A condenação por litigância de má-fé e o risco de blindagem do Estado contra o controle popular

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A decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) que condenou cidadãos por litigância de má-fé em uma ação popular suscita um debate essencial sobre os limites da fiscalização cidadã dos atos do Estado e a criação de barreiras judiciais que, na prática, protegem a administração pública contra questionamentos legítimos. Ao extinguir a ação sem resolução de mérito e impor multa aos autores, o Judiciário não apenas inviabilizou a demanda, mas também gerou um precedente preocupante: até que ponto o cidadão pode exercer sua prerrogativa constitucional de contestar atos administrativos sem temer sanções financeiras?

No caso concreto, a ação popular visava à impugnação do pagamento do cachê da cantora Maria Gadú, contratada para um evento cultural financiado por recursos públicos. Os autores alegaram que a artista teria feito manifestação política em favor de um candidato durante sua apresentação, o que violaria as normas da Lei de Incentivo à Cultura. O caso tinha um agravante: o show foi em setembro de 2022, há poucas semanas das eleições. O pedido era de suspensão do pagamento, mas, antes de qualquer decisão judicial, a administração pública decidiu voluntariamente bloquear os valores. Para o juiz, a ausência de relação causal entre a ação e a suspensão do pagamento tornava o pedido inadequado, levando à extinção do processo. Além disso, entendeu que os autores utilizaram a ação como instrumento de autopromoção política, distorcendo publicamente seus efeitos, o que justificaria a condenação por litigância de má-fé.

A grande questão é que essa decisão cria um desincentivo ao controle social. A ação popular, garantida pelo artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal, tem como propósito permitir que qualquer cidadão questione judicialmente (e não apenas administrativamente) atos lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Seu objetivo é fortalecer a responsabilidade do Estado perante a sociedade. Quando o Judiciário impõe sanções severas contra aqueles que buscam exercer esse direito, corre-se o risco de comprometer sua eficácia, transformando um instrumento de controle em um perigo financeiro para o cidadão.

Uma análise originalista da Constituição reforça esse ponto. O constituinte de 1988 previu a ação popular como um mecanismo para facilitar – e não dificultar – a participação ativa do cidadão na fiscalização do poder público. Ao sancionar aqueles que exercem esse direito, o Judiciário distorce a finalidade do dispositivo e impõe uma barreira que não foi prevista no texto constitucional. Se o propósito da ação popular é permitir que o cidadão atue como fiscal da administração pública, qualquer interpretação que torne esse mecanismo excessivamente oneroso ou arriscado para quem o utiliza contraria a intenção original do legislador constituinte.

A condenação dos autores foi fundamentada na alegação de que a ação teve um viés político e que houve divulgação imprecisa sobre seus efeitos. Contudo, a simples divulgação de uma ação judicial não configura, por si só, litigância de má-fé. A publicidade é a regra para todos os atos administrativos e judiciais. Se esse fosse o critério, diversos políticos, ativistas e até mesmo membros do próprio Judiciário poderiam ser enquadrados da mesma forma. Além disso, a afirmação de que a ação não teve impacto na suspensão do cachê ignora uma questão relevante: se a administração pública não enxergava irregularidade no pagamento, por que teria alterado sua conduta? Mesmo que não seja possível comprovar que a ação causou a suspensão, não há dúvida de que ela trouxe atenção para o caso, o que pode ter influenciado a decisão administrativa.

Há aqui falta de tecnicidade e contradição ao extinguir-se uma ação que visa impugnar um ato lesivo ao patrimônio público por ter a própria Administração suspendido o pagamento por estar “apurando a existência de irregularidades”. Em vez de inviabilizar a ação, a postura da Administração, na realidade, confirma os graves indícios de irregularidade apontada pelos autores da ação popular. Trocando em miúdos, o agente público inclinou-se no sentido de reconhecer a procedência do pedido da ação popular. O juiz poderia, no máximo, suspender ação enquanto o Poder Público apurava a suposta irregularidade, apesar de não existir no Brasil a obrigatoriedade de esgotar as instâncias administrativas antes de procurar o Judiciário (art. 5º, XXV, Constituição Federal).

O efeito prático da condenação dos autores como litigantes de má-fé é a criação de um ambiente no qual cidadãos comuns pensarão duas vezes antes de questionar atos administrativos, não por falta de fundamento, mas pelo receio de represálias financeiras. Essa abordagem compromete a transparência e a prestação de contas da administração pública, além de reduzir a eficácia da ação popular como ferramenta de fiscalização. O Judiciário tem o dever de coibir abusos do direito de ação, mas precisa fazê-lo sem transformar a ação popular em um risco desproporcional para quem deseja exercer seu direito constitucional de questionar o Estado.

Outro contrassenso da decisão é o curioso fato de que a artista fez descarado uso eleitoreiro do show pago com recursos públicos, violando a necessidade de impessoalidade nas ações governamentais (art. 37 da CF/88) e as regras que regem a sua contratação. E os autores que questionaram o ato foram quem receberam multa por uso eleitoreiro de ação. Nem mesmo Raskólnikov, de Crime e Castigo, experimentou conflitos internos tão tormentosos. Os atos judiciais devem ser logicamente coerentes (ver arts. 473, § 1º, 926 e 1.022, I, todos do Código de Processo Civil).

Em vez de punir os autores, o juiz poderia, na pior das hipóteses, suspender o processo enquanto apura-se a irregularidade. Se confirmada a regularidade do show, ainda assim após a devida instrução processual, a ação poderia ser improcedente, , mas sem a imposição de sanções financeiras, umas vez que até a própria Administração teve dúvida sobre o descumprimento das obrigações por parte da artista. A mensagem transmitida por essa decisão é clara: questionar o Estado pode sair caro. No longo prazo, esse tipo de penalização enfraquece os mecanismos democráticos de controle, cria um desestímulo à participação cidadã e contribui para a construção de um Judiciário que, ao invés de proteger o direito dos cidadãos de fiscalizar o poder público, acaba servindo como um escudo contra a própria fiscalização que deveria incentivar. A preservação da ação popular como instrumento legítimo de controle estatal exige que o Judiciário atue com coerência e parcimônia ao impor penalidades, garantindo que o direito à fiscalização não seja transformado em um risco para aqueles que buscam zelar pelo interesse público.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

* Thiago Tourinho – Advogado, bacharel em direito pela UERJ e Mestre em direito pela UNESA.

*Artigo publicado originalmente no site da Lexum.

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