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“A Constituição da Liberdade”: o legado de Hayek

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Popularizou-se mais expressivamente, no Brasil e no mundo, a obra O Caminho da Servidão, do economista Friedrich Hayek, membro da Escola Austríaca e laureado com o Prêmio Nobel em 1974. É um livro da década de 40, que cumpria o papel de suscitar uma “agitação” das ideias da liberdade. A editora Avis Rara se encarregou recentemente, entretanto, da nobre tarefa de disponibilizar no atual mercado editorial brasileiro, em tradução de Pedro Elói Duarte, aquela que muitos consideram a obra-prima deste autor: A Constituição da Liberdade (The Constitution of Liberty, no original, traduzida anteriormente também como Os Fundamentos da Liberdade).

Este robusto clássico de 1960, publicado originalmente pela Universidade de Chicago e um dos preferidos de Margaret Thatcher, está sendo trazido ao público brasileiro contemporâneo com uma apresentação de Ricardo Gomes e uma introdução de Irwin Stelzer, com 480 páginas, incluindo a vasta seção de notas e o índice onomástico. O livro é um autêntico tratado sobre a concepção hayekiana de liberdade e sua relação com a cultura, as instituições e as políticas públicas que vinham sendo implementadas pelos governos ao longo do século XX. É essencial para quem quiser compreender mais minuciosamente a natureza do pensamento desse autor que encarou a divulgação do liberalismo como uma verdadeira missão.

Conforme Hayek, repetindo na introdução da obra o que já havia dito em O Caminho da Servidão, os valores da liberdade que se haviam consolidado no século XIX, em decorrência da obra dos liberais clássicos, vinham sendo cada vez mais desrespeitados e esquecidos. “Os homens têm se esforçado mais para procurar ordens sociais alternativas do que para tentar aperfeiçoar a sua compreensão ou o uso dos princípios subjacentes da nossa civilização”, explicou. Já se poderia presumir, desde o título, que a exposição desses princípios seria um de seus objetivos fundamentais com esse trabalho.

Essa introdução é muito importante, porque Hayek estabeleceu nela os parâmetros que seguiria na exposição desses valores e princípios. Por exemplo, ele afirmou que “a tradição da liberdade não é criação exclusiva de nenhum país e que, nem hoje, nenhuma nação detém de forma exclusiva o seu segredo”, posto que, ainda que os Estados Unidos e a Inglaterra tenham desenvolvido esses princípios de modo muito particular, eles o fizeram “a partir de bases criadas pelos antigos gregos, pelos italianos do início do Renascimento, pelos holandeses, e para os quais os franceses e os alemães fizeram contribuições importantes”. A ênfase hayekiana – e nesse ponto ele desafiou objetivamente os tradicionalistas antiliberais – esteve em princípios que julgava terem validade universal.

Outro traço que desde o começo Hayek enfatizou foram os limites de sua pretensão. A obra não pretendeu ser um programa político definitivo ou capaz de abranger todas as especificidades possíveis, mas evidenciar critérios aos quais as diversas políticas poderiam ser comparadas para que se pudesse avaliar seu ajustamento a um regime de liberdade. As vantagens desses princípios foram evidenciadas à humanidade não apenas pelas teorias contidas nas obras de alguns dos filósofos mais importantes da modernidade, mas também pela experiência prática, a colecionar evidências de sua efetividade para a multiplicação de riquezas e realizações.

O livro foi dividido em três partes. A primeira, “O Valor da Liberdade”, “pretende mostrar por que queremos a liberdade e o que esta oferece”. A segunda, “A Liberdade e a Lei”, constitui-se de “uma análise das instituições que os ocidentais desenvolveram para garantir a liberdade individual”, entrando “no domínio da jurisprudência” e abordando “os seus problemas do ponto de vista histórico”. A terceira, “A Liberdade no Estado-Providência”, promove um teste dos princípios examinados nas duas partes anteriores “a alguns dos principais problemas econômicos e sociais do nosso tempo”.

