“Vozes da Seca” e o rei “liberal” do baião
Quem nunca ouviu as clássicas canções de Luiz Gonzaga do Nascimento, o rei do baião, em uma festa junina ou em uma feira de tradições nordestinas? Quem não conhece a tantas vezes cantada “Asa Branca”? Sempre retratado com sua sanfona e sua zabumba, o velho Gonzagão é uma verdadeira lenda da música popular brasileira, expressando como poucos a realidade, os costumes e as preocupações do homem do Sertão. Maçom e militar, ele foi tema de filme (“Gonzaga – de Pai para Filho”, 2012), enredo de escola de samba (“O dia em que toda a realeza desembarcou na avenida para coroar o rei Luiz do Sertão”, Unidos da Tijuca, 2012), nome de usina hidrelétrica e o artista que mais vendeu discos no Brasil entre 1946 e 1955. Posto de lado o indiscutível sucesso de suas músicas perante o povo que lhe serviu de público e inspiração, como costuma acontecer em relação aos nossos artistas, há grandes discussões a respeito das posições políticas de Gonzagão – principalmente nos muitos momentos em que ele demonstra sua recusa às afobações e delírios de nossas esquerdas.
Um detalhe interessante foi que vários partidos tentaram lançá-lo candidato. Confessadamente anticomunista e prestando apoio ao regime militar, Gonzaga quase concorreu em 1973 a deputado federal pelo MDB, partido de oposição ao governista ARENA. Desistiu. Posteriormente, houve a tentativa de promover sua candidatura pelo PDS, justamente herdeiro da ARENA, igualmente sem sucesso. Na verdade, essa aparente incongruência pode ser reduzida diante da consciência de que a grande causa que preocupava o velho rei do baião era o sofrimento do povo nordestino, era a miséria, e ele procurava um diálogo mais próximo com os representantes do governo, qualquer que fosse o governo, no sentido de minorar essa situação. Serviu às Forças Armadas sob o governo de Getúlio Vargas, cantou em homenagem à Petrobras em 1959, exaltou Jânio Quadros na época de sua eleição e o espírito de desenvolvimento que arrebatava as expectativas naqueles tempos. Esse governismo, porém, não era isento de crítica, não era inteiramente cego, e tinha interessantes traços de cunho liberal. Poucas vezes isso fica tão claro quanto na canção “Vozes da Seca”, gravada em 1963 e composta em parceria com Zé Dantas. Deixemos a própria música falar primeiro:
“Seu douto, os nordestino têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas douto uma esmola a um homem qui é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pidimo proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído para as rédias do pudê
Pois douto dos vinte estado temos oito sem chovê
Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cumê
Dê serviço a nosso povo, encha os rios de barrage
Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage
Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage
Se o douto fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!
Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão
Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos”.
Quando Gonzaga cantava, com sua voz inconfundível, “dê cumida a preço bom”, protestava contra um dos grandes males crônicos brasileiros, com que gostaríamos de não voltar a conviver: a nada boa e velha inflação. Esse drama econômico é costumeiramente resultado das políticas econômicas intervencionistas, freando o nosso desenvolvimento e prejudicando as possibilidades dos menos favorecidos.
Mas as linhas mais explícitas são as que dizem “uma esmola a um homen qui é são ou lhe mata ou vicia o cidadão”. Ninguém em sã consciência questionaria as intenções sinceras de Gonzagão de ver a miséria sanada em sua terra de origem; no entanto, ele deixa clara sua desconfiança do posicionamento assistencialista defendido por muitos sociais democratas, socialistas, ou mesmo populistas, como alternativa para resolvê-la. O que o homem pobre do Sertão deseja, como todo homem pobre do Brasil, é uma oportunidade de trabalhar e se inserir na sociedade de mercado. É viver em uma região em que penetre, com equilíbrio e responsabilidade, mas com pujança, o desenvolvimento econômico e tecnológico, bem como a necessária infraestrutura para que tudo isso funcione a contento.
Luiz Gonzaga pode ser, portanto, um bom símbolo da grande verdade que nem todos alcançam: os princípios da ordem liberal, os princípios da sadia temperança e da contenção nos radicalismos ingênuos, e o princípio da emancipação do indivíduo (e sua consequente responsabilidade), são ideias que podem e devem ser esposadas pela gente do nosso povo. Estabelecer pontes com a cultura e a alma popular – sem abdicar dos esforços de construção e fortalecimento de uma alta cultura – é um caminho fundamental para conferir a essas ideias a vitalidade que elas merecem ter na atmosfera brasileira.
Que bom que agora os comentários do IL podem ser feitos pelos Disqus! Quanto ao texto, nunca me agradei em ver artistas sendo cooptados por um lado ou por outro (talvez por ver a maioria pendendo às idéias de jerico da esquerdalha), mas é um alento saber da visão liberal do Gonzagão, fazendo com que eu o admire não só pela música.