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A ética pública liberal e a crítica à utopia socialista

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Talvez Alexis de Tocqueville (1805-1859) tenha sido um dos pensadores sociais e homens de ação que realizou, de forma mais completa, a dupla feição da ética estudada por Max Weber (ética de convicção e de responsabilidade) [cf. Weber, 1972]. O pensador francês, efetivamente, ancorou tanto numa quanto noutra. Tocqueville cultua o ideal da ética de convicção quando reflete acerca do seu compromisso como intelectual, mas desenvolve, outrossim, interessante conceito de ética de responsabilidade em relação à problemática da pobreza.

É meu propósito, neste breve ensaio, abordar ambos os aspectos mencionados, enfatizando a atualidade do modelo ético tocquevilliano para o século XXI. Na parte final, destacarei a crítica efetivada pelo pensamento liberal contemporâneo em relação à pervivência da utopia socialista. Referir-me-ei, particularmente, à última obra do pensador francês Jean-François Revel (1924-2006) intitulada: A Grande Parada.

1 – A ética intelectual de Tocqueville, atrelada à defesa incondicional da liberdade

Tocqueville considerava que o seu primeiro compromisso como intelectual consistia no esclarecimento e na divulgação da verdade histórica, que conduzisse à conquista da liberdade para todos os franceses. Neste seu empenho não admitia negociação. Daí as suas fortes críticas aos socialistas, aos bonapartistas, aos seus pares, os nobres (que tinham ancorado numa proposta de volta ao Ancien Régime), e aos próprios doutrinários, seus mestres, que tinham fechado as conquistas liberais na gaiola de ouro do formalismo jurídico e do elitismo burguês. Destaquemos, de entrada, a forma toda peculiar em que Tocqueville entende a democracia: como conquista da liberdade por parte de todos.

Três pontos saltam à vista na ética intelectual tocquevilliana: em primeiro lugar, a fundamentação das suas convicções morais no cristianismo, do qual o nosso autor tira o princípio fundamental de que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade e, portanto, podem aspirar aos benefícios da liberdade. Em segundo lugar, a solidariedade com os seus concidadãos, que correm perigo de cair nas mãos do despotismo, em lugar de conquistar a almejada liberdade. Em terceiro lugar, o dever de testemunhar a verdade histórica que o nosso autor descobriu na sua viagem à América. Essa verdade histórica resume-se na seguinte afirmação: a liberdade democrática é possível!

No tocante ao primeiro ponto, Tocqueville [1977: 329] escreve o seguinte: “Todos os grandes escritores da Antiguidade faziam parte da aristocracia dos senhores, ou pelo menos viam essa aristocracia estabelecida sem contestação ante os seus olhos; o seu espírito, depois de se haver expandido em várias direções, achou-se, pois, limitado por aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e iguais”.

Em relação ao segundo ponto, assim escrevia Tocqueville (em carta inédita a Orglandes, de 24/11/1834) [apud Mélonio, 1993: 30]: “Eu creio que cada um de nós deve prestar contas à sociedade, tanto dos seus pensamentos quanto das suas forças. Quando vemos os nossos semelhantes em perigo, é obrigação de cada um ir em socorro deles”.

Em relação ao terceiro ponto, o dever de testemunhar a verdade histórica descoberta na América, Françoise Mélonio [1993: 30-31] escreve: “Tocqueville regressa, pois, da América, investido do dever de testemunhar. O primeiro volume da Démocratie, que publica em 1835, recebe desse objetivo apologético os traços que fazem dele o breviário da democracia moderna. A Démocratie é uma obra de auxílio ao povo em perigo (…). Ora, há urgência. Na Europa, os tempos se aproximam do triunfo da democracia. Tocqueville assume a postura de um São João Batista da democracia clamando no deserto: acordai antes que seja tarde demais!; o movimento democrático não é, ainda, suficientemente rápido como para desistir de dirigi-lo. A sorte [das nações europeias] está nas suas mãos, mas bem cedo lhes escapa. E que não se diga que é tarde demais para tentar. Contra os pregoeiros de desgraças, os resignados, Tocqueville faz um apelo aos franceses para que, sem delongas, tomem o seu destino nas próprias mãos, a exemplo da América. Como os profetas e os pregadores, Tocqueville argumenta com os riscos que representa uma conversão tardia”.