Hayek começou por convencionar o conceito de “liberdade” com que trabalharia, entendida como a ausência de coerção. Nesse sentido, há um estado de liberdade quando “a coerção que alguns exercem sobre outros é reduzida ao mínimo possível na sociedade”. O autor se esmerou em contrapor a pertinência e funcionalidade desse conceito a outros que foram propostos para substituí-lo. Apontou, por exemplo, que “muitas vezes afirma-se que o nosso conceito de liberdade é meramente negativo. Isso é verdadeiro no sentido de que a paz também é um conceito negativo, ou de que a segurança, o silêncio ou a ausência de qualquer impedimento ou mal particular são negativos. É a essa classe de conceitos que a liberdade pertence: descreve a ausência de um obstáculo particular – a coerção por outrem. A liberdade só se torna um conceito positivo mediante o que dela fazemos. Não nos garante quaisquer oportunidades especiais, mas nos deixa decidir que uso devemos fazer das circunstâncias em que nos encontramos”.

Ao falar, entretanto, em reduzir a coerção ao “mínimo possível”, Hayek deixara claro que não acreditava na possibilidade de uma eliminação completa da coerção, julgando que a única forma de evitar a coerção abusiva é a própria ameaça de coerção proveniente do Estado. Segundo ele, o Estado deve “proteger as esferas privadas conhecidas contra a interferência de outros” e “delimitar essas esferas privadas não por designação específica, mas pela criação de condições nas quais o indivíduo possa determinar a própria esfera, seguindo normas que descrevem o que o governo fará em diferentes tipos de situações”. A coerção estatal para atingir esse objetivo terá sua agressividade reduzida se for “restringida por regras gerais conhecidas, de maneira que, na maioria das instâncias, o indivíduo nunca precise ser coagido, a não ser que se coloque em uma posição em que sabe que o será”. Com efeito, a defesa hayekiana de que o Estado atue dentro de regras previamente conhecidas, transformando sua ação e seu financiamento por meio de impostos em elementos previsíveis e rotineiros, quase como “dados da natureza” subjacentes à atividade humana, foi o que sempre orientou sua distinção em relação a autores como os libertários mais radicais e os anarcocapitalistas.

Outro aspecto muito importante para a obra de Hayek é sua teoria do conhecimento, que enaltecia as contribuições da liberdade para o desenvolvimento social e civilizacional. Muito do que as diferentes civilizações lograram êxito em construir e realizar não se deveu, ele frisava, a deliberações racionalistas, mas a desenvolvimentos espontâneos, produzidos por diversos indivíduos e agrupamentos humanos que conseguiam e conseguem lidar com mais eficácia com as questões que lhes estavam ou estão mais próximas. Hayek não desprezava a razão, de maneira alguma, mas acreditava que os racionalistas a superdimensionavam, menosprezando os efeitos do acúmulo histórico de conhecimentos, transmitidos através da tradição, para a edificação das obras e instituições de relevo. A liberdade é o melhor instrumento para potencializar  e enriquecer esse acúmulo.

“A importância da liberdade não depende do caráter elevado das atividades por ela possibilitadas”, ressaltou Hayek. “A liberdade de ação, mesmo nas coisas humildes, é tão importante quanto a liberdade de pensamento. Tornou-se prática comum desvalorizar a liberdade de ação chamando-lhe “liberdade econômica”. No entanto, o conceito de liberdade de ação é muito mais lato do que o de liberdade econômica, que ele engloba; e, ainda mais importante, é muito duvidoso que haja ações que possam ser apelidadas de meramente “econômicas” e que as restrições à liberdade possam se limitar àquilo a que se chama aspectos meramente “econômicos”. O imperativo, portanto, de não minimizar essa liberdade, que contemplaria o aspecto econômico, mas iria muito além dele, é outro princípio merecedor de destaque no labor hayekiano, que o aproxima muito de outros defensores do liberalismo, como Milton Friedman, da Escola de Chicago – aliás, citado neste livro, assim como outros membros da Sociedade Mont Pélerin, da qual Hayek foi um dos principais idealizadores, reunindo intelectuais liberais de todo o mundo até hoje.

