, iii) a vontade de erradicar o mal pela raiz é pura vaidade, utopia e incapacidade de aproveitar a própria liberdade e iv) a maldade é, em sua grande maioria, um erro, não uma opção, de forma que às vezes combatendo o mal praticamo-lo nós.

Sim, combater o nazismo é algo extremamente anacrônico, ultrapassado e, deve-se dizer, superficial. Anacrônico porque o nazismo enquanto movimento político da primeira metade do séc. XX já não tem mais força ou crédito para que possa efetivamente ascender ao poder. Se antes desfrutava de um apoio silencioso vindo do ressentimento teutônico e um certo respaldo advindo do pensamento cientificista da época, hoje em dia aquele nazismo já não representa nada mais do que história.

Desacreditados pela derrota na Segunda Guerra Mundial, aquele símbolo, aquela bandeira, com aqueles ideais, já não conseguem mais fazer frente ao justo asco público que todas as pessoas sensatas possuem contra o nazismo. Levantar aquela bandeira, ostentar aquele símbolo, por si só, é fadar qualquer tipo de intenção de ascensão ao poder ao inevitável fracasso.

O apego que as gerações atuais têm a esses símbolos nada mais é do que pura nostalgia. Tanto aqueles poucos loucos que ainda os ufanam, ou aqueles que os enfrentam fielmente – e ainda os temem -, são vítimas de massiva e repetitiva propaganda antinazista feita no pós-guerra, que por gerações e gerações nos fez atribuir o arquétipo de herói àqueles que lutam contra a suástica e a pecha de vilões a todos aqueles que a empunham. Todos querem ser heróis, ou vilões, de uma guerra que já acabou. Se eles se colocariam com seus barcos ao mar envolto em bombardeios para retirar os soldados de Dunkirk, aí é outra história.

Dizer que odeia algo odioso não torna ninguém honesto ou bom, nem mesmo sensato. Principalmente se o que foi dito não passa de mera repetição e técnica de inserção no meio social. É por slogans e chavões, repetições impensadas de efeito manada, que frases como Heil Hitler foram ditas. O totalitarismo precisa de massas. Todos imaginam-se como August Landmesser[1] quando ferozmente bradam contra o nazismo. Acontece, no entanto, que ele não estava em maioria e dificilmente fora bem-visto pelos seus pares por aquele gesto naquela época – muito ao contrário dos que hoje em dia fazem sua vida demonstrando publicamente boas intenções.

Hannah Arendt já no ensinou que “o maior mal perpetrado é o mal cometido por ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser pessoa” – ou seja, que recusa em decidir e se joga, desesperadamente, nos braços da irracional opinião social e de suas verdades insinceras, fazendo tudo o que será agradável para a maioria, como um cachorro que faz um ou dois truques para obter um agrado.

Dizem que quando está sentado numa mesa um nazista e dez não se levantam, temos onze nazistas. Isso quer dizer que, se não há nenhum nazista à mesa, mas há um estuprador, um assassino, um estelionatário, um adúltero, um senhor de escravos, um traficante, um torturador, um ditador, um pedófilo e um rufião, tudo bem, ninguém precisa levantar-se; todos os dez podem jantar em paz.

Travestem-se de heróis, mas desconhecem o inimigo. O nazismo é um ente histórico, uma manifestação circunstancial, adequado para aquelas circunstâncias específicas de tempo, lugar, pensamento social, da época em que nasceu. As ideias que sustentam esse ente histórico, no entanto, são muito mais reais, muito mais antigas e muito mais perigosas do que um movimento político já morto. Complexo, maléfico, o nazismo é facilmente definível em sua superficialidade, mas aquilo que o motiva, um apanhado de todas as ideias perigosas e obscuras já pensadas pelo ser humano em uma configuração que, naquele momento, poderia ter sucesso; isso é indefinível. O mal se manifesta pela oportunidade, de acordo com a oportunidade, veste-se a caráter – sempre.

O que ocorreu naquele momento histórico é que em uma mesa com um nazista sentaram-se todas as maldades e frustrações momentâneas, cada uma com seu histórico e com suas razões. Se antes podiam ser compreendidas e combatidas, uma a uma, sentadas à mesa com o nazista tornaram-se simplesmente nazistas. Número faz poder, bruto, tosco, cruel. Não se conversa com uma multidão, pois, se a boca diz o que o coração está cheio, milhares de corações formam um brado, uma ordem, um grito de guerra, incompreensível, gauche. E esse é o mal da massa: ela engole individualidades e excreta amorfa monstruosidade.

