De volta ao Estado católico de Carlos Nougué
Alguns devem recordar a polêmica de que acabei tomando parte acerca do mérito e da natureza de um eventual “Estado católico” no Brasil. Não retomarei todos os argumentos e todos os aspectos da questão; o artigo em que abordei o assunto está aqui.
Recebi à época diversas críticas – para tentar tratar algumas delas por uma expressão mais respeitosa, porque foram bem além de simples críticas. Uma delas foi a de que me referi ao intelectual católico Carlos Nougué sem citar seu nome, mencionando-o como um dos “mais ilustres proponentes contemporâneos” da tese do Estado católico. Outros me acusaram de estar atacando um espantalho, porque eu não teria compreendido em que efetivamente consistiria o dito Estado católico e teria inventado uma versão autoritária saída direto da minha cabeça.
Quanto ao primeiro ataque, não citar o nome da personalidade a que me refiro em um artigo não é exatamente uma novidade, nem é algo que apenas eu faça; entretanto o trecho remetia ao link da página do professor Nougué em que ele dizia as sentenças que eu lhe atribuía. Tanto assim que todos facilmente o identificaram. Não considero essa questão mais do que uma implicância rasteira, mas para efeito de afastá-la, aqui o nome dele está no próprio título do artigo.
Acerca do segundo ponto, acredito que as citações e as observações que fiz do comportamento de outros tradicionalistas antiliberais que utilizaram essa retórica do “Estado católico” justificavam de forma suficiente as apreciações que expus. De todo modo, volto ao assunto agora porque, no último dia 13 de maio, o professor Carlos Nougué publicou um programa completo do que seria o seu Estado católico, sob o título Proposta por um Brasil Cristão – Rumo ao Reinado Social de Cristo! Brasil, a Terra de Santa Cruz! Viva Cristo Rei!.
Deixando de lado o título exageradamente pomposo, o texto foi publicado em um site lançado por uma instituição chamada Centro Anchieta e tem justamente a pretensão de oferecer um rearranjo constitucional para o Brasil com base na ideia de transformá-lo em um Estado submetido a uma religião oficial, o Catolicismo Romano. Alguns de nossos críticos sustentaram, contrariando o que vinha pessoalmente observando no comportamento desses núcleos religiosos, que todos eles propunham tão-somente um Estado confessional, a exemplo do Reino Unido, por exemplo, em que todas as principais liberdades individuais seriam preservadas. Fosse apenas isso e diríamos somente que não enxergamos a utilidade dessa medida e que indubitavelmente tal artificialidade não resolveria nenhuma das nossas dificuldades, não obstante não fosse uma proposta propriamente autoritária. O que toda a população não-católica do Brasil teria a ganhar com isso?
Porém, agora, temos um documento mais minucioso e formalizado. Vamos a um exame de alguns aspectos que ele contém. Começo pelas qualidades do texto. Sim, elas até existem. Nougué defende que a Constituição seja “o mais simples possível, fundada em seu preâmbulo e despida de emendas e subemendas que – como se dá, com efeito, com a atual – não só muitas vezes se contradizem, mas a tornam em conjunto impraticável”. Defende a redução do aparelho burocrático estatal. Diz que se deve reduzir a atuação econômica do governo e investir no princípio de subsidiariedade. Deve-se ainda reduzir a carga tributária. Não se devem aceitar reformas agrárias baseadas em moldes revolucionários e é necessário respeitar a propriedade privada. Aparentemente, do ponto de vista econômico, está tudo muito bom, por uma ótica liberal. Tudo muito bonito. Certo?
Errado. O mesmo texto diz, sem especificar o que isso significaria, que não se pode privatizar nenhuma estatal “em detrimento da nação ou em benefício de grupos estrangeiros que representem, de algum modo, uma ameaça a ela”, o que quer que isso signifique na prática. O texto também prega que o “governo cristão” se preocupe “com que os preços e os salários sejam justos, o que supõe uma reeducação geral dos empresários segundo a Doutrina Social da Igreja”. Como será feita essa reeducação e de que modo a disposição de preços e salários nesse contexto não teria caráter impositivo, é difícil vislumbrar.