O ideal de liberdade hayekiano não implica opor-se a qualquer organização, mas “a qualquer organização exclusiva, privilegiada e monopolista”, “ao uso da coerção para impedir que outros tentem fazer melhor”. Isso porque, embora os racionalistas julguem que o progresso humano se verifica sempre a partir do controle e da previsibilidade, Hayek pensava, ao contrário, que “o processo do progresso da razão se baseia na liberdade e na imprevisibilidade da razão humana”. Concordando com os autores que criticavam uma visão ingênua do progresso, ele preferiu, no entanto, em vez de negá-lo, redefini-lo como “um processo de modificação do intelecto humano, um processo de adaptação e aprendizagem no qual não só as possibilidades que nos são conhecidas, mas também os nossos valores e desejos, mudam de forma contínua. Dado que o progresso consiste na descoberta daquilo que ainda não é conhecido, suas consequências devem ser imprevisíveis”. Eis porque, obviamente, ele se dará de forma mais qualificada com liberdade do que orientado por uma autoridade que julgue conhecer os seus rumos e se creia investida da prerrogativa de impô-los a todas as pessoas, “bloqueando” o surgimento de outras possibilidades de cursos de ação.

Evidenciando sua vinculação à tradição liberal, Hayek descreveu um pouco do seu histórico, contrastando a tradição tipicamente britânica da liberdade, mais empírica e não sistemática, à tradição tipicamente francesa, mais racionalista e construtivista, que teria desencadeado diversos problemas ao fragilizar a consciência do progresso e do desenvolvimento como dependentes de um processo não-deliberado, isto é, de uma ordem espontânea. Embora os liberais do século XIX tenham fundido contributos das duas tradições, elas são diferentes. “Aquilo a que se chamou “tradição britânica” foi definido principalmente por um grupo de filósofos morais escoceses, liderado por David Hume, Adam Smith e Adam Ferguson, seguidos pelos seus contemporâneos ingleses Josias Tucker, Edmund Burke e William Pailey, inspirados sobretudo numa tradição enraizada na jurisprudência do direito consuetudinário. Oposta a eles”, expôs Hayek, “estava a tradição do Iluminismo francês, profundamente imbuída de racionalismo cartesiano: os enciclopedistas e Rousseau, os fisiocratas e Condorcet são os seus representantes mais famosos”. Não deixou de pontuar que a fronteira nacional não era uma distinção absoluta, afinal, franceses como Alexis de Tocqueville, que Hayek particularmente admirava, estavam mais próximos à mentalidade britânica. Foram, porém, os britânicos, para o economista austríaco, que “deram uma interpretação da evolução da civilização que continua sendo o fundamento indispensável da defesa da liberdade”, pois, “para eles, a origem das instituições reside não num artifício ou num desígnio, mas na sobrevivência dos mais bem-sucedidos”, isto é, em uma vitória das ações mais efetivas e das ideias mais produtivas.

Hayek demonstrou seu respeito pela razão ao postular que sua preferência pela tradição britânica não significava antirracionalismo ou misticismo, pois não implicava uma “abdicação da razão, mas uma análise racional do campo em que a razão pode ser controlada de forma adequada. Em parte, afirmamos que tal uso inteligente da razão não significa o uso deliberado da razão no máximo número possível de ocasiões. Em oposição ao racionalismo ingênuo que trata a nossa razão atual como um absoluto, temos de prosseguir os esforços iniciados por David Hume quando “voltou contra o Iluminismo as suas próprias armas” e tentou “restringir as pretensões da razão graças ao uso da análise racional””.

Ainda na primeira parte da obra, Hayek associou à liberdade o valor igualmente importante da responsabilidade dela decorrente. A justiça somente se faria em uma sociedade verdadeiramente livre se houvesse um consenso de que cada indivíduo deve ocupar as posições a que faça jus em consequência de suas ações livremente exercidas. Ele lamentava o declínio da importância conferida a esses dois valores, liberdade e responsabilidade, mutuamente dependentes, e, por consequência, defendia que o fortalecimento de um precisaria implicar o simultâneo fortalecimento do outro. “A complementaridade da liberdade e da responsabilidade significa que a defesa da liberdade só é aplicável àqueles que podem ser responsabilizados. Não é aplicável às crianças, aos deficientes ou aos loucos”, pontuou Hayek. Além da responsabilidade, a igualdade também é um valor que precisaria ser anexado à liberdade, mas somente a “igualdade das normas gerais do direito e da conduta”, pois qualquer outra igualdade, notadamente a tão pretendida igualdade material, é incompatível com a liberdade. “Sempre que há uma necessidade legítima de ação estatal e temos de escolher métodos diferentes de satisfazer a essa necessidade, os que também reduzem a desigualdade podem ser preferíveis”, admitiu Hayek. “Se, por exemplo, na lei da sucessão sem testamento, uma cláusula conduzir a uma igualdade maior do que outra, esse pode ser um forte argumento a seu favor. No entanto, a situação será diferente se, para produzir uma igualdade substantiva, tivermos de abandonar o postulado básico de uma sociedade livre, nomeadamente a limitação de toda a coerção por leis iguais para todos. Contra isso, defendemos que a desigualdade econômica não é um mal que justifique, como remédio, o uso da coerção discriminatória ou do privilégio”.

