O impeachment como teste da República
Li com atenção o artigo de Nicolau da Rocha Cavalcanti, publicado no Estadão sob o título “Em defesa do instituto do impeachment”. Conheço Nicolau pessoalmente, respeito sua trajetória profissional e reconheço a boa-fé com que escreve. Justamente por isso, parece-me importante registrar, com a serenidade que o tema exige, que o texto parte de premissas que não se sustentam à luz do regime constitucional do impeachment tal como desenhado pela Constituição de 1988.
O ponto central do artigo é a afirmação de que o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal teria se “transformado em matéria política”, em contrariedade à Lei 1.079/1950 e à Constituição. Aqui está, a meu ver, o primeiro equívoco conceitual. O impeachment nunca deixou de ser político, porque sempre o foi. A Constituição confiou expressamente ao Senado Federal — órgão político por excelência — a competência para processar e julgar ministros do STF por crimes de responsabilidade. Não se trata de uma deformação do instituto, mas de sua própria natureza constitucional. Pretender um impeachment “despolitizado” é, na prática, negar o desenho adotado pelo constituinte.
Isso não significa que o impeachment seja arbitrário ou despido de limites jurídicos. Significa apenas que o juízo final não é jurisdicional, mas político, como reconhece a tradição constitucional comparada desde os Federalist Papers. O problema institucional não surge quando o Senado exerce essa competência, mas quando o Poder Judiciário passa a redesenhar, por decisão própria, as condições de exercício desse controle político.
É nesse ponto que a defesa do artigo acaba se voltando, inadvertidamente, contra o próprio instituto que afirma proteger. Ao tratar como naturais restrições que não estão na Constituição — como a supressão da legitimidade popular, a elevação judicial de quóruns preliminares, a eliminação de efeitos processuais previstos em lei e a vedação absoluta de medidas cautelares — o texto termina por legitimar uma reconstrução hermenêutica que esvazia o impeachment em vez de preservá-lo.
A Lei 1.079/1950 é clara ao atribuir a todo cidadão legitimidade para oferecer denúncia por crime de responsabilidade. Essa opção não é um resquício autoritário nem um acidente histórico: é expressão direta da lógica republicana de controle difuso do poder. A Constituição de 1988 jamais revogou esse desenho. Ao contrário, reforçou-o ao consagrar a soberania popular como fundamento da República. Transformar essa legitimidade universal em prerrogativa exclusiva de um único órgão estatal não é interpretação: é alteração do regime jurídico por via judicial.
Também não procede a leitura segundo a qual o silêncio constitucional quanto a afastamentos cautelares ou efeitos processuais equivaleria a uma proibição implícita. Em matéria constitucional, o silêncio não cria vedação; cria espaço de conformação legislativa. Converter ausência de texto em blindagem absoluta é ampliar garantias sem base constitucional, deslocando o intérprete para um papel que não lhe cabe.
A independência judicial — valor civilizatório incontornável — não se confunde com irresponsabilidade institucional. Ministros do Supremo não se submetem ao Conselho Nacional de Justiça. O impeachment no Senado é, goste-se ou não, o único mecanismo de responsabilização política que a Constituição lhes reservou. Neutralizá-lo por exigências que o texto constitucional não prevê não fortalece o Judiciário; apenas o afasta do pacto republicano de freios e contrapesos.
Há, contudo, um ponto específico do artigo que merece registro adicional. Ao afirmar que o legislador não previu “crime de hermenêutica” e que decisões judiciais não podem fundamentar responsabilização, a tese apresentada termina por produzir um efeito institucional preocupante: ela elimina, na prática, qualquer possibilidade de controle político quando o Supremo deixa de interpretar a Constituição para passar a decidir contra ela ou reescrevê-la.
O impeachment não existe para punir divergências interpretativas legítimas, mas tampouco pode ser neutralizado sob o argumento de que toda violação constitucional seria mera hermenêutica. Se assim fosse, bastaria ao intérprete qualificar como “interpretação” qualquer ruptura com o texto constitucional para se tornar imune a todo mecanismo de responsabilidade. A consequência lógica dessa posição é a criação de um poder sem freios externos, exatamente o que o constitucionalismo republicano sempre buscou evitar.
Por isso, causa estranheza que um texto que se propõe a defender o instituto do impeachment termine por endossar exatamente as condições que o tornam praticamente inexequível. Defender o impeachment não é protegê-lo de seu caráter político, mas preservá-lo dentro das balizas constitucionais que lhe dão sentido. Fora delas, o que se tem não é estabilidade institucional, mas a substituição silenciosa do texto constitucional pela vontade do intérprete.
O debate é legítimo, necessário e bem-vindo. Mas ele só cumpre sua função republicana quando começa pelo reconhecimento de um dado básico: a Constituição não autorizou que o regime do impeachment fosse reescrito para proteger quem deveria estar sujeito a ele. Defender a República, nesse ponto, é aceitar que nenhum poder — nem mesmo o Judiciário — pode ser juiz absoluto de sua própria responsabilidade.
*Leonardo Corrêa – sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela University of Pennsylvania, Cofundador e Presidente da Lexum e autor do livro A República e o Intérprete — Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores.
*Artigo publicado originalmente no site Lexum.