O governo também teria a missão de “restringir o mais possível a usura bancária” e impor “limites à liberdade de mercado”, que deveriam decorrer “unicamente, por um lado, das necessidades do bem comum e, por outro, da incontornável moralidade; assim, por exemplo, a indústria pornográfica não há de ter nenhuma liberdade econômica”. Eis aí a chave para uma orientação extremamente vaga sobre a liberdade econômica; e se o governo cristão compreendesse, por exemplo, que um filme sobre o fundador de outra religião é algo que fere a “incontornável moralidade” e ameaça o “bem comum?”? E se assim se julgarem as editoras de livros espíritas? Ou as editoras evangélicas, ou de qualquer outra denominação religiosa que contradiga a “fé correta da Santa Igreja Católica”? Que aspecto desse texto permite concluir que essa liberdade será preservada? Isso poderia ser ampliado para diversos outros setores em que o texto de Nougué é perigosamente indefinido.
No campo das relações internacionais, o texto estabelece que o Brasil deve se unir com a Polônia e a Hungria de preferência a “quaisquer outros países que se declarem cristãos”, uma absoluta insanidade que contraria qualquer bom senso na forma de se buscarem e formalizarem parcerias mundo afora. Diz ainda que o regime brasileiro deve estabelecer uma “autoridade suprema firme” que ao mesmo tempo faça o povo “participar de algum modo e em algum grau da dignidade de governar, assim como Deus, a causa primeira de tudo, dá a suas criaturas a dignidade de ser causas segundas e participar assim do governo do mundo”. Faz, portanto, uma analogia bastante assustadora entre o Estado cristão e seus governantes e Deus quanto à relação com o povo. Nada menos que isso.
O pior mesmo está no que o programa pontua acerca das liberdades civis e, em especial, como era de se prever, no âmbito da liberdade religiosa. De maneira totalmente gratuita, Nougué quer colocar no preâmbulo da Constituição os Dez Mandamentos “e a tripla virtude teologal da Fé, da Esperança e da Caridade, além da afirmação peremptória de que nosso país se põe sob Cristo Rei e sua Mãe, Nossa Senhora de Aparecida”. Respeito a fé de todos, mas tenho certeza de que nosso déficit fiscal, nossa violência descomunal, nossos problemas de toda sorte não serão reduzidos em um til simplesmente por essa inserção despropositada. Se o leitor acredita que colocar o país nominalmente “sob Cristo” na Constituição operará um milagre e nos proporcionará algum tipo de benefício concreto que justifique estarmos estudando seriamente essa proposta, não parece que temos realmente muito sobre que dialogar.
Na área da educação, nosso autor quer que seja combatida “a nefasta doutrina de que o homem descende do macaco ou de qualquer ancestral comum a ele”, sendo o homem e a mulher feitos “do barro da terra, mas à imagem e semelhança de Deus”. Acredito que a simples citação é suficiente e dispensa maiores comentários de minha parte. O governo católico deve também “combater tenazmente, sobretudo pela educação, mas, se necessário, também politicamente, toda forma de “arte” imoral ou que induza ao uso de drogas, etc.” De novo: o que é “imoral”? Que tipo de interferência “política” será aplicada sobre a liberdade de pessoas adultas de consumirem ou presenciarem a manifestação artística – ou “pseudoartística”, qual seja – que desejarem, com seus próprios recursos? O que tornará tal combate “necessário” e como ele será feito? Outra margem aberta a arbitrariedades motivadas pela visão subjetiva de quem aplicar essas imprecisas e perigosas determinações.
Felizmente, o autor faz uma ressalva, alegando que “pela situação atual do país e do mundo, não se pode impor com exclusividade o ensino da religião católica” (quase me deixa aliviado!). No entanto, diz que “um governo católico se dará o direito de favorecer de todas as maneiras as escolas católicas”. De novo: o que são “todas as maneiras”? Naturalmente, subsídios estatais mais ou menos polpudos haverão de estar nessa fatura. A “situação atual do país” é a de um crescimento substancial dos evangélicos e um afastamento contundente do cenário de nação que o sr. Nougué imagina. Que reação ele espera que os adeptos de outras crenças manifestem a esse favorecimento que não existe hoje surgindo repentinamente do nada como suposta solução providencial?
Diz-se que o ensino não seria propriamente estatal em nenhum caso e seria universal e gratuito para os necessitados, mas não obrigatório, sendo o acesso aos diversos níveis conseguido apenas por mérito. É interessante como o texto tenta apresentar a educação como uma obra da iniciativa privada, mas, como nos demais tópicos, deixa sempre aberta uma gama elástica de questões em que o Estado nela se intrometerá. O programa de Nougué de fato diz muito mais sobre o que o Estado deve fazer do que sobre o que não deve, como se esperaria em uma Constituição mais inspirada por um ideário liberal.