Admitindo a igualdade entre os cidadãos na participação da determinação da lei, Hayek enfatizou, porém, que o liberalismo está preocupado com a liberdade dos indivíduos, enquanto a democracia está preocupada em garantir que a maioria decida as posições ocupadas dentro do Estado. Curiosamente, ele trabalhou com a noção de que o oposto da democracia seria o Estado autoritário, enquanto o oposto do liberalismo seria o Estado totalitário, razão pela qual “uma democracia pode ter poderes totalitários, e é concebível que um governo autoritário aja segundo princípios liberais”. Ele temia a supervalorização da opinião majoritária, procurando reservar especial atenção à necessidade de proteger as minorias e as pessoas em suas singularidades. Reconhecia ao sistema democrático os méritos da transição pacífica do poder e um potencial de educação das maiorias e formação de opinião a longo prazo, mas “o liberal acredita simplesmente em ter um argumento que, se bem entendido, levará a maioria a limitar o exercício dos seus próprios poderes, e espera que esse argumento possa ser adotado pela maioria quando tiver de tomar decisões acerca de assuntos específicos”. Se assim não fosse, a médio ou longo prazo, não apenas o liberalismo seria destruído, mas a própria democracia também.

Do ponto de vista do trabalho, Hayek enfatizou que a liberdade não significa que todos os indivíduos poderão ter tudo o que desejarem, mas os empregados, em uma economia de mercado pujante e desobstruída, não estariam a mercê dos patrões, forçados unicamente a trabalhar para um proprietário dentro de determinadas condições. Haveria, também para os assalariados, a multiplicação de opções.

Na segunda parte da obra, Hayek conceituou coerção como aquilo que se dá quando “as ações de um indivíduo são colocadas a serviço da vontade de outro indivíduo, para alcançar não seus próprios objetivos, mas os objetivos do outro”, o que seria danoso por impedir o indivíduo de “utilizar plenamente sua capacidade mental e, consequentemente, de dar a maior contribuição possível para a comunidade”. A menos que um empresário monopolista estivesse em posição de negar aos outros um bem indispensável, Hayek não veria coerção em que fizesse, por exemplo, exigências aos que se dispusessem a aceitar a oferta de seus serviços. “Poderei ter de agir sob grande pressão, mas não se pode dizer que sob coerção”, mesmo, ilustrou Hayek, que fosse julgado necessário aceitar um trabalho desagradável para se sustentar: “Desde que o ato que me colocou numa situação difícil não visasse a me obrigar a fazer ou a não fazer determinadas coisas, desde que a intenção do ato que me prejudica não fosse me obrigar a servir aos fins de outrem, seu efeito na minha liberdade não é diferente do efeito de uma calamidade natural – um incêndio ou uma inundação que destrua a minha casa ou um acidente que prejudique a minha saúde”. Ao longo de todo o texto, Hayek usou exemplos como esse para demonstrar que não há hipótese de eliminarmos todos os problemas e situações desagradáveis da vida humana, portanto, não deveríamos apostar em quaisquer receituários políticos que o pretendessem.

