“Gênese do democratismo luso-brasileiro”: a diferença entre liberalismo e democratismo
Editado pela Universidade Federal de Santa Maria em 1995, o opúsculo Gênese do democratismo luso-brasileiro é de autoria de Selvino Antonio Malfatti, gaúcho licenciado em Filosofia pela PUCRS e doutor pela Universidade Gama Filho, além de pós-doutor pela Universidade Clássica de Lisboa. Seu interessantíssimo e didático trabalho, através de uma narrativa concentrada nas peripécias políticas de Portugal na origem de seu constitucionalismo, aborda uma tese muito cara, por exemplo, aos trabalhos do professor Antonio Paim (1927-2021): a de que a influência do pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ensejou a formação, ao lado do liberalismo, de um tipo distinto de pensar político, que, bebendo da fonte do historiador português Joel Serrão (1919-2008), Malfatti e Paim chamam de “democratismo”.
O objetivo do livro, declarado desde o começo, é identificar a natureza dessa ideologia chamada de democratismo e sua origem na cultura luso-brasileira a partir da experiência política portuguesa no século XIX. Assim como Paim, Malfatti reconhece a origem da democracia representativa moderna no desenvolvimento das leis eleitorais inglesas, permitindo a presença de novos interesses e classes sociais dentro do sistema representativo. Ele estabelece uma distinção fundamental entre essa experiência político-institucional e o democratismo rousseauniano, que se alicerçaria em dois conceitos: “a soberania popular e a vontade geral”.
Nesse sentido, “a vontade geral significa que, feito o “contrato”, cada um abdica de seus direitos pessoais e os transfere para a nova entidade, o Estado. Este passa a ser a vontade única, ou a vontade geral. Há uma identidade entre povo e Estado. O povo, por sua vez, porque é o Estado, torna-se soberano. Se transferisse ou delegasse sua vontade, deixaria de sê-lo”, o que significa que o povo deve exercer a soberania diretamente o tempo todo através do Legislativo (que ele próprio encarna), sempre em assembleia, “sempre em potencial estado revolucionário, porque a qualquer momento pode mudar sua vontade e pôr abaixo tudo o que fizera momentos antes. Assim, a ideia de contínuas consultas populares, decisões de massa, assembleias permanentes, revolucionarismo, poderia ser a característica maior do democratismo”.
A tese central é de que essa ideologia mais extremada, de raiz rousseauniana, ainda que por vezes apresentando-se sob a rotulação de “liberalismo radical” ou “radicalismo”, em verdade, constituiria um fenômeno particular, que seria mais pertinente tratar como uma corrente de pensamento paralela ao liberalismo propriamente dito, de matriz lockeana, que se distinguiria por ver a sociedade não como uma vontade geral, mas como “uma pluralidade de vontades, com interesses específicos e legítimos. O Estado impõe-se como instrumento que gerencia os interesses, através da representação. A soberania reside no povo, mas este institui diversos poderes e representantes que, em seu nome, exercem a soberania. (…) O revolucionarismo dá lugar à atividade parlamentar e as decisões, em vez do apelo às massas, fazem-se através de maiorias parlamentares”.
O livro de Malfatti se divide em oito capítulos. O primeiro, “Antecedentes doutrinários do absolutismo, democratismo e liberalismo”, identifica o que considera autores centrais para compreender a história dessas três correntes de pensamento político que se defrontam no alvorecer da Modernidade, antes de se fortalecerem ou mesmo existirem outras como o socialismo e o fascismo. Nicolau Maquiavel (1469-1527), Jean Bodin (1530-1596), Hugo Grócio (1583-1645) e Thomas Hobbes (1588-1679) seriam os autores que dariam conta de representar o absolutismo, identificando a soberania política na figura do rei e não do povo. Samuel Pufendorf (1632-1694), Jean-Jacques Burlamaqui (1694-1748), João Cristiano Wolff (1679-1754) e Emer de Vattel (1714-1767) seriam autores de transição, intermediários entre o absolutismo e o sistema representativo. O liberalismo seria personificado por John Locke (1632-1704), associando a soberania e a representação. Por fim, há os autores que Malfatti associaria ao democratismo, com sua premissa da soberania indelegável. Ele aí relaciona Montesquieu (1689-1755), embora tome o cuidado de dizer que mais pela leitura que os revolucionários fizeram dele do que por seu pensamento propriamente dito – o que seria, a meu ver, uma injustiça. Similarmente, antes do próprio Rousseau, ele elenca uma série de enciclopedistas franceses como precursores do democratismo, entre eles Voltaire (1694-1778) – embora honestamente me pareça que, a despeito de seus notórios excessos, não faz muito sentido considerar Voltaire um autor que esteja fora do liberalismo.