 2 – A ética política de Tocqueville, alicerçada no princípio da benevolência

O pensador francês elaborou a sua concepção de uma ética política ao discutir a problemática da pobreza na sociedade europeia da sua época. As suas reflexões a respeito estão contidas em dois escritos de 1835, intitulados Memória sobre a pobreza e Segundo artigo sobre a pobreza, que foram redigidos para a Sociedade Acadêmica de Cherbourg e que integram os seus Escritos Acadêmicos. Na edição das Obras de Tocqueville [primeiro volume, 1991], preparada por André Jardin, Françoise Mélonio e Lise Queffélec, outros dois ensaios de Tocqueville foram escolhidos: o Discurso à Academia Francesa de 1842 sobre a história da França e o Discurso à Academia de Ciências morais e políticas de 1852, sobre a ciência política. A finalidade desses Escritos Acadêmicos era, segundo aponta Françoise Mélonio [1991: I, 1626], discutir “como estruturar a sociedade moderna, aglutinando os cidadãos desunidos, que a hierarquia de privilégios do Antigo Regime não organizava mais”.

Tocqueville analisa a problemática da pobreza no contexto mais amplo da ciência social da época, inspirada na fisiologia social de Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq d’Azyr, Saint-Simon, etc. [cf. Rosanvallon, 1985: 22; Mélonio, 1993: 33 seg.; Vélez-Rodríguez, 1997c: 22-45]. É bem verdade que o nosso autor supera qualquer pretensão cientificista, deixando de render tributo, portanto, ao vício do historicismo, mas utiliza o símil do corpo enfermo, para se referir à problemática social. Em relação ao mencionado fenômeno na Inglaterra, por exemplo, o nosso autor escreve: “(…) a pobreza, essa praga horrenda e imensa, que contaminou um corpo cheio de força e de saúde” [Tocqueville, 1991: I, 1174].

Fiel ao arquétipo epistemológico mencionado, Tocqueville analisa a problemática da pobreza em três etapas: sintomatologia, tratamento errado e tratamento certo. Em relação à primeira etapa, o pensador francês destaca um fato paradoxal: essa doença somente é visível em organismos fortes. As nações que caminham rumo à modernidade, como a Inglaterra e a França, apresentam o contraste entre geração da riqueza e pobreza, contraste que não é visível onde a pobreza é a norma e a riqueza a exceção, como na Espanha ou em Portugal. O nosso autor dedica especial atenção ao estudo da doença na Inglaterra, país que conseguiu desenvolver os recursos econômicos de forma a permitir à maioria dos seus cidadãos a conquista de uma vida confortável e segura. Um sexto da população britânica, no sentir de Tocqueville, é marginalizada pela pobreza, mas justamente por estar a maioria dos cidadãos em situação de conforto econômico, a marginalização do proletário é mais visível entre os ingleses do que na própria França.

No que tange à França da sua época, Tocqueville destaca que acontece algo semelhante: percebe-se mais a pobreza ali onde houve maior desenvolvimento. A respeito, o nosso autor escreve: “A média dos indigentes da França (…) é de um pobre para cada vinte habitantes. Mas notam-se enormes diferenças entre as várias partes do reino. O departamento do Norte que é sem dúvida o mais rico, o mais povoado e o mais desenvolvido em todos os campos, conta perto de uma sexta parte da sua população que recebe o apoio da caridade pública. Na região de la Creuse, o mais pobre e o menos industrializado de todos os nossos departamentos, somente se conta um indigente para cada cinqüenta e oito habitantes. Nessa estatística, a Mancha é indicada como possuindo um pobre para cada vinte e seis habitantes”. [Tocqueville, 1991: I, 1156].