Para prevenir a coerção indesejável, seria necessário reconhecer o instituto da propriedade privada. A utilidade da propriedade privada alheia para os fins de um indivíduo deveria idealmente ser perseguida apenas através da realização livre de contratos. Alguns serviços, como o saneamento e a construção de estradas, “uma vez fornecidos, são normalmente suficientes para todos os que queiram utilizá-los”, o que justificaria que o direito de dispor deles fosse garantido na esfera pública. Algumas ações coercitivas do Estado para além da mera ameaça de coerção, como a tributação fiscal e a imposição de alguns serviços obrigatórios, também foram justificadas por Hayek através da sua previsibilidade: “Quando a coerção é necessária mesmo numa sociedade livre, como quando somos convocados a servir num júri ou a agir como autoridades especiais, atenuamos os efeitos não permitindo que alguém tenha poder arbitrário de coerção”, isto é, que possa impô-la a partir de regras desconhecidas e novas, a qualquer tempo e contra pessoas específicas. O conceito hayekiano de “lei” se restringe exatamente a essas determinações gerais e impessoais, que sejam apresentadas aos indivíduos como informações quanto ao que poderá acontecer se agirem desta ou daquela maneira. Nisso, uma “lei” seria diferente de uma “ordem”, que seria algo mais imperativo e restrito à vontade de quem ordena, não permitindo grande espaço às deliberações individuais dos comandados. Na sociedade livre, portanto, devemos tomar decisões e conduzir nossas vidas respeitando as normas gerais, as leis, e não recebendo ordens de tutores. “A concepção de liberdade dentro da lei, que é o principal tema deste livro, baseia-se na ideia de que, quando obedecemos às leis, no sentido geral de normas abstratas estabelecidas independentemente de a quem são aplicadas, não estamos sujeitos à vontade de outrem e, por isso, somos livres”, definiu Hayek.

O regime ordenado pelas normas gerais, isto é, pelas leis, é o Estado de Direito, e Hayek dedicou grande espaço a construir um histórico de sua concepção e elaboração. Reconheceu o papel britânico, desde o whiggismo lockeano, para o conceito moderno de liberdade individual, apesar de nele enxergar o aproveitamento do legado clássico e de admitir que os medievais prestaram uma contribuição ao estatuir o princípio da submissão dos homens às leis naturais. A epopeia delineada por Hayek é muito rica, passando pelos antigos filósofos gregos, por Hume, Burke, pelo constitucionalismo norte-americano, a Carta Magna e o Rechsstaat prussiano. Ele sustentou, basicamente, que não pode haver Estado de Direito efetivo apenas com base na legalidade formal das ações governamentais, mas que ele só se verifica se essa legalidade estiver em conformidade com os princípios universais de uma sociedade livre anteriormente expostos. Em consequência dessa reflexão, travou no livro um ligeiro debate contra a escola do positivismo jurídico de Hans Kelsen, que, contra Hayek, alguns liberais enaltecem; esse debate não é, porém, a nosso ver, o cerne da obra.

Os princípios do Estado de Direito também se deveriam vincular ao campo econômico, e uma economia de mercado seria precisamente uma organização econômica em que esses princípios fossem observados. Acertadamente, Hayek apontou que os liberais clássicos como Adam Smith, em sua esmagadora maioria, não sustentavam a anulação do Estado no campo econômico, mas a garantia de que as ações estatais se circunscreveriam ao respeito às normais gerais. Admitiu ao governo o fornecimento de serviços que, a seu ver, de outro modo, não seriam fornecidos, não sendo possível limitar seus benefícios aos que pudessem pagar, entre eles a manutenção do sistema monetário (mais tarde, Hayek mudaria de ideia e defenderia a desestatização do dinheiro), o financiamento de uma parte das atividades da área de educação (mesmo que pelo sistema de voucher, fornecendo os recursos diretamente às famílias dos educandos, sem gerenciar estabelecimentos de ensino) e o estabelecimento de padrões de pesos e medidas. Todas essas funções, porém, “fornecem meios que os indivíduos podem usar para seus próprios fins”, não violando as mesmas regras que o Estado de Direito impõe aos cidadãos. Ao estabelecer, ao contrário, políticas intervencionistas como monopólios estatais, controle de preços e subsídios a parceiros pessoais dos governantes, o Estado cria privilégios, prejudica as ações e decisões alheias em suas esferas privadas e viola os princípios do Estado de Direito.

