Censura a letras de música: o caso MC Poze
Tanto a prisão quanto a recente soltura do funkeiro Marlon Brendon Coelho Couto, conhecido como MC Poze do Rodo, estão dando o que falar. Conforme inicialmente divulgado pela imprensa, a prisão teria se dado em razão de um suposto envolvimento do MC com o tráfico, mais especificamente com o Comando Vermelho, bem como por “apologia ao crime” por meio de suas letras. Quanto à primeira imputação, se devidamente comprovado o envolvimento do cantor com o crime organizado, que seja exemplarmente punido. Já a segunda imputação, digo já na largada que julgo temerária.
O secretário estadual da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Felipe Curi, não economizou palavras e, pasmem, chegou a declarar que “As músicas desse falso artista têm um alcance incalculável e muitas das vezes são muito mais lesivas do que um tiro de fuzil disparado por um traficante“. Trata-se de hipérbole típica do tempo em que vivemos, em que se colocam palavras no mesmo patamar (literalmente) de armas. Não é porque tal narrativa está na boca de um delegado que devemos julgá-la menos estúpida. Dizer que suas letras são mais lesivas do que um tiro de fuzil é da mesma ordem de dizer que piadas matam ou que atentados em escolas são produto de uma pretensa cultura de ódio em vez de atos individuais. Para que não reste nenhuma dúvida de que o caso é mais uma manifestação da onda de censura que acomete nosso país, diz-se que as canções de Poze “extrapolam e muito qualquer tipo de manifestação cultural, artística ou de qualquer tipo de liberdade de expressão”.
Como vimos, o delegado também achou oportuno, como se relevante para a investigação, questionar a legitimidade da arte do MC. Ora, não tenho nenhum apreço pelo tipo de música que ele faz, mas, assim como existe comida ruim e comida boa, existe arte ruim e arte boa. Qual o propósito de chamá-lo de um “falso artista”? Será que tirar o foco do fato de que ao menos parte da razão pela qual foi preso foi o conteúdo de suas músicas, como se deslegitimando-o como artista, apequena a gravidade de criminalizar letras de música? A música ser boa ou ruim não tem importância alguma aqui, do contrário estaríamos delegando para o Estado a função de avaliador de arte, facultando-lhe também o poder de marginalizar o que considerasse de baixa qualidade.
Argumenta a polícia que MC Poze faz “apologia ao crime” com suas músicas. A apologia ao crime, em tese, de fato pode ser uma das situações em que se admite um limite à liberdade de expressão, mas, para tal, ela precisa ser objetiva, concreta e com real possibilidade de provocar danos. Se incentivo uma multidão enfurecida a linchar uma pessoa, certamente não estou resguardado por minha livre expressão, pois minha atitude aqui pode sim causar danos diretos e objetivos. Agora, como uma letra de música pode ser responsável por fazer apologia ao crime? Não pode. Letras de música, por mais que tratem de temas da vida real, são território da ficção, tal como páginas de livros, peças de teatro, piadas etc. Dizer que alguém pode vir a cometer um crime por estar influenciado por músicas que falam de violência é, além de um tiro no escuro, exatamente a mesma narrativa usada pela esquerda identitária para todo tipo de censura woke (“piadas matam”, lembram?). Tal lógica também concorre para imbecilizar as pessoas, como se fossemos tão néscios a ponto de termos que ser protegidos desses conteúdos “perigosos” para não corrermos o risco de delinquir; novamente, o Estado é chamado à “nobre” função de nos tutelar.
Dentre as coisas que escandalizaram o secretário, temos que “As letras enaltecem o uso de armas de grosso calibre e o uso de drogas (…)”. Ora, não são apenas as músicas do MC Poze que falam com tranquilidade de armas, drogas e afins, mas uma porção, talvez majoritária, das músicas de funk. Pretende a Polícia Civil do Rio banir o funk carioca? Esse tipo de conteúdo também é comum em letras de rap, outro gênero que, assim como o funk brasileiro, tem origem nas periferias. Aliás, não é de surpreender que esses temas estejam presentes na estética de gêneros musicais surgidos em segmentos marginalizados da sociedade, os quais tendem a retratar a realidade que veem, realidade essa que pode muitas vezes nos soar indigesta.
Urge ir além. Se querem fazer uma cruzada contra a tal “apologia ao crime” em letras de música, não é apenas o funk, tão fácil de odiar, que deve ser o alvo. Se admitirmos a possibilidade de limites à liberdade de expressão em músicas, o corolário do precedente é que voltaremos ao célebre tempo da ditadura militar em que artistas estavam à mercê de terem suas obras banidas, muitas vezes tendo que picotá-las, adulterá-las, corrompê-las, para poderem divulgá-las.