Em relação à segunda etapa na discussão da problemática da pobreza (o tratamento errado dela), Tocqueville chama a atenção para a confusão que a cultura humana termina estabelecendo entre necessidades artificiais e essenciais. O nosso pensador considera que o progresso da civilização leva, também, a que a sociedade busque aliviar as necessidades dos que se sentem carentes. “Os progressos da civilização — frisa a respeito [Tocqueville, 1991: I, 1164] — não expõem somente os homens a muitas novas misérias; levam ainda a sociedade a aliviar misérias que, numa sociedade menos evoluída, ninguém sonharia em satisfazer. Num país onde a maioria está malvestida, mal alojada, mal alimentada, quem pensa em dar ao pobre uma roupa limpa, um alimento fresco, uma moradia cômoda? Entre os ingleses, onde o grande número possuidor de todos esses bens considera como um mal horrível não os ter, a sociedade acha que deve socorrer os que estão privados desses bens, e cuida de desgraças que ela própria não descobriria em outras sociedades”.

Essa tendência encontrou expressão na Inglaterra, pela primeira vez, na lei de Elizabeth I, que dispunha a nomeação, em cada paróquia, de inspetores dos pobres (1601). Essa medida vinha responder à supressão, por Henrique VIII (1491-1547), de todas as comunidades dedicadas à caridade. Essa foi a remota origem da preocupação do governo inglês com a questão da pobreza, que nos países protestantes passou a ser responsabilidade do Estado, enquanto no universo católico tradicionalmente foi incumbência da caridade privada [Tocqueville, 1991: I, 1164-1165].

Tocqueville é claro na sua crítica à forma estatal da caridade: para ele, toda medida contra a pobreza, alicerçada numa estrutura burocrática permanente, produz a preguiça social. O nosso autor se antecipava profeticamente das dificuldades encontradas pelo Welfare State na erradicação da pobreza. Eis as palavras de Tocqueville em relação ao tópico em apreço: “Toda medida que alicerça a caridade legal sobre uma base permanente e que lhe confere uma forma administrativa, cria, pois, uma classe ociosa e preguiçosa, que vive às custas da classe industrial e trabalhadora. Essa é, senão o seu resultado imediato, pelo menos a sua consequência inevitável. Ela reproduz todos os vícios do sistema monástico, menos as altas ideias de moralidade e de religião que amiúde vinham se juntar a ele. Uma lei semelhante é um germe venenoso, depositado no seio da legislação; as circunstâncias, como na América, podem impedir o germe de se desenvolver rapidamente, mas não chegam a destruí-lo, e, se a atual geração escapa à sua influência, ele devorará o bem-estar das gerações do futuro” [Tocqueville 1991: I, 1170].

Tocqueville formula os elementos básicos do que poderíamos chamar de princípio da beneficência na ética pública, quando apresenta as suas soluções, na terceira etapa da discussão da problemática da pobreza. O nosso pensador parte da definição moral do princípio da beneficência. Esse princípio alicerça-se numa espécie de imperativo categórico: deve poder se aplicar universalmente e as suas consequências devem estar de acordo com a moral. Eis as suas palavras a respeito: “Certamente estou longe de pretender colocar aqui em tela de juízo a beneficência que é, ao mesmo tempo, a mais natural, a mais bela e a mais santa das virtudes. Mas penso que não há princípio tão bom cujas consequências não possam ser todas admitidas como boas. Creio que a beneficência deve ser uma virtude máscula e fundada racionalmente, não um gosto frágil e irrefletido; que não se deve fazer o bem que mais agrada àquele que o faz, mas o mais verdadeiramente útil àquele que o recebe; não aquele que alivia da forma mais completa as misérias de alguns, mas aquele que serve ao bem-estar do maior número. Eu não saberia calcular a beneficência senão desta forma; compreendida num outro sentido, ela ainda é um instinto sublime, mas não merece a meu ver o nome de virtude [Tocqueville, 1991: I, 1177-1178].