O governo católico terá ainda “canais radiotelevisivos próprios ou que o apoiem, não para fazer propaganda de si, mas para divulgar a boa arte (música clássica, o melhor cinema, etc.), para apresentar programas científicos e documentários não anticristãos, para propiciar ao povo noticiários verazes, etc.”. Ora, sr. Nougué, qualquer tirano poderia dizer que seus canais de mídia oficiais não são para fazer propaganda de si mesmo, a questão é se isso seria verdade! O tal governo do Estado católico de Nougué terá veículos próprios para apresentar as notícias como o Estado quer que elas sejam transmitidas (é esse o significado da expressão “notícias verazes” na prática), um espaço estatal para divulgar o conhecimento e manifestações artísticas que interessam ao Estado, uma verdadeira versão mais profissional – a princípio, ao menos, sem censura dos demais veículos, embora o que mostrei anteriormente abra margem para censurar qualquer coisa que o Estado considere “imoral” – do Departamento de Imprensa e Propaganda.
O Estado católico ainda terá a volta das corporações de ofício medievais (coisa que é um verdadeiro fetiche de vários tradicionalistas políticos de plantão), supostamente dará aos pais o poder de ensinar os filhos como bem entenderem (mas com todas as restrições que são apresentadas nos outros itens, vai ser meio difícil, viu…) e a criação de conselhos representando as “organizações espontâneas da sociedade” para um diálogo permanente com o governo. Há um trecho que procura determinar uma diferença entre isso e o corporativismo fascista ou os “conselhos populares” da extrema esquerda, mas, a meu ver, falha miseravelmente em demonstrar qual seria, na prática, o grande mecanismo de distinção.
O governante deveria “ter a fé e seguir estritamente a tradição e o magistério infalível da Igreja”, pois “toda autoridade, para sê-lo perfeitamente, tem de fundar-se na verdade”. Está implícito que apenas católicos poderiam compor o governo; no Reino Unido, apesar da relação do Estado com a Igreja Anglicana, a lei não obriga que o primeiro-ministro seja necessariamente dessa religião.
No âmbito social, o governo deve oferecer incentivos fiscais para que as mães tenham muitos filhos, a Missa deve ser considerada “o ato social culminante”, deve dissolver o divórcio da lei civil (pois é!) e deve educar o povo contra o sexo fora do matrimônio e o uso de anticoncepcionais (já reparou quantas vezes ele fala que o governo deve “educar” o povo? Parece compatível com sua tentativa de parecer um liberal em matéria de oferta de ensino?).
Fica pior. Ele diz ainda que um “órgão censor composto de autoridades jurídico-religiosas altamente virtuosas e ponderadas” (que piada!) deve fazer a censura etária dos filmes. O mais vago e terrível de todos os itens é o que diz que “deve-se proibir toda seita satânica”. O que seria, para Nougué, uma “seita satânica”? Sabemos que diversos líderes religiosos – e eles estão em seu direito de assim fazer – rotulam uma série de manifestações e movimentos espirituais e religiosos de “obras de Satanás” ou adoradores do demônio. Espíritas, candomblecistas e umbandistas seriam considerados praticantes de seitas satânicas por suas práticas de comunicação com Espíritos ou entidades? Exagerando um pouco: os neopentecostais e suas “manifestações do Espírito Santo” seriam considerados adeptos de seitas satânicas?
Para tudo isso, o texto de Nougué oferece uma resposta nada criativa: a de que tal sistema social deveria ser imposto apenas a partir de sua devida adoção pela maioria do povo. Sobre tal retórica, eu invoco Carlos Lacerda, um católico, em seus artigos durante a participação de Getúlio Vargas nas eleições de 1950. Imaginando-se que a ampla maioria do povo quisesse conceder plenos poderes ao ditador populista, desprezando os pretensos limites constitucionais, a minoria liberal não teria o direito de defender-se contra a “tirania da maioria”? Por que razão ele crê que seus dispositivos vagos e francamente abertos ao autoritarismo teriam de ser admitidos por aqueles que não comungam de suas crenças, ainda que minoritários?
O fato é que não existe nenhum motivo razoável para que qualquer categoria de liberalismo que se preze respeite, adote ou secunde esforços para o projeto de Estado católico desenhado pelo sr. Nougué. Essas propostas tradicionalistas antiliberais devem ser enxergadas como as excentricidades inaceitáveis que são e vivamente repudiadas.