“O movimento intelectual conservador da América desde 1945” – uma síntese muito elucidativa
Lançado no Brasil em edição especial do Clube Ludovico, projeto de assinatura de livros mantido pela LVM Editora, O movimento intelectual conservador da América desde 1945, do historiador George Nash (n. 1945), teve sua primeira edição publicada em 1976, embora tenha sofrido expansões e revisões posteriormente para abarcar um período maior. Trata-se de obra de referência para compreender, do ponto de vista de suas raízes intelectuais e teóricas, o tipo de reação que se levantou nos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial contra as teses ditas progressistas e esquerdistas.
Para compreender a vasta obra – e os editores brasileiros foram muito felizes em incluir observações a esse respeito -, é preciso ter em mente que, ao começo do século XX, especialmente após o New Deal do presidente Franklin Roosevelt (1882-1945), era praticamente hegemônico na política americana o chamado “moderno liberalismo”, “novo liberalismo” ou “liberalismo social” que já havia surgido no Reino Unido demandando uma postura mais ativa do Estado em comparação com a tradição clássica liberal. Sob a influência de autores como John Dewey (1859-1952), alternativamente – ora significando a mesma coisa, ora significando gradações ideológicas diferentes -, as palavras “liberalismo” e “progressismo” ganharam corpo na vida pública americana atreladas à demanda por mais Estado.
Por isso, em diversos momentos ao longo da obra, quando os termos “liberal” ou “liberalismo” aparecem, não podemos entendê-los no sentido clássico, mais comum no resto do mundo e no Brasil. Com o tempo, diante da hegemonia do “moderno liberalismo” na política americana, “liberalismo” ficou associado à ideia do apelo por um Estado mais interventor para libertar as pessoas dos preconceitos e prejuízos sociais, forçando a tradição clássica do liberalismo a refugiar-se em outras palavras, tais como, precisamente, “conservative” ou “libertarian”. De tal forma isso aconteceu que “liberal” e “conservative” se tornaram as expressões mais usuais na polarização político-ideológica americana e, graças a isso, agendas mais radicais do que as que os liberais sociais originários jamais sonhariam em esposar foram absorvidas retoricamente pela palavra “liberal”.
O que George Nash faz é analisar os autores e ativistas intelectuais que ensejaram a reação consistente de ideias que emerge no pós-guerra contra a hegemonia desse “moderno liberalismo” ou do “progressismo”, reação essa que ele trata generalizadamente pela designação de “movimento conservador” ou “conservadorismo”. O autor já principia por reconhecer que uma definição precisa desse termo é muito difícil de ser alcançada, não sendo exatamente seu intento encontrar a explicação universal do conservadorismo e dirimir as contendas semânticas travadas continuamente a respeito.
Seu objetivo era abordar “o conservadorismo como um movimento intelectual na América, em um período específico”, “o conservadorismo tal como existiu em um determinado momento e em um determinado lugar”, “identificável como resistência a certas forças percebidas como esquerdistas, revolucionárias e profundamente subversivas àquilo que os conservadores da época consideravam digno de valorizar, defender e, quem sabe, de morrer por”. O uso do termo se justificaria porque “ou elas (as pessoas estudadas, os autores) se chamavam conservadoras ou porque outras (que se chamavam conservadoras) consideravam-nas como parte do seu movimento intelectual conservador”. Senti muita empatia pelo autor em seu esforço por explicar sua escolha semântica e metodológica, já que experimentei as mesmas dores ao redigir meu livro Guia Bibliográfico da Nova Direita; meu objetivo não era discutir o conceito de “direita”, mas abordar um movimento específico de ideias em determinada época da vida social brasileira. Eis o que ele faz em relação aos EUA, embora com um objeto de estudo de dimensões até mais vastas e enraizadas.