A seguir, o nosso autor discute se a solução da problemática da pobreza mediante a aplicação do princípio da beneficência pode-se dar pelo caminho da caridade veiculada pela iniciativa individual. Tocqueville não duvida em reconhecer a utilidade dessa modalidade de ação social; mas pensa que é insuficiente para equacionar o problema da pobreza. Em relação a este ponto, o nosso autor escreve: “Resta, pois, a caridade particular; ela produz efeitos úteis. A sua própria fragilidade garante contra os seus perigos; ela alivia muitas misérias e não faz nascer outras. Mas, face ao desenvolvimento progressivo das classes industriais e diante de todos os males que a civilização mistura aos bens inestimáveis que ela produz, a caridade individual parece bem fraca. Suficiente na Idade Média, quando o ardor religioso lhe dava uma imensa energia, e enquanto a sua tarefa era menos difícil de cumprir, continuaria a sê-lo nos nossos dias, quando o fardo que ela carrega é pesado e no momento em que as suas forças são frágeis? A caridade individual é um agente poderoso que a sociedade não pode desprezar, mas no qual seria imprudente centrar todas as esperanças. Ela é apenas um dos meios e não poderia sê-lo exclusivamente” [Tocqueville, 1991: I, 1179].

O pensador francês examina, a seguir, se o caminho para o equacionamento da problemática da pobreza seria o da associação das pessoas caridosas. Esse tipo de solução, ao regularizar os auxílios, poderia dar à beneficência individual mais atividade e maior poder. Tocqueville não deixa de reconhecer a enorme utilidade da colaboração entre este tipo de ação e a “caridade pública”, ministrada pelo Estado. Mas, além de reconhecer a fragilidade de soluções necessariamente temporárias, que se organizam nos momentos das grandes calamidades, considera que a “esmola do Estado” deve ser tão passageira, tão instantânea e tão imprevisível quanto as calamidades que busca remediar [Tocqueville, 1991: I, 1178].

O nosso pensador enxerga uma solução mais larga. Trata-se da formulação de uma política social que abarque três grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária dos camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo moderno pelo sistema produtivo.

A propósito deste ponto, escreve Tocqueville [1991: I, 1180]: “(…) Após ter sonhado em aliviar os males, não seria útil buscar como preveni-los? Não seria possível impedir o rápido deslocamento da população, de tal forma que os homens não abandonem a terra e não se mudem para a indústria, senão quando esta possa responder mais facilmente às suas necessidades? A soma das riquezas nacionais não pode continuar a aumentar, sem que uma parte dos que produzem essas riquezas tenham que amaldiçoar a prosperidade que fazem nascer? É impossível estabelecer um relacionamento mais fixo e mais regular entre a produção e o consumo das matérias manufaturadas? Não se pode facilitar às classes operárias a acumulação da poupança que, nos tempos de calamidade industrial, lhes permita esperar, sem morrer, o retorno da fortuna?”

No fundo da proposta tocquevilliana há três convicções de profunda fé liberal: em primeiro lugar, é possível, mediante uma inteligente legislação, criar os mecanismos institucionais que permitam corrigir os desvios do sistema produtivo, a fim de torná-lo mais justo, de acordo com o ideal democrático; em segundo lugar, a legislação deve atender à educação do homem, que é o meio adequado para lhe permitir desenvolver a sua inteligência; em terceiro lugar, a legislação deve-se voltar, também, para a democratização da propriedade, que é o meio através do qual os pobres podem recuperar a dignidade perdida, a sua liberdade, a fim de que se integrem produtivamente à sociedade moderna.

Em relação à educação, frisa Tocqueville: “Entendo (…) a caridade pública como abrir escolas para os filhos dos pobres a fim de fornecer gratuitamente à inteligência os meios de adquirir, mediante o trabalho, os bens do corpo”. Já no que tange à legislação que democratize a propriedade, o nosso pensador destaca dois tipos de medidas: umas, dirigidas ao homem do campo, a fim de evitar o êxodo rural; outras, dirigidas ao operariado urbano, a fim de estimular, nele, o sentido de responsabilidade, mediante o desenvolvimento da poupança.