O segundo capítulo, “Aspectos históricos do vintismo-setembrismo”, começa a introduzir a aplicação específica à histórica portuguesa que o autor empreende em seu livro. O tema será desenvolvido nos capítulos subsequentes, “Correntes políticas em Portugal quando da Revolução do Porto”, “As ideias políticas nas Cortes e a estrutura do poder na Constituição de 1822”, “O golpe de D. Miguel”, “A radicalização do Miguelismo e o conservadorismo liberal” e “A emergência do setembrismo e a revivência do democratismo”. Segundo Malfatti, desde a Revolução do Porto em 1820, que pressiona pela constitucionalização de Portugal e a volta do rei D. João VI (1767-1826) para o país depois de longo período vivendo no Brasil, o democratismo convive com o liberalismo entre os portugueses e, em diversos momentos, faz-lhe concorrência. Por sua incapacidade em comum de acatar a ideia da delegação de poder soberano e pela versatilidade com que apelavam ao povo e a determinadas forças sociais para legitimar seu poder, ele chega a afirmar que o democratismo tinha parecenças com o absolutismo, apesar de serem inimigos.
Depois das tensões do Porto e da perda do Brasil, declarado independente, o absolutismo português ganha força novamente com o golpe de D. Miguel (1802-1866), apoiado por sua mãe Carlota Joaquina (1775-1830), havendo uma triunfante reação liberal com a vitória de D. Pedro IV – no Brasil, D. Pedro I (1798-1834) – sobre o irmão. Malfatti caracteriza D. João VI como um absolutista paternalista que, entretanto, mantinha razoável soma de liberais entre seus conselheiros e integrantes de seu governo, entre eles Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Sobre D. Pedro I, diria que “poderia ser considerado um governante voluntarioso e não um professante de uma determinada corrente política. Não era liberal genuíno, muito menos democrata. Teria pendores absolutistas? Os fatos atestam o contrário”. Concordo em que nosso primeiro imperador era voluntarioso e isso era um dos fatores que tornavam por vezes seu liberalismo contraditório, mas preferiria falar nesses termos, isto é, em um “liberalismo contraditório”, a dizer que ele não aderia a um ponto de vista, já que foi visto à época por toda a Europa como um “campeão das ideias novas”.
Por fim, a Revolução de Setembro de 1836, que levou à Constituição de 1838, é interpretada pelo autor como uma revivescência das forças democratistas presentes na Revolução do Porto. O governo setembrista assumiu proporções ditatoriais, sendo o democratismo “incapaz de atuar no terreno parlamentar”. Findou-se com uma retomada do constitucionalismo liberal, com a “consagração de um liberalismo conservador ou clássico”. O democratismo, diria Malfatti, “apesar de sepultado seu cadáver, permaneceu uma alma penada, ficou errante, procurando um corpo para reencarnar. Encontrá-lo-á no republicanismo e no socialismo, como sugere Joel Serrão”. Os desdobramentos do democratismo e sua influência como substrato dessas outras ideologias, porém, ultrapassam o escopo do pequeno livro.
O último capítulo, “Diferenças entre democratismo e liberalismo”, faz as últimas reflexões do livro sobre a necessidade, de acordo com a tese central, de diferenciar essas duas correntes. Podem-se destacar: o fato de que o democratismo é revolucionário, aplicando-se, na prática da política portuguesa, pela opção recorrente ao golpe de Estado, a rejeição a qualquer reformismo e a necessidade de agir “deitando tudo abaixo”, ao contrário do liberalismo, mais disposto à via eleitoral; o anseio democratista de sustentar-se politicamente nas massas, enquanto o liberalismo pretende as maiorias parlamentares e apela ao povo durante as eleições; o desejo democratista da unanimidade, enquanto o liberalismo aceita o pluralismo como natural; o exclusivismo democratista, por oposição à busca liberal pelo consenso e a negociação; a opinião pública, na visão democratista, sendo resultado da ação política, ao passo que, no liberalismo, a ação política resulta da opinião pública, objetivando-se “auscultá-la para então encetar” uma atitude; a submissão plena dos poderes ao Legislativo, exercido pelas Cortes, enquanto o liberalismo divide os poderes de maneira mais equilibrada; e a vontade do liberalismo de “abrir as alternativas para garantir os interesses específicos e, nesse sentido, removiam-se os tropeços que poderiam limitar a liberdade”.
Haveria ainda uma diferença antropológica entre democratismo e liberalismo. O primeiro enfatizaria o homem como um ser social que precisa ser regenerado, um “bom selvagem” corrigível pela mudança das instituições exteriores e um ser indefinido dentro do processo histórico. Já o liberalismo preferiria partir do “homem concreto, com nome, morada e problemas ou interesses”, sendo pragmático, concebendo o homem como um ser que busca a própria satisfação e uma “individualidade transcendental, valor em si, não redutível a qualquer outra realidade”.
Particularmente, estou de acordo com a tese de que é mais efetivo entender na influência rousseauniana a fonte de uma ideologia paralela e não simplesmente uma vertente liberal para a compreensão das complexidades políticas dos séculos XVIII e XIX. O livro de Selvino Malfatti é uma didatíssima apresentação do conceito de democratismo e de uma parte da história portuguesa muito relevante para a experiência brasileira.