Ao longo de uma introdução, doze capítulos, uma conclusão e alguns conteúdos acrescidos sob a forma de apêndices ou posfácios, o grande livro de Nash descreve detalhadamente como um conjunto de ideias, constantemente tensionadas entre si, sem jamais alcançar plena harmonia, sem jamais concordar totalmente quanto ao que seria de fato o “conservadorismo” a ser defendido, se robusteceram no período após 1945 e encontraram alguns instrumentos de confluência – destacadamente: a revista National Review, capitaneada por William Buckley Jr. (1925-2008) a partir de 1955, e as candidaturas presidenciais de Barry Goldwater (1909-1998, derrotado) e Ronald Reagan (1911-2004, vitorioso), focos de união em que as diversas vertentes desse assim chamado “movimento conservador” se manifestaram e marcaram algum tipo de presença simultaneamente, a despeito de suas divergências. O “liberalismo” que enfrentavam tinha espaço tanto no Partido Democrata quanto no Partido Republicano, dentro do qual o movimento adquiriu mais tração. Gradativamente, esse tipo de “direita” (permitam-me utilizar esse termo) mais consistente quanto às definições de seus princípios conquistou espaço perante o domínio centrista de cacoetes “liberais” (ou “liberals”) deste último partido, de figuras como Nelson Rockefeller (1908-1979), que exibiam uma aceitação maior, ainda que parcial, do legado do New Deal.
Seria impossível abordar em profundidade os temas e divergências de todos os autores sintetizados por Nash na vastidão de seu livro. O mais adequado para os limites de uma resenha é elencarmos as principais vertentes em que ele divide o “movimento conservador” que está dissecando. A primeira delas seria a dos “liberais clássicos” ou “libertários”, “resistindo à sempre crescente ameaça do Estado contra a liberdade, livre iniciativa e individualismo. Convencidos de que os EUA estavam rapidamente à deriva em direção ao estatismo (socialismo), esses intelectuais ofereceram uma alternativa que alcançou certa influência acadêmica e popular por volta da década de 1950”. Nessa categoria, Nash trabalha personalidades como Friedrich Hayek (1899-1992), Ludwig von Mises (1881-1973), Henry Simons (1899-1946), Frank Knight (1885-1972), Albert Jay Nock (1870-1945), Frank Chodorov (1887-1966), John Flynn (1882-1964), Leonard Read (1898-1983), Milton Friedman (1912-2006), John Chamberlain (1903-1995), Henry Hazlitt (1894-1993) e Ayn Rand (1905-1982).
A segunda categoria enquadrada por Nash era a dos “tradicionalistas” ou “novos conservadores”, “chocados pelo totalitarismo, pela guerra total e pelo desenvolvimento da sociedade de massa, sem raízes e secular, durante as décadas de 1930 e 1940”, que “encorajaram um retorno para as religiões tradicionais e para os absolutos éticos, além de uma rejeição do “relativismo”, que, como se alegava, já havia corroído os valores ocidentais e produzido um vácuo intolerável que estava repleto de ideologias demoníacas”. Nesse grupo, que, com muitas diferenças – algumas bastante fundamentais -, queria defender o sentido de ser americano e a civilização ocidental, incluir-se-iam autores como Richard Weaver (1910-1963), Peter Viereck (1916-2006), Russell Kirk (1918-1994), Robert Nisbet (1913-1996), John Hallowell (1914-1991), Bernard Iddings Bell (1886-1958), Eric Voegelin (1901-1985), Leo Strauss (1899-1973) e Willmoore Kendall (1909-1967).
Por fim, haveria uma terceira classificação, a de um “anticomunismo evangélico e militante, moldado decisivamente por uma série de influentes ex-radicais da década de 1930”, “antes homens de esquerda”, que “trouxeram para a direita do pós-guerra uma profunda convicção de que o Ocidente estava engajado em uma luta de titãs contra um adversário implacável – o comunismo -, o qual procurava nada menos do que a conquista do mundo”. Esses homens, entre os quais Nash ressalta Whittaker Chambers (1901-1961), James Burnham (1905-1987) e Frank Meyer (1909-1972), ofereceram um inimigo comum que serviu de argamassa para as frentes de convergência prática que se tornaram possíveis – sem jamais implicarem uniformidade teórica – na figura tanto do comunismo propriamente dito quanto do “progressismo” (que seria um adversário pusilânime e frequentemente conivente dos comunistas).