Já disse uma vez em outro ensaio meu, “O Pecado e o Pecador”: ideias não são moldáveis pelos homens, mas homens se moldam pelas ideias. Homens precisam das ideias para preencher suas existências, ideias precisam dos homens para povoar o mundo. A suástica representa o mal, mas o mal não se vê representado pela suástica – é só mais um pequeno caso de amor. O mal pode se manifestar pela cruz, pela espada, pelo cetro, pela coroa, pelo mercado ou pela gravata. Proibir a suástica é como proibir a guilhotina para conter revoluções, proibir a prisão para conter condenações, ou proibir as armas para conter os assassinatos. Uma estupidez tamanha e um erro adolescente.

Enquanto em nossa tacanhez nos dirigimos ao que se vê – a certos homens, a certos símbolos –, flexível, maleável, o mal se atualiza. Busca novas formas de se manifestar, novas roupagens para se debruçar sobre nosso mundo. Cada vez que inutilizamos um instrumento utilizado pelo mal com a nossa experiência, o mal busca por um novo. Não precisa ir muito longe para entender isso; a própria história ensina.

Antes de ascender ao poder, o partido nazista tinha sido banido da Bavária. Após uma tentativa frustrada de golpe em Munique – o Putsch da Cervejaria -, Hitler foi preso e o partido nazista proibido de atuar. Mesmo proibido, o partido nazista continuou atuando por meio de parcerias com outros partidos ainda ativos, galgando espaço por entre os bastidores do poder. Se antes era só um partido, depois de banido se tornou o partido único.

A tática do silenciamento só é efetiva contra aqueles que querem agir por meio do discurso, assim como a tática de fechar a porta só serve para aqueles que querem entrar pela porta. O mal quer entrar; seja pela porta, seja pela janela, seja pelo esgoto. Ideias nefastas precisam da obscuridade para se reproduzir e florescer, precisam de um ambiente inóspito o suficiente para que boas ideias não entrem, um ambiente protegido de qualquer intervenção delas; precisam de silêncio.

Se quer ver um apanhado incongruente de más ideias se tornar um tratado, cerre-o em um calabouço. Hitler escreveu o Mein Kampf enquanto estava preso na fortaleza de Landsberg, Antonio Gramsci os Cadernos do Cárcere em Turi, o Marques de Sade, nas masmorras de Vincennes, o Diálogo entre um Padre e um Moribundo. É como Albert Camus disse, “a inteligência acorrentada perde em lucidez o que ganha em fúria”.

A inevitabilidade do mal não é motivo suficiente para que deixemos de combatê-lo, no entanto. Ocorre que, para combater o mal, deve-se combatê-lo da forma correta – o bom combate. Quando o que se busca combater são ideias, o campo de batalha correto é a retórica. Hitler foi inicialmente ignorado pela grande maioria das pessoas. Uma das poucas a perceber o mal nas ideias do pequeno pintor foi exatamente aquela que viria a derrotá-lo no campo de batalha: Winston Churchill. E foi ele – antes de chocar o mundo ao dizer que a única forma de enfrentar Hitler seria fazer guerra por terra, mar e ar, com todas as forças e com toda a força que Deus deu – que convidou o Führer para um chá, enquanto suas ideias eram só ideias – perigosas, porém, ideias. Quem recusou foi Hitler, é claro; afinal, é disso que precisam as más ideias – silêncio para crescerem, longe de qualquer boa ideia com que possam competir. Já no poder, Hitler convidou Churchill diversas vezes; mas já não era mais tempo para conversa – o tigre já estava faminto[2].

O tempo de conversa deve existir, em algum momento, já que más ideias nascem das mesmas cabeças que podem gerar grandiosas ideias. Nunca se sabe se de um potencial ditador pode nascer um grande empresário, um santo ou um líder honesto; ou vice-versa. Nunca se sabe, sendo livres como somos, e falíveis portanto – falíveis até em sermos falhos. A única forma de combater maus sentimentos é incentivando o cultivo de bons sentimentos, já diria C.S. Lewis; mas, ainda assim, sempre há a chance de que más ideias corram soltas pelo mundo. Agora, se a intenção for abolir más ideias, a única forma possível é abolindo a possibilidade de boas ideias, e a única forma de abolir a possibilidade de boas ideias é abolindo o pensamento.

