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Sonhos, morte e esperanças

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AYLAN O ANJINHO AFOGADO NUJMA PRAIA DA TURQUIA_ SETEMBRO DE 2015Os milhares de imigrantes sírios e de outras nacionalidades do Oriente Médio que cruzam a fronteira oriental com a União Europeia para chegarem à Alemanha estão descobrindo o que significa “solidariedade”. Depois de dias e noites enfrentando o perigoso mar e andando de país em país em busca de refúgio, a Alemanha abriu-lhes as portas. A morte do menino Aylan, nas costas da Turquia, foi o alerta que fez disparar o sentimento de solidariedade cristã nos corações dos governantes e dos cidadãos.

Ângela Merkel, a chanceler alemã, tornou-se porta-voz dos sentimentos da maioria dos seus compatriotas quando falou que a questão dos refugiados, antes de qualquer outra coisa, era um problema moral. A Alemanha, que na Segunda Guerra Mundial se transformou em forno crematório de judeus, nos dias atuais mostra o fundo humanitário e cristão que anima os corações dos seus cidadãos. Digna lição de solidariedade de um país que, se bem causou morte e destruição com o nazismo, nos dias atuais abre suas fronteiras, como porto seguro, para os infelizes que querem uma só coisa: viver em paz.

Com Ângela Merkel, os alemães apresentam-se ao mundo com a face da civilização cristã ocidental, pensada ao longo da história pelos filósofos dos que Immanuel Kant, no século XVIII, virou o grande ícone ao traduzir para os conceitos frios da filosofia o calor do mandamento da caridade. Afinal, foi o pensador de Königsberg quem formulou, na Fundamentação metafísica dos costumes, a nova concepção da caridade cristã contida no mandamento evangélico de “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”, proferido por Cristo nas últimas palavras pronunciadas antes da sua morte. Ora, esse mandamento central do cristianismo foi vertido por Kant, em linguagem filosófica, no seu imperativo categórico de: “Trata a pessoa do teu próximo sempre como fim e nunca como meio”. O grande pensador completou a sua visão da moral que deveria inspirar a política com a formulação do segundo preceito que a tornaria uma prática a serviço da comunidade: o imperativo da transparência, contido no seu opúsculo intitulado: A paz perpétua.

A partir da posição firmada por Ângela Merkel, inspirada no humanismo kantiano, os europeus passaram a considerar a questão dos imigrantes vindos do Médio Oriente, não como ameaça, mas como algo que lhes diz respeito. Não é a primeira vez que países do Ocidente abrem as suas portas para refugiados perseguidos por guerras de religião ou conflitos internacionais. O Brasil acolheu no seu seio, desde o século XIX, milhares deles. Os Estados Unidos firmaram a sua presença como grande potência mundial justamente ao ensejo da abertura das suas fronteiras aos milhões de refugiados que ali buscaram um canto pacífico onde morarem e construir as suas vidas. O nascimento da grande nação americana foi fruto, aliás, dos imigrantes europeus que buscavam liberdade, como testemunha a declaração dos “Pilgrim Brothers”. A Ilha Ellis, na Bahia de Nova Iorque, perto da estátua da Liberdade, é ainda um cenário que nos lembra essa multitudinária busca pela América.

Mais recentemente, e no contexto dos sangrentos conflitos desatados pelos carteis das drogas (dos quais as FARC, na Colômbia, são um deles), o país vizinho teve de organizar, dentro das suas fronteiras, a acolhida para mais de 2 milhões de refugiados internos, vítimas da última fase da guerra que se estendeu de 1978 a 2002, tendo deixado um saldo trágico de mais de 400 mil mortos. Ora, nem o Brasil do final do século XIX e primeiras décadas do século seguinte, nem os Estados Unidos com os milhões de refugiados europeus que receberam, nem a Colômbia com os seus milhares de refugiados internos foram à falência por causa deles. Ao incorporá-los à sua vida diária, esses países deram uma prova de grandeza e, ao mesmo tempo, dinamizaram as suas economias. Algo semelhante ocorrerá com a Europa Ocidental, a partir da abertura decretada por Ângela Merkel, que certamente se traduzirá numa nova política de acolhimento de refugiados, pela Europa Ocidental, ao longo dos próximos anos.

Uma consideração tocante sobre esses fatos: lembro a figura do menino Aylan, o anjinho sírio morto por afogamento numa praia da Turquia. A sua fotografia percorreu o mundo e abriu as portas dos corações e das fronteiras numa Europa receosa com a onda migratória.

Na comovente reportagem feita por Paulo Moura do jornal Público de Lisboa, em 13 de Setembro passado, o jornalista entrevista Ahmad, um dos refugiados sírios que chegaram com a mulher e os filhos à Alemanha. A respeito da perigosa aventura vivida por eles na longa viagem desde o sul da Síria, frisa Ahman: “E a Hungria foi a grande surpresa. Inicialmente, fomos bem recebidos, com umas senhoras a darem comida e roupa, as televisões a fazerem entrevistas. Mas à noite, quando as câmaras se afastaram, e ficámos sozinhos com a polícia, a atitude mudou completamente. Trouxeram carros e levaram-nos para a prisão”.

Nessas circunstâncias, escreve Paulo Moura, foi quando Ahmad leu a notícia sobre a morte de Aylan, o menino sírio de 3 anos encontrado morto na praia porque o barco onde viajava para a Grécia tinha naufragado, exatamente como aconteceu com Ahmad e sua família. “Foi a primeira vez que chorei – frisa Ahman. Pensei em Yussef, que também tem 3 anos. (…) Temos de agradecer a Aylan porque foi a tragédia dele que mudou as atitudes na Europa. Yussef agora odeia o mar, diz que não quer ir à praia nunca mais. Mas Aylan morreu para que nós chegássemos aqui.”

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Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 15-09-2015 e no blog do autor

imagem: blog do autor

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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