Não apenas o funk seria o alvo. Músicas que falam de “novinhas” já são típicas de outros gêneros musicais no Brasil; que tal bani-las por “incentivo à pedofilia”? Vamos mais além. Aos companheiros roqueiros, lembremos que, em tradução literal, o primeiro álbum do Metallica é intitulado “Mate todos”. Nesse álbum, está uma das músicas mais clássicas da banda, com a qual ela sempre finaliza seus concertos, acompanhada de um público que no refrão grita entusiasmado (em tradução literal): “Procurando, Procurar e Destruir”. Apesar de grande fã da banda, nunca saí por aí causando destruição após ouvir essa música. Não há como não citar algum exemplar do punk rock; na música mais conhecida dos Sex Pistols, Anarchy in the UK, John Lydon canta sobre como gostaria de “destruir o transeunte”. Devemos proibir a execução dessa música no Brasil sob risco de sairmos nas ruas agredindo pessoas a esmo? Em 1969, os Rolling Stones causaram polêmica com o lançamento de Midnight Rambler, música que é basicamente uma biografia do serial killer conhecido como Estrangulador Boston. Seriam os agora octogenários, que seguem executando a música em seus shows, incentivadores do assassinato em série? Outra música que faz referência a um serial killer é a canção Cannibal da cantora pop Kesha, onde a referência a Jeffrey Dahmer é notória. Estaria Kesha nos incentivando a adotar uma dieta baseada em carne humana? Já o sempre controverso Marilyn Manson criou seu nome artístico a partir de uma combinação dos nomes de Marilyn Monroe e Charles Manson, fazendo alusão ao líder da seita responsável por diversos assassinatos na Califórnia nos anos 60. Seria prudente barrar perpetuamente a entrada do cantor em terras tupiniquins? Retornemos para o Brasil. Se tratar do uso de drogas em músicas escandaliza tanto, deveríamos também passar um pente fino na discografia de Bezerra da Silva, sambista célebre por suas letras de duplo sentido a exemplo de “Tem coca aí na geladeira” – ou até a mais explícita: “Vou apertar, mas não vou acender agora”. Em Bola Dividida, Zeca Baleiro canta “Ela é uma morena sensacional, digna de um crime passional”. Não faríamos bem em eliminar essa música das plataformas de streaming sob risco de que ela incentive a violência doméstica e até mesmo o feminicídio? Por fim, tendo em conta que o delegado Felipe Curi acusa as músicas de MC Poze de fomentarem “narrativas antipolícia”, estaríamos compelidos a proscrever o clássico dos Titãs que inquire de forma taxativa: “Polícia, para quem precisa de polícia”?
Eu poderia citar mais e mais exemplos, mas creio já ter transmitido a mensagem. Não são as letras de músicas que incentivam o crime, tal como não são os jogos de vídeo game, os filmes, os livros, o humor etc. Se MC Poze está envolvido com o crime, que pague por isso, mas por isso, não por fazer músicas de baixa qualidade. Criminalizar letras de música seria abrir uma caixa de pandora que, como demonstrado, facilmente se disseminaria para outros gêneros musicais e logo também acometeria livros, filmes etc.
Causa-me espécie ver certos nomes da direita e até mesmo liberais silenciando sobre isso, que é o óbvio ululante. A explicação, penso eu, é que, quando se trata de segurança pública, personalidades de direita tendem, em nome de uma postura enérgica contra o crime organizado, que se esforçam para sinalizar, a evitar fazer qualquer crítica à atuação policial, mesmo quando perfeitamente cabível. Ora, é preciso ter inteligência para separar as coisas. Dizer que a imputação contra as letras de MC Poze é absurda em nada apequena o combate ao crime. Aquiescer com a narrativa da Polícia Civil é, como demonstrei aqui, incorrer em todas as hipérboles e erros que têm sido usados para justificar a censura no Brasil — bem como no mundo, se pensarmos no identitarismo e seu politicamente correto. Acontece que, assim como muitos setores da esquerda têm seus melindres e suas pautas de estimação, o mesmo ocorre com a direita. Sejamos melhores do que isso. Discursar lindamente dizendo que as pessoas devem ter o direito de expressar, mesmo opiniões abjetas, para, no instante seguinte, se contorcer argumentando que letras de música podem sim ser censuradas é incorrer em fatal contradição e em medonha hipocrisia.
Fontes: