Criatividade é sempre positiva?

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Originada do termo em latim creare, a palavra criatividade está normalmente associada a uma das mais sublimes qualidades do espírito humano, evocando a nossa conexão com o transcendente, como exposto por Michelangelo no afresco que ornamenta o teto da Capela Sistina.

A criatividade é fundamental nas artes, acessando-nos através dos nossos sentidos e fazendo com que experimentemos sensações variadas ao ouvir uma composição musical, contemplar uma pintura ou ler uma peça literária.

Há, porém, algumas áreas do conhecimento humano nas quais a criatividade pode ter um papel desastroso, normalmente aquelas relacionadas à segurança. Por exemplo, embora útil ao arquiteto que projeta uma obra, a criatividade não deve ser preponderante quando o engenheiro calcula os alicerces que sustentarão a estrutura sobre a qual essa mesma obra será realizada. Espera-se, por outro lado, que um médico que realiza uma cirurgia não seja criativo, em vez disso empregando o conhecimento e a técnica adquirida ao longo do estudo e da prática que compuseram a sua formação. Da mesma forma, espera-se do comandante de uma aeronave que aplique os procedimentos estritos adquiridos durante o seu treinamento e siga fielmente as recomendações do fabricante da aeronave para sua operação, agregando o mínimo de criatividade possível.

Como visto, embora a criatividade possa ser utilizada sem maiores consequências no caso de uma obra de arte, ainda que malfadada a intenção do artista, nos exemplos acima, a negligência quanto ao conhecimento acumulado por meio da experiência de anos, quiçá séculos, poderá ter efeitos desastrosos, com risco à vida ou à integridade das pessoas confiadas ao profissional que executa a tarefa.

O Direito é uma construção humana forjada a partir da tradição e se dispõe a uma das mais difíceis tarefas: arbitrar os conflitos que naturalmente surgem do convício humano, dando-lhes soluções na direção do ideal abstrato denominado justiça. A ciência jurídica, portanto, nasce para proteger os direitos inerentes à condição humana, notadamente a vida, a liberdade e a propriedade, garantindo-lhes contra injustas perturbações.

Isso está declarado expressamente no preâmbulo da nossa Constituição, documento destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

A segurança a que alude o referido trecho da Constituição nada mais representa do que a previsibilidade na aplicação das normas que regem a vida em sociedade, pautada na aplicação da lei segundo aquilo que se compreende do texto aprovado pelos representantes do povo, especialmente aquelas que possam restringir direitos fundamentais, como a liberdade.

Por isso o artigo 5º da Constituição brasileira trata de estabelecer que a aplicação da lei deve ser igual para todos e que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Mais, não há crime sem lei anterior que o defina.

A leitura conjunta dos enunciados acima não pode ser mais clara no sentido de que a Constituição assegura aos cidadãos a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, significando que não poderão ser obrigados a fazer ou deixar de fazer algo senão previsto previamente em lei regularmente aprovada por seus representantes eleitos.

O sentido da palavra segurança, portanto, é referente ao prévio conhecimento de quais condutas podem ou não ser executadas pelos cidadãos sem que sofram constrangimento ou punições pelo Estado, especialmente no campo criminal. Ao contrário do que muitos imaginam, os direitos em questão não nasceram para proteger criminosos, mas para orientar e proteger cidadãos que desejam cumprir a lei.

Isso quer dizer que lei deve ser redigida de forma clara, evitando ambiguidades ou lacunas que possam abrir espaço para que uma restrição aos direitos fundamentais seja imposta sem o prévio conhecimento dos envolvidos, em clara burla aos preceitos Constitucionais acima referidos.

Ocorre que, em muitos casos, os conflitos intersubjetivos são resolvidos por um juiz, componente de um dos braços do Estado que é técnico, não político. Esse braço é formado por indivíduos com formação jurídica selecionados por um concurso ou outro meio que os habilita a exercer poderes jurisdicionais, decidindo em última instância pela aplicação coercitiva das leis.

Quando um indivíduo busca a tutela jurisdicional, seja manifestando uma pretensão ou se defendendo dela, espera que o juiz aplique a lei no sentido que ela é conhecida e tradicionalmente interpretada, com o mínimo de criatividade possível.

Mais dramática é a situação daquela pessoa contra quem é imputada uma conduta criminosa, pretensão na maioria dos casos exercida pelo Estado por intermédio do titular da ação penal, o Ministério Público. Isso porque, a pessoa espera não apenas que a sua condição subjetiva seja irrelevante para a aplicação da lei, mas sobretudo que a lei definidora do crime a ela imputado seja interpretada em seu sentido estrito, sem que o juiz insira nessa atividade qualquer elemento criativo que possa restringir o direito fundamental à liberdade fora da expetativa do agente quando praticou a conduta.

Portanto, embora de maneira mais sutil do que aquela manifestada nos exemplos do médico, do engenheiro e do piloto de aeronaves, o exercício da função jurisdicional deve evitar ao máximo agregar a criatividade do juiz na aplicação das leis, sob pena de gerar consequências desastrosas que destruam direitos assegurados pela Constituição Federal.

Lembrando que ninguém é coagido no Brasil a ser juiz e que aqueles que querem exercer o seu lado criativo poderão bem empregá-los em outras áreas nas quais ele é bem-vindo e, caso malogrado, não colocará em risco a vida, a liberdade e o patrimônio de outras pessoas.

No Direito, a criatividade pode ser sedutora. Mas quando substitui o texto legal, ela deixa de criar e passa a destruir.

*Leonardo Augusto Andrade – Advogado, mestre em Direito pela PUC-SP e Membro da Lexum.

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