A respeito do primeiro aspecto, escreve Tocqueville [1991: I, 1183-1184]: “Considero que entre os meios de dar aos homens os sentimentos da ordem da atividade e da economia, não conheço um mais poderoso que o de lhes facilitar o acesso à propriedade fundiária (…). O meio mais eficaz de prevenir a pobreza nas classes agrícolas é, pois, com certeza, a divisão da propriedade fundiária. Essa divisão existe entre nós, na França, e não devemos temer, pois, que se instalem, aqui, grandes e permanentes misérias. Mas pode-se ainda melhorar muito o conforto dessas classes e tornar os males individuais menos cruéis e mais raros. É dever do governo e das gentes de bem trabalhar para que isso aconteça”.

O nosso pensador considerava que, no que tange à divisão fundiária, o problema era muito grande na Inglaterra, devido à concentração de terras em poucas mãos. Os camponeses despojados das suas pequenas propriedades iam para as cidades engrossar o exército de proletários. A expansão da pequena propriedade fundiária na França, de outro lado, não foi obra da Revolução de 1789, mas ocorreu paulatinamente ao longo dos séculos XVII e XVIII, como paradoxal efeito do desmantelamento centralizador das instituições feudais. O nosso autor dedicou uma longa análise ao fenômeno na sua obra O Antigo Regime e a Revolução [Tocqueville, 1988: 117-127; 211-227; 259-269].

No que tange à legislação que deveria estimular no operariado urbano o sentimento de responsabilidade, Tocqueville [1991: I, 1187] escreve: “A meu modo de ver, o problema a ser resolvido é este: como encontrar um meio de dar ao operariado industrial, bem como ao pequeno agricultor, o espírito e os hábitos da propriedade. Dois meios principais apresentam-se: o primeiro (e à primeira vista o mais eficaz), consistiria em estimular no operariado o surgimento de um interesse pessoal na sua fábrica. Isso produziria, nas classes industriais, efeitos semelhantes aos que enseja a divisão da propriedade fundiária na classe agrícola”.

O nosso autor examina detalhadamente como se poderia dar essa solução na França da sua época. Considera que, embora ideal, a participação do operariado na gestão e nos lucros das empresas é uma medida que, pela excessiva politização dos sindicatos, não tem sido possível instaurar; mas acha que, no futuro, mediante o amadurecimento da classe operária, graças a um sindicalismo mais evoluído e ao desenvolvimento da instrução, será possível chegar a esse tipo de participação, que tornaria o operário efetivamente proprietário no seio das indústrias. Por enquanto, Tocqueville considera que a solução é estimular a poupança, mediante uma adequada política salarial e a criação de mecanismos financeiros que a tornem segura e atraente aos trabalhadores.

A respeito, o nosso autor frisa: “Posto que não é possível dar aos operários um interesse de propriedade na fábrica, pode-se, ao menos, facilitar-lhes, à sombra dos salários que retiram da fábrica, a criação de uma propriedade independente. Favorecer a poupança sobre os salários e oferecer aos operários um método fácil e seguro de capitalizar as suas poupanças e de fazê-las produzir lucros, tais, são, pois, os únicos meios de que a sociedade pode se servir, nos nossos dias, no esforço de combater os maus efeitos da concentração das propriedades mobiliárias nas mesmas mãos, a fim de dar à classe industrial o espírito e os hábitos da propriedade, que uma grande porção da classe agrícola já possui. Toda a questão reduz-se, pois, a buscar os meios que possam permitir ao pobre capitalizar e tornar produtivas as suas poupanças” [Tocqueville, 1991: I, 1188].

Qual seria o mecanismo financeiro ideal, na França, para estimular e gerir a poupança dos trabalhadores? O nosso autor é cético quanto à possibilidade de o Estado desempenhar a contento essa função, devido aos seus incontroláveis gastos e às desgraças que a imprevidência do Leviatã tem causado na história do país. A respeito, escreve: “Depois de cem anos, o Estado somente produziu, mais de uma vez, a falência: o Antigo Regime a produziu, a Convenção também. Durante os últimos cinquenta anos o governo da França mudou radicalmente sete vezes e foi reformado em muitas outras oportunidades. Durante esse período, os franceses experimentaram 23 anos de guerra terrível e duas invasões quase totais do seu território. É triste recordar esses fatos, mas a prudência exige que eles não sejam esquecidos. Seria prudente, justamente num século de transição como o nosso, num século polarizado, pela sua conjuntura histórica, por grandes agitações (…) entregar nas mãos do governo, quaisquer que sejam a sua forma e o seu representante atual, toda a fortuna de um tão grande número de homens?”[Tocqueville, 1991: I, 1191].