Não, o nazismo nunca terá suas raízes cortadas, pois, paradoxalmente, é na liberdade humana que reside toda a maldade que irrigou essa triste ideologia. Foi essa triste ideologia, junto do bolchevismo, que – vejam só – acreditou que um dia poderia cortar as raízes do que consideravam maus pensamentos. É a sina de todo homem vaidoso, fracassado e medíocre: achar que é inteligente e bom o suficiente para dizer o que pode ser dito e o que não pode, calando outros homens não com discurso, mas com ordens.

É aí que percebemos que, quão mais cruel é uma ideologia, mais controle ela busca exercer sobre as ideias que circulam pelo mundo; e que, quanto mais controle ela tenta exercer, maior o medo que ela tem de certas ideias; seja ele um medo justo ou injusto. O nazismo não foi uma ideologia baseada no medo somente por aquilo que inspirava: foi uma ideologia baseada no medo que os nazistas tinham. É como Heinrich Heine disse: primeiro queimam-se livros na expectativa de matar certas ideias – depois, ao falhar, queimam-se homens na mesma expectativa; mas sempre, sempre, começa-se com o medo; medo de certas ideias – é ele o combustível de todas as tochas e todas as fogueiras.

Medo de convidar o mal para sentar-se à sua mesa para um chá, mesmo que ainda pequeno, como Churchill fez. Medo de ser superado pelo mal em um debate, medo de ver o mal triunfar sob a própria inoperância. Medo de se ver fraco e incapaz de lidar com o mal, de sucumbir aos seus argumentos, de se ver convencido por ele. Medo de morrer em honra do que é certo. Mas não é o triunfo do mal o problema. O medo é de se ver superado, de se ver vencido, de se ver fraco – vaidade. Buscando não ser vencido pelo mal, esses homens acabam fazendo pactos com ele – afinal, se não consegue vencê-lo, junte-se a ele. Temendo verem o mal triunfar sobre sua inoperância, esses homens operam para que o mal triunfe.

Vi nestes dois anos liberais defendendo absurdos políticos por medo da morte. Guardei o nome de todos. Fiquei sabendo de liberais defendendo a subida ao poder de Hitler ou de Getúlio Vargas por medo do comunismo. Guardemos o nome de todos. Advogados defendendo o caos jurídico na Revolução Francesa; católicos apoiando a pena de morte, como a de Jesus, ainda hoje. Guardemos o nome de todos. Mas saibamos, antes de tudo, que mesmo o nazista, mesmo o comunista, defendem o que defendem por medo; e medo é o que, acidentalmente, pode nos tornar como eles – inclusive o medo deles.

Se tem uma coisa que aprendi com G.K. Chesterton é que, quando eu me levanto de uma mesa em que se sentava um nazista, levantam-se um comunista, um nazista, um estelionatário, um estuprador, um adúltero, um assassino e um ditador, todos em potencial, todos comigo. Não é com o nazista que ficou à mesa que eu devo me preocupar; ficou lá, e a ele eu reconheço – a suástica o denuncia. Já a vilania que habita em mim, é dela que eu devo ter medo, pois é muito mais difícil de reconhecer.

Todos sabemos o que um nazista é capaz de fazer com aqueles que julga inimigos; sobre o que nós somos capazes de fazer sob desculpas bem elaboradas com aqueles que julgamos inimigos, essa é a grande questão. Em uma noite, a Noite dos Longos Punhais, Adolf Hitler deixou de ser um formulador de desculpas para se tornar um assassino. Temamos, pois, mesmo que não estejamos preparados para essa noite, não há dia tão longo que dure para sempre.

[1] O homem que se recusou a fazer a saudação nazista tirada em 13 de junho de 1936.

[2] Dictators ride to an fro on tigers form which they dare not dismount. And the tigers are getting hungry” CHURCHILL, While England Slept

*Igor Damous é advogado criminal.

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