Finalmente, na terceira parte do livro, Hayek exemplificou a aplicação dessas regras gerais e os riscos oferecidos pela confiança cega no centralismo racionalista e na burocracia estatal com alguns problemas seus contemporâneos, embora as análises, divulgadas em 1960, soem extremamente atuais em diversos aspectos. Na visão hayekiana, a respeitabilidade do socialismo marxista ortodoxo ou mesmo do socialismo Fabiano havia declinado, mas crescia o apelo por um Estado providencial, que promovesse uma ampla “justiça distributiva”, infringindo as normas gerais que se deveriam pretender invioláveis. Ao criticar o welfare state moderno, Hayek tomou o cuidado de salientar novamente que o Estado pode desempenhar funções não-coercitivas (na sua natureza prática imediata, posto que seriam financiadas por impostos) e que todos os governos “tomam providências a favor dos indigentes, dos infelizes e dos deficientes, se preocupam com questões de saúde e com a disseminação do conhecimento”, não havendo razões “para que essas atividades de puro serviço não sejam ampliadas com o crescimento geral da riqueza. Há necessidades comuns que só podem ser satisfeitas pela ação coletiva e que podem ser providenciadas sem que se restrinja a liberdade individual”. Hayek igualmente admitia a existência de parques, museus, teatros e até complexos esportivos públicos, embora preferencialmente mantidos pelos governos locais, segundo a regra da subsidiariedade. A justificativa para tudo isso, porém, seria, em uma argumentação hayekiana, a sanidade do tecido social, a proteção dos indivíduos contra os efeitos perniciosos da miséria alheia, nunca uma hipotética “justiça social” – proposição que Hayek abominava. Haveria uma segurança que poderia ser obtida para todos, respeitando certas limitações, e a segurança absoluta, que não pode ser prodigalizada em uma sociedade livre, porque não é compatível com a liberdade.

Com base em todos esses termos, Hayek analisou diferentes tópicos, que nos dispomos apenas a elencar muito sucintamente neste ensaio: os sindicatos e o emprego – sendo que, para ele, os sindicatos deveriam ser livres, sem a imposição do imposto sindical, e poderiam ter desenvolvido esferas de ação mais interessantes, como o auxílio aos membros em situações de desemprego, se não tivessem enveredado para políticas antiliberais que acabam prejudicando os próprios trabalhadores; a previdência social – setor em que, admitindo a oportunidade da ação estatal para remediar carências emergenciais, criticou a concentração de uma proteção destinada a todos nas mãos de uma organização unificada gerida pelo governo; a tributação e a redistribuição – âmbito em que defendeu “a determinação da taxa (marginal) máxima admissível da tributação direta na mesma porcentagem da receita total nacional que o Estado arrecada em impostos”; a estrutura monetária – como vimos, Hayek ainda tinha um entendimento similar ao de Milton Friedman e os demais economistas da escola de Chicago a respeito ao escrever esta obra; a habitação e o planejamento urbano, a agricultura e os recursos naturais e, por fim, o setor de educação e pesquisa.

A nova edição brasileira inclui ainda, como posfácio, o artigo Por que não sou conservador de Hayek, um texto muito conhecido em que ele associou o conceito de “conservadorismo”, no campo político, à hostilidade diante da inovação, o que não seria compatível com sua própria ode à ordem espontânea e aos desenvolvimentos possibilitados pela liberdade. Porém, o mesmo Hayek reconhecia a polissemia dos rótulos políticos, inclusive do termo “liberal”, que já lhe causava certo desgosto devido ao seu emprego, principalmente, nos Estados Unidos, em referência às forças políticas mais intervencionistas. Ele afirmou no mesmo artigo que “o verdadeiro conservadorismo é uma atitude legítima, provavelmente necessária e certamente muito difundida, de oposição a mudanças drásticas”, e se apresentou como um velho whig burkeano, sendo Edmund Burke considerado um marco do conservadorismo moderno, de índole liberal. O tema, portanto, mereceria maiores desdobramentos que este artigo não comporta, mas que desenvolvemos em outros textos de nossa lavra e são explorados por outros autores – a exemplo de Russell Kirk, que diria de Hayek que ele talvez fosse mais conservador do que aspirasse a ser.

O espírito da preocupação de Hayek em todo o conteúdo desta sua obra magna pode ser resumido neste postulado que ele extrai da melhor tradição liberal: o Estado de Direito, isto é, a autoridade das regras e não a regra das autoridades. Concluamos esta síntese, sem mais delongas, com a citação final com que o próprio Hayek encerrou seu livro, uma máxima de Humboldt que Stuart Mill empregou como epígrafe de seu ensaio On Liberty: “O grande princípio orientador, para o qual convergem todos os argumentos tratados nestas páginas, é a importância absoluta e essencial do desenvolvimento humano na sua mais rica diversidade”.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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