O nosso autor apela para uma solução original: reformar as caixas de poupança então existentes, de maneira que fossem instituições de crédito descentralizadas, que possibilitassem a aplicação do dinheiro arrecadado pela poupança dos trabalhadores, em obras que beneficiassem as várias regiões [Tocqueville, 1991: I, 1194]. De outro lado, o pensador francês propõe a criação de uma espécie de “banco dos pobres” que substituísse os montepios, considerados por ele como estabelecimentos graças aos quais o pobre é arruinado a fim de lhe garantir um refúgio na sua miséria” [Tocqueville, 1991: I, 1195].

O perfil da instituição bancária imaginada pelo nosso autor seria o seguinte: “Nesse sistema, a administração receberia de um lado as poupanças e, de outro, dar-lhes-ia aplicação. Os pobres que possuem dinheiro para emprestar o depositariam nas mãos de uma administração que, mediante contrato garantido por penhor, remetê-lo-ia aos pobres que teriam necessidade de empréstimo. A administração não seria mais do que um intermediário entre esses dois grupos. Na realidade, seria o pobre capitalizado ou momentaneamente favorecido pela fortuna, quem emprestaria com juros a sua poupança ao pobre pródigo ou em situação precária. Nada de mais simples, de mais prático nem de mais moral do que tal sistema: as poupanças dos pobres, administradas dessa forma, não poriam em risco nem o Estado nem os pobres mesmos, pois nada há de mais seguro no mundo do que um empréstimo garantido por penhor. Além do mais, esse seria um verdadeiro banco dos pobres, cujo capital seria fornecido pelos próprios pobres” [Tocqueville, 1991: I, 1195].

As duas dimensões da ética no pensamento de Alexis de Tocqueville, a intelectual e a política, embora tematizadas em contextos diferentes da sua obra, estão, contudo, profundamente relacionadas. Diríamos que o ideal da ética política, materializado no princípio da beneficência, torna-se possível unicamente mediante o cumprimento do imperativo da defesa incondicional da liberdade para todos. O nosso pensador, efetivamente, caracteriza o princípio da beneficência da seguinte forma: fazer o bem mais verdadeiramente útil àquele que o recebe, de forma que sirva ao bem-estar do maior número.

Ora, no pensamento tocquevilliano o bem mais radicalmente útil que se pode conceber para alguém na sociedade consiste na conquista da liberdade. O completo desenvolvimento do imperativo categórico da beneficência aponta, em última instância, para essa finalidade. Trata-se de fazer aos excluídos da sociedade da sua época, os proletários, o bem mais útil. Esse bem consiste, no pensamento do nosso autor, em dotá-los dos meios que lhes possibilitem reconquistar a dignidade perdida, alicerçada na liberdade. O proletário deve ser estimulado, nas empresas, a ter algum interesse material, assim como o homem do campo deve preservar as suas pequenas posses. Isso, basicamente, porque a partir daí eles poderão reconstruir o ideal de luta pela liberdade. O pensamento ético de Alexis de Tocqueville ancora, destarte, na mais pura tradição liberal de Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Jefferson(1743-1826) e dos federalistas americanos.

