O resultado é a tirania
“Ninguém negará que o poder tem uma natureza usurpadora e deve ser eficazmente impedido de ultrapassar os limites que lhe são atribuídos”. (James Madison, O Federalista n. 48)[1].
Em carta aberta publicada no dia 13 de julho último, intitulada “Em defesa da Constituição, da democracia e da justiça”[2], o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, dá o tom do que considera a “missão civilizadora” do STF ao se pronunciar acerca das sanções impostas pelo Presidente dos EUA Donald Trump ao Brasil, embora sem citar nominalmente o Presidente americano, tampouco o país. Na carta, o Ministro Presidente do STF apresenta um panorama institucional do Brasil recente sob o signo, segundo afirma, da estabilidade democrática decorrente do papel da Corte como guardiã das instituições e defensora da verdade factual, frente às supostas ameaças de ruptura institucional.
A iniciativa do Ministro redator da carta, ao imiscuir-se na seara da diplomacia com o propósito de exaltar, perante nação estrangeira, os pretensos “feitos” da Corte, mais do que legitimar sua conduta, evidencia a hipertrofia de um poder crescentemente concentrado nas mãos de uma elite judiciária dissociada da sociedade e de sua representação legítima.
O “centralismo” do poder no Brasil não é recente. A Constituição de 1988 adotou uma arquitetura institucional inspirada na tradição norte-americana, com separação horizontal e vertical de poderes e direitos fundamentais. Todavia, dadas as competências distribuídas constitucionalmente, no país vige um modelo centralizador herdado de tradições imperiais, onde a União arrecada cerca de 70% das receitas tributárias e estabelece legislação de caráter nacional sobre centenas de temas locais. A novidade é que, para piorar, o poder da União que passou a “legislar” de fato foi o judiciário.
Nesse arranjo disfuncional, o Supremo Tribunal Federal tornou-se o vértice do sistema ao conduzir um projeto político, transformando-se em uma aristocracia à revelia da soberania popular. O problema está justamente na relevância da Corte segundo Barroso, em certa medida, reconhece: ela se tornou o centro político do regime.
O que pode ocorrer quando o poder se concentra em um vértice não eleito e sem freios? Justamente o que a Constituição se presta a evitar. No Federalista nº 46, Madison advertia: “A acumulação de todos os poderes, legislativo, executivo e judicial, nas mesmas mãos, quer sejam as de um, de uns poucos, ou de muitos, quer sejam hereditárias, autonomeadas, ou eleitas, pode justamente ser declarada como a verdadeira definição de tirania”[3].
A estabilidade institucional que Barroso celebra em sua carta aberta pode até existir, mas se sustenta sobre a supressão da separação de poderes e da representação popular legítima. É a paz dos cemitérios, onde apenas uma Corte politicamente entrosada arbitra os limites da democracia conforme seus próprios critérios. O resultado é um regime “centralista” com verniz constitucional, mas sem espaço real para a dialética democrática.
A carta do presidente do STF menciona, com razão, os perigos da ditadura e os erros do passado, mas ignora que uma nova forma de autoritarismo pode não vir fardada. Dissociada da moderação, a toga pode vestir a tirania com as vestes do legalismo: decisões monocráticas e controle cultural via jurisprudência criativa compõem o arcabouço de um novo tipo de “centralismo” revolucionário, paradoxalmente travestido de guardião da Constituição.
Mas nossa tragédia institucional pode ir mais além, posto que tão grave quanto a concentração de poder é a ausência de virtude moral e cívica nas lideranças públicas que se apresentam como iluminados condutores da história. Segundo bem enfatiza Russell Kirk, o sangue do terror revolucionário ainda escorria na França para o assombro de todo o ocidente, mas John Adams “ajudou a salvar a América das piores consequências de duas ilusões radicais[4]: a perfectibilidade do homem e o mérito do Estado unitário”[5]. Para John Adams, segundo pontua Kirk, o equilíbrio da sociedade guarda simetria com o equilíbrio do indivíduo. “A ordem social, como a sanidade humana, depende da preservação de um equilíbrio delicado; e do mesmo modo como homens que, ao abandonar tal equilíbrio se destroem, igualmente, qualquer sociedade que joga os pesos numa das extremidades da balança deve terminar quebrada e desolada. A balança social é a justiça; abandonemos o equilíbrio; a justiça com isso se esvai, e o resultado é a tirania”[6].
No Brasil, ora caminhamos para o pior dos mundos: um estado centralizado e conduzido por elites que se arrogam civilizadoras, enquanto permanecem desconectadas da realidade popular e avessas ao espírito federativo e democrático. Não eleitos tornaram-se parte ativa do jogo de poder e não apenas seu árbitro imparcial. Se a Corte Suprema se torna o centro do sistema, e se os homens que a compõem não são os melhores nem os mais virtuosos, então, como diria Adams, a república já se desfez, ainda que a Constituição permaneça impressa em papel.
*Fernando Borges de Moraes – Advogado, especialista em Direito do Trabalho pela UNISC/ENA, sócio de Moraes & Horsth Advogados Associados, membro da Lexum.
[1] HAMILTON, A. JAY, J. MADISON, J. O Federalista. Fundação Calouste Gulbenkian, 2a ed. Lisboa: 2011. p. 448.
[2] https://claudiodantas.com.br/barroso-escreve-carta-aberta-para-trump/
[3] HAMILTON, A. JAY, J. MADISON, J. O Federalista. Fundação Calouste Gulbenkian, 2a ed. Lisboa: 2011, p. 438.
[4] O adjetivo “radical” é frequentemente usado, no pensamento conservador americano, de forma alusiva à mentalidade revolucionária de viés esquerdista ou coletivista.
[5] Kirk, Russell. A Mentalidade Conservadora, 1ª ed. São Paulo, É Realizações. p. 186.
[6] Idem. p. 191.