Ao final de seu livro, Nash ainda elenca alguns desdobramentos ideológicos mais tardios do movimento conservador – como o “neoconservadorismo” ou “progressismo de direita” de Irving Kristol (1920-2009), uma facção de “progressistas desiludidos para a direita”; a reação ferina a eles por parte de outros setores do conservadorismo, que, por vezes, se autodeclaravam “paleoconservadores”; e a chamada “Direita religiosa”, “um movimento de protesto de pessoas comuns, iniciado por cidadãos estimulados, muitos dos quais eram protestantes fundamentalistas, evangélicos e pentecostais, juntamente com alguns católicos romanos e judeus ortodoxos”, e que foge um pouco do escopo do livro por não ser considerada um movimento de natureza intelectual. Todos esses elementos, segundo Nash, constituíram de alguma forma a “coalizão Reagan” a ponto de, “por volta do fim do segundo mandato do presidente Reagan, a Direita americana” envolver “cinco impulsos distintos: libertarianismo, tradicionalismo, anticomunismo, neoconservadorismo e a Direita religiosa”.
Nash concluiu seu texto apontando a queda do muro de Berlim e da União Soviética como enfraquecimentos da ideia do comunismo como inimigo comum, estimulando a fragmentação do “movimento conservador” americano. Porém, as tensões internas, as divisões e as dificuldades encontradas na Era Bush não significariam a extinção do fenômeno, que tem espaço sólido na realidade social americana e ainda teria o terrorismo do fundamentalismo islâmico e a continuidade das agendas progressistas – até sob feições mais extremas, como as oriundas da chamada Nova Esquerda – como oponentes comuns.
Um aspecto que ressalta das páginas de George Nash é a quantidade de divergências do movimento. A pertinência da virulência anticomunista do senador Republicano Joseph McCarthy (1908-1957), a validade do contratualismo lockeano e do individualismo do liberalismo clássico como componentes de um pensamento conservador (e de uma aliança mais forte entre libertarianismo e conservadorismo tradicionalista, proposta por Frank Meyer dentro do chamado “Fusionismo”), o nível de recepção ou rejeição aos desdobramentos institucionais e culturais da modernidade, até a adequação do irlandês Edmund Burke (1729-1797) – tido como “pai do conservadorismo britânico moderno” – como inspiração para os conservadores americanos, todos esses tópicos e muitos mais geravam entreveros e ataques mais ou menos intensos entre os integrantes desse “movimento”.
Nash examina de maneira atrativa e rica todos esses embates, que nos injetam certa dose de otimismo, já que vemos divergências talvez menos qualificadas, mas muito similares, entre os integrantes de nossa “Nova Direita”. Vejo com certa estupefação o quanto os grandes nomes mencionados se enfrentavam por sutilezas e por vezes mal sabiam reconhecer o que os unia; o leitor certamente apreciará a experiência de se surpreender com isso como eu e reconhecer nessas peripécias norte-americanas algumas das que ora vivemos. Se os americanos conseguiram atravessar tantas turbulências e deixar um legado, também podemos.
O livro de Nash não alcançou o período de ascensão de Donald Trump (n. 1946), que afetou drasticamente o conservadorismo americano e o Partido Republicano em específico. Sabemos que o autor é crítico ao trumpismo, que considera uma deturpação de todas as agendas conservadoras – a dos libertários, por defender protecionismos; a dos tradicionalistas, pelo seu estilo de vida e tudo que representou no passado; a dos anticomunistas, por suas investidas contra a OTAN.
Seja como for, o que quer que pensemos a respeito, o livro é um trabalho de fôlego e absolutamente recomendável. Secundariamente, permite “humanizar” uma série de gigantes referências que nos acostumamos a abordar em nossos debates políticos e intelectuais e, principalmente, é um mergulho de extrema profundidade no que há para desbravar no conservadorismo norte-americano.