3 – A crítica liberal à sobrevivência da utopia socialista

Jean-François Revel, da Academia Francesa, é um dos mais lúcidos críticos liberais do estatismo na tradição política do seu país e na atual conjuntura internacional. Revel é autor de clássicos do pensamento político como Ni Marx, ni Jésus (1970), La Tentation totalitaire (1976), La Nouvelle Censure (1977), Comment les démocraties finissent (1983, obra ganhadora dos prêmios Aujurd’hui e Konrad-Adenauer), Le Rejet de l’État (1984), Le Terrorisme contra la démocratie (1987), La Connaissance inutile (1988, prêmios Chateaubriand e Jean-Jacques Rousseau), Le Regain démocratique (1992, prêmios Ville d’Ajaccio e Mémorial), L’Absolutisme inefficace ou contre le présidentialisme à la française (1992) ou Fin du siècle des ombres, chroniques politiques et littéraires (1999). O escritor francês publicou, no início deste milênio, uma obra prima de crítica à ideologia socialista: La Grande Parade: Essai sur la survie de l’utopie socialiste (Paris: Plon, 2000, 344 p.).

Este último livro, lançado no final de abril de 2000 em Paris, vem causando polêmica nos meios intelectuais do Velho Mundo e foi muito debatido no Brasil e na América Latina, em decorrência da denúncia que o autor faz da capacidade que os defensores do socialismo têm para encobrir a realidade com o véu da ignorância, em que pese o fato de o mundo comunista ter desabado no leste europeu há mais de uma década. A França, aliás, é caracterizada por Revel com palavras que poderiam muito bem ser aplicadas ao Brasil: “Devo dizer que, entre os países que sempre escaparam do comunismo, mas onde a ideologia totalitária permanece forte, tanto no debate das ideias quanto pelo seu peso na prática política, a França ocupa um dos primeiros lugares, senão o primeiro. Ela constitui na Europa uma espécie de laboratório de ponta na produção das espertices destinadas a rejeitar ou a tornar inócuas as lições da experiência, ou a adotá-las com um atraso e uma má vontade tais que terminam por volatilizar os benefícios da aceitação da verdade” (pp. 31/32). O autor retoma, assim, a crítica feita por Tocqueville, em O Antigo Regime e a Revolução, à capacidade mistificadora dos philosophes franceses, que no final do século XVIII substituíram alegremente o conhecimento da complexa realidade social por fórmulas gerais e simplórias, fáceis de serem vendidas ao povão nos panfletos e nas tribunas. A consequência dessa insensatez é por todos conhecida: a guilhotina e o terror jacobino, de que foram vítimas os próprios ideólogos do caos.

Em 14 contundentes capítulos Jean-François Revel desossa, com precisão cirúrgica, o cadáver do dinossauro retórico com que os intelectuais socialistas tentaram, ao longo do último decênio do passado milênio, dar vida ectoplasmática ao apodrecido paquiderme do socialismo real. O cerne da ressurreição ideológica da utopia socialista pode ser resumido, segundo a exposição de Revel, nas seguintes considerações: 1) Já que o socialismo totalitário de carne e osso está morto e sepultado pelas suas antigas vítimas no leste europeu, os intelectuais ocidentais defensores desses ideais, em lugar de reconhecerem a falência do arquétipo dos seus sonhos, passaram a lhe dar vida utópica, afirmando que, se o comunismo tinha desaparecido da Europa, morreram com ele também as esperanças da humanidade de ver concretizada a justiça social. 2) Para esses intelectuais, já que a retórica liberal estruturou-se, ao longo do século XX, em contraposição ao comunismo, desaparecido este, não faz mais sentido mantê-la. 3) Responsável fundamental pela pobreza dos países do leste europeu e do terceiro mundo é, segundo os socialistas pensantes, o capitalismo e a sua superestrutura ideológica, o liberalismo. 4) O binômio capitalismo/liberalismo também é, para eles, o responsável pelo fim dos anos dourados do welfare state na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. 5) A intelectuária socialista é, no mundo globalizado, por obra e graça do demônio capitalista, a portadora da única mensagem de esperança para a Humanidade no novo milênio; a sua pregação consiste em afirmar que o comunismo é a etapa suprema da democracia. 6) Posto que os Estados Unidos são o grande motor do capitalismo mundial, parte essencial da pregação dos novos messias consiste em denegrir a imagem dessa sociedade, alimentando o espírito antiamericano.

