Réquiem de uma profissão

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Há algo de profundamente errado quando uma matéria jornalística precisa de um infográfico para mapear os laços de sangue, casamento e afinidade entre advogados e ministros dos tribunais superiores. Não se trata de suspeita isolada ou denúncia vazia, mas de um diagnóstico evidente: no Brasil, a advocacia técnica foi sepultada sob o peso do sobrenome.

O que deveria ser um ofício pautado na razão jurídica, no mérito dos argumentos, na leitura minuciosa da lei e na fidelidade ao direito, transforma-se, cada vez mais, em um balcão de relações. Troca-se o estudo pelo acesso, o esforço pelo sobrenome, o conhecimento pelo contato.

A reportagem da Folha de S.Paulo, que expôs a teia de relações entre familiares de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça com as partes em uma disputa empresarial de R$ 3,3 bilhões, é um retrato perturbador. É como se o Brasil tivesse finalmente admitido, sem pudor, que o direito já não se resolve mais no direito. Resolve-se nas cercanias do poder.

Como advogar, então? Como manter a ética do estudo, da doutrina, da jurisprudência, da técnica argumentativa, diante de um sistema que recompensa o vínculo pessoal, a genética, a mesa de jantar? Como olhar um jovem advogado nos olhos e dizer que vale a pena estudar, que a melhor petição é a que respeita o texto da lei, que o bom profissional é aquele que domina a doutrina, se as decisões que importam estão cercadas por laços de família?

Mas não é só a técnica jurídica que agoniza. Também morre a escrita jurídica como arte — aquela que nasce do contato com os clássicos, do estudo das formas de persuasão, da retórica antiga e das estruturas narrativas que ordenam um raciocínio. Advogar, no melhor sentido do termo, sempre foi mais do que recitar artigos. Era saber contar uma história com lógica, elegância e precisão. Era transformar o conflito em linguagem. Era convencer pelo conteúdo e pela forma.

A crise, portanto, não é apenas institucional — é existencial para quem leva a profissão a sério. Porque a sensação é a de que a advocacia morreu e ninguém avisou. A de que estamos todos desempenhando um teatro protocolar, enquanto os verdadeiros desfechos dos litígios se negociam nas esferas invisíveis da intimidade.

Não se trata de acusar este ou aquele parente, esta ou aquela banca. Trata-se de constatar que o ambiente está podre. Não porque alguém cometeu uma ilegalidade clara, mas porque o sistema inteiro se tornou indiferente à aparência de justiça, à necessidade de isenção, à exigência republicana de que juízes não podem sequer parecer influenciáveis.

No lugar da advocacia técnica, instituiu-se o “juridiquês genealógico”: filhos, filhas, esposas, sobrinhos, genros, todos orbitando o centro do poder decisório, protegidos por uma legalidade elástica, mas distantes de qualquer senso de decoro.

E, assim, morre a advocacia como instrumento de justiça. Resta o jogo de influência. Resta o acesso ao gabinete. Resta a certeza de que, no Brasil, vale mais um jantar do que um argumento.

Para o advogado que escolheu a via da técnica, da linguagem bem construída, da leitura dos clássicos e da força racional das ideias, resta apenas o luto. Um luto silencioso, duro, sem homenagens. Porque não há velório para a dignidade institucional. Ela simplesmente desapareceu.

Termino este texto com uma tristeza profunda, com uma dor que corrói a alma. A profissão que escolhi, que tanto amo, está desaparecendo diante dos meus olhos. Não por falta de vocação, nem por ausência de bons juristas, mas porque seus fundamentos — o mérito, a técnica, a integridade e a palavra bem escrita — foram sendo substituídos por relações, acessos e vínculos de sangue.

É como assistir a um funeral sem cerimônia, sem tributo, sem resistência. Um réquiem silencioso para a advocacia que acreditava no poder da razão. E quando o que vale não é mais o argumento, mas o laço, resta apenas o lamento de quem ainda insiste em advogar com a alma.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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