A tentação gnóstica do ativismo judicial
É corrente a ironia de que alguns juízes (ou ministros) hoje se arvoram na condição de “semideuses” acima da lei. Talvez isso já tenha se consolidado como um traço da psicologia dos ativistas. “Juízes que antes juravam aplicar a lei hoje se veem como seus autores morais. (…) O ativismo judicial não é uma excentricidade interpretativa – é uma usurpação institucional”, afirmou o presidente da Lexum, Leonardo Corrêa, em artigo recente dando o tom da gravidade dos notórios e recorrentes abusos cometidos pelo poder judiciário brasileiro tendo o STF à frente[1]. O ativismo judicial ideológico, como usurpador do poder legitimamente constituído, pode ser qualificado como uma expressão da mentalidade revolucionária, cuja gênese encontra ressonância na filosofia política de Eric Voegelin.
Voegelin identifica na mentalidade revolucionária presente na modernidade uma forma de gnose, pois substitui a ordem transcendente por construções humanas totalizantes, prometendo uma salvação imanente através da política. Para o autor “a gnose (…) pode ser predominantemente volitiva e assumir a forma de uma redenção ativista do homem e da sociedade, como no caso de ativistas revolucionários como Comte, Marx ou Hitler. Essas experiências gnósticas, na amplitude de sua variedade, são o cerne da redivinização da sociedade, pois os homens que caem nessas experiências se divinizam, substituindo a fé em sentido cristão, por modos mais sólidos de participação na divindade”[2].
Quando juízes extrapolam os limites de sua função, reinterpretando ou criando normas sob o pretexto de promover “justiça social”, eles se arrogam um papel algo messiânico. Essa prática reflete a insatisfação gnóstica de quem observa um mundo a ser “consertado”, o que o filósofo descreveria como uma revolta contra a estrutura da realidade, considerada opressiva, e uma tentativa de transcendê-la por meio de uma nova criação. O juiz ativista, movido pela crença de possuir um conhecimento superior, age como se pudesse corrigir as falhas da sociedade, impondo sua visão ideológica em detrimento da norma posta. Voegelin alerta que “o gnóstico acredita que pode imanentizar o eschaton”[3], ou seja, trazer uma utopia para o presente, uma ambição que, no contexto judicial, se traduz em decisões que buscam transformar a ordem social à revelia da Constituição e das leis.
Com efeito, os “arquitetos de uma nova ordem” passam a considerar as normas existentes como obstáculos à sua missão redentora, deixando de reconhecê-las como legítimas. Voegelin argumenta que a tentativa de substituir a ordem transcendente por uma ordem imanente conduz, em verdade, à desordem, pois nega a realidade da condição humana, marcada por limitações e pela dependência de um mistério maior. “A especulação gnóstica superou a incerteza da fé recuando da transcendência e dotando o homem e seu campo de ação intramundano do sentido da realização escatológica. Na medida em que essa imanentização progrediu experiencialmente, a atividade civilizacional tornou-se uma obra mística de autossalvação. A força espiritual da alma, que no cristianismo era devotada à santificação da vida, agora podia ser desviada para a criação, mais atraente, mais tangível e, sobretudo, muito mais fácil do paraíso terrestre”[4], explica ironicamente o autor.
O corolário do processo está na ocorrência de decisões judiciais que extrapolam o texto constitucional e, enquanto fruto dessa mentalidade revolucionária gnóstica, suplantam a institucionalidade naturalmente conflituosa do processo deliberativo plural impondo uma visão unívoca, o que poderá resultar, segundo o raciocínio de Voegelin, no totalitarismo simbolizado pelo “Leviatã” de Hobbes: “o Leviatã é o símbolo do destino que concretamente sucederá aos ativistas gnósticos quando, no seu sonho, eles acreditam realizar o reino da liberdade”[5].
Para enfrentar essa crise, Voegelin propõe um retorno à tradição de separação entre o imanente e o transcendente reinserindo-se o transcendente na civilização, algo que, por razões históricas, tem sido, segundo o autor, bem sucedido nos EUA e na Inglaterra. “A sociedade ocidental como um todo, portanto, é uma civilização profundamente estratificada em que as democracias americana e inglesa representam o estrato de tradição civilizacional mais antigo e mais consolidado, enquanto a área germânica representa seu estrato mais moderno, em sentido progressista. Nesta situação há uma faísca de esperança, pois a democracia americana e a inglesa, que representam mais solidamente nas suas instituições a verdade da alma, são, ao mesmo tempo, as potências existencialmente mais fortes[6]”. Esse texto de Voegelin é de 1953, escrito logo após o morticínio da Segunda Guerra Mundial e a tentativa fracassada de se instaurar, à força, um “reino de mil anos”. Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, pois[7].
*Fernando Borges de Moraes – Advogado formado pela UFPR, especialista em Direito do Trabalho pela UNISC/ENA, pós-graduando em Filosofia Tomista pela Universidade Católica de SC, sócio de Moraes & Horsth Advogados Associados, membro da Lexum.
[1] CORRÊA, Leonardo. “Manual Republicano de Contenção Hermenêutica”. Estado de S. Paulo. 02/08/2025.
[2] VOEGELIN, Eric. “A Nova Ciência Política: Uma Introdução”. Campinas, SP: Vide Editorial, 2025. p. 155.
[3] Idem, p. 152.
[4] Ibidem, p. 159.
[5] Ibidem, p. 212.
[6] VOEGELIN, Eric. “A Nova Ciência Política: Uma Introdução”. Campinas, SP: Vide Editorial, 2025. p. 213-214.
[7] Mateus 22, 21.