Embora seja bastante simplório o arrazoado dos intelectuais socialistas, a desinformação propalada por eles, no sentir de Revel, tem conseguido ocupar espaços na mídia e tender um cordão de isolamento contra aqueles que ousarem divergir do seu ponto de vista. O próprio Revel confessa ter sido vítima, na França e nos Estados Unidos, do patrulhamento ideológico das viúvas da Praça Vermelha, para utilizar a expressão cunhada pelo meu saudoso amigo José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017), e daqueles que, não sendo socialistas militantes, sentem-se, contudo, presos pelo imperativo categórico do politicamente correto. Esse fato constitui, no sentir do autor, uma prova da lentidão do progresso da liberdade de espírito no mundo contemporâneo. “Uma grande parte de intelectuais, frisa Revel, persistem em se perguntar, antes de mais nada, não o que eles devem pensar, mas o que vai se pensar deles” (p. 54).

Esta situação constitui, a meu ver, uma verdadeira inversão da ética de convicção weberiana que deveria animar ao intelectual, defensor, prioritariamente, da verdade custe o que custar, sem esperar pelos aplausos da plateia. Ou melhor, (situando-nos na perspectiva das éticas do intelectual e do político, definidas por Weber), estamos diante de uma inversão dos papéis com o político, que deve agir calculando os resultados da ação, enquanto o intelectual somente deveria atender à verdade descoberta, divulgando-a “a qualquer preço”.

Jean-François Revel parte para desmascarar a falsidade do discurso ideológico da esquerda, explicitando, em primeiro lugar, os interesses dela e, em segundo lugar, mostrando quem foi que resolveu na França a questão social. No que diz relação ao primeiro ponto, Revel escreve: “A defesa de estatutos protegidos e, digamo-lo claramente, o reforço dos privilégios, converteram-se nas principais causas do que a esquerda ousa ainda chamar de movimentos sociais, que na verdade não são mais do que antissociais” (p. 54).

Quanto ao segundo ponto, Revel não duvida em afirmar que foram os liberais os que na França enfrentaram e equacionaram a questão social, no século dezenove. A respeito, afirma: “Dezenas de anos antes da aparição dos primeiros partidos comunistas, foram os liberais do século XIX os que colocaram, antes que qualquer um, o que se chamava então de a questão social e responderam a ela, elaborando muitas leis fundadoras do direito social moderno. Foi o liberal François Guizot (1787-1874), ministro do rei Luís-Filipe que, em 1841, fez votar a primeira lei destinada a limitar o trabalho das crianças nas fábricas. Foi Frédéric Bastiat (1801-1850), esse economista genial que hoje seria alcunhado de ultraliberal desenfreado, que, em 1849, sendo deputado na Assembleia legislativa, interveio precursoramente na nossa história para formular e exigir que fosse reconhecido o princípio do direito de greve. Foi o liberal Émile Ollivier que, em 1864, convenceu o imperador Napoleão III de abolir o delito de coalizão (ou seja, a proibição que impedia os operários de se agruparem em defesa dos seus interesses), abrindo assim o caminho para o futuro sindicalismo. É o liberal Pierre Waldeck-Rousseau (1846-1904) que, em 1884, no início da Terceira República, fez votar a lei que reconhecia aos sindicatos a personalidade civil. Permita-se-me sublinhar a seguinte lembrança: os socialistas da época, de acordo com a sua lógica revolucionária (bem anterior à aparição do menor partido comunista) manifestaram uma violenta hostilidade contra a lei Waldeck-Rousseau” (p. 48).

O remédio para as trapalhadas socialistas é simples, mas deve ser corajoso e rápido. No sentir do autor, a única atitude válida é a integridade moral dos intelectuais sensatos para denunciar, sem temor, essa tentativa de estelionato utópico, à maneira como Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) pôs a nu, no início do século XIX, os malucos e proto-socialistas arrazoados de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em política e em economia, ou seguindo as pegadas de Tocqueville na defesa incondicional e constante da liberdade ameaçada pelo igualitarismo estatizante. Advertência de grande importância sobretudo para o Brasil, país onde, como frisava o humorista Millôr Fernandes (1923-2012), refugiam-se as ideologias quando ficam bem velhinhas.

Bibliografia

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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