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Uma discórdia telefônica

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Em maio de 2020, eu e minha esposa adotamos um gata ainda filhote. Ela tinha poucas semanas de vida quando a trouxemos para casa. Batizamo-la de Ayn Rand em homenagem a quem chamo de “a filósofa da responsabilidade”. Recordo-me vivamente de como ela estava agressiva no primeiro dia; praticamente não saiu da caixa de transporte e não nos permitia qualquer aproximação sem tentar nos morder ou arranhar. Ao longo da primeira semana, ela começou a explorar seu novo lar, mantendo distância de nós. Pouco a pouco, ela começou a se aproximar e a compreender que não estávamos ali para fazer mal a ela.

Por conta da sua natural e quase infantil curiosidade, ela começou a explorar os limites do seu ambiente e da convivência conosco. Subir na cama ou no sofá, tudo bem; subir na pia da cozinha ou tentar fisgar comida dos humanos, imediatamente repreensão. Confesso que os primeiros meses foram um pouco estressantes. Gata acordada era sinônimo de que precisávamos estar atentos para tutelá-la. Passados 10 meses, enquanto escrevo estas palavras, este adorável animal dorme tranquilamente e não me recordo a última vez em que eu ou minha esposa precisamos brigar com ela. De forma não verbal, ela aprendeu os limites do que é aceitável no nosso pequeno espaço e nós compreendemos quais são as suas necessidades para que se desenvolva plenamente.

Esta semana li as seguintes palavras em jornal de grande circulação no país [1], supostamente proferidas por um procurador da república ao tomar conhecimento de que o órgão para o qual trabalha estaria contratando aparelhos de celular do modelo iPhone SE para uso dos procuradores, incluindo linha telefônica com acesso a Internet: “Isso é um insulto!! Não quero esmola! Acho que ninguém aqui quer esmola!! Estamos há quase um ano trabalhando de casa, celular, notebook, internet, energia…Que bagunça é essa?? Estão querendo nos humilhar??!! Não aceito humilhação, Darlan. Acho que devemos ser respeitado (sic)!!!”.

O referido aparelho tem custo de R$3.699,00 na data de hoje, caso seja adquirido pelo canal de vendas no Brasil do fabricante. Considerando a renda média mensal de R$2.398,00 aferida pela PNAD Contínua [2] do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE —, concluímos que, na média, um brasileiro precisa trabalhar 46 dias para conseguir adquirir o mesmo equipamento. A mesma matéria indica que os procuradores fazem jus a remuneração de R$33.600,00, auxílio-alimentação no valor de R$910,00, abono pecuniário de até R$29.900,00 e gratificação por acúmulo de ofício de até R$7.500,00. Também são fornecidos tablet e notebook funcionais com trocas periódicas.

É com razão que o cidadão comum recebe com espanto e indignação uma notícia dessas, mas não escrevo para questionar o procurador ou expressar minha indignação. Sempre que me deparo com alguma manifestação dessa natureza, não consigo deixar de me perguntar como é que chegamos nesse estado de coisas.

Ao refletir, me recordei de um episódio ocorrido na Suécia em agosto de 2016, pouco tempo antes da minha chegada àquele país para realização de estudos no contexto de meu projeto de Doutorado. Na ocasião, a ministra sueca para Educação Superior Aida Hadzialic havia renunciado ao cargo após ter sido flagrada dirigindo alcoolizada. A ministra alega que ingeriu duas taças de vinho 4h antes de começar seu deslocamento – à época, declarou ter sido este o maior erro de sua vida [3].

Nos países escandinavos, não faltam casos de burocratas do alto escalão perdendo seus cargos por atitudes que reputaríamos triviais ou passiveis de correção sem maiores constrangimentos. Em 1996, a deputada Mona Sahlin, escolhida à época para ser a primeira-ministra da Suécia, admitiu que utilizou um cartão de crédito do governo para comprar fraldas e barras de chocolate [4]. Apesar de ter pago a conta e não ter sido acusada de roubar nenhuma importância, o caso foi considerado suficientemente grave para destruir sua indicação ao cargo de chefe de governo.

Em 2006, a ministra da cultura sueca Cecilia Stego Chilo deixou o cargo por não pagar sua taxa de licenciamento de televisão, uma espécie de imposto sueco que financia canais de televisão e era devida por todo cidadão que possuísse um equipamento de rádio ou de TV [5]. À época, a taxa seria equivalente a aproximadamente R$84,54 por ano, considerando a taxa de câmbio atual. Em 2020, a ministra da Educação da Estônia foi retirada do cargo após admitir que utilizou o serviço de carro oficial com motorista para deixar seus filhos na escola [6]. Em 2016, o político sueco Delmon Haffo estava testando um novo equipamento de vídeo e foi filmado ofendendo a ministra do Serviço Social; não sabia ele que o equipamento estava transmitindo suas falas para o canal público de seu partido no YouTube [7]. Foi sumariamente demitido de suas atribuições.

O que todos esses casos me parecem revelar é um aspecto da própria natureza humana que compartilhamos com todos os outros animais: nós inconscientemente testamos os limites de nossa atuação e a resposta do ambiente nos informa se podemos avançar ou se devemos recuar. A reação do ambiente tem a capacidade de incentivar nossa coragem para experimentar novos cursos de ação ou nos informar que cruzamos uma linha a partir da qual as consequências não serão desejadas.

Longe de mim defender políticos e burocratas, sejam suecos ou brasileiros, mas me parece que chegamos neste estado de coisas tupiniquim pois pouco a pouco a sociedade deixou que políticos e burocratas tomassem todo o espaço de atuação dos indivíduos e os deixamos suficientemente corajosos para agora exigirem que os mesmos indivíduos financiem seus “direitos”, mesmo que estes causem certa inveja em políticos e monarcas de outras sociedades.

Todo ser precisa encontrar seus limites. No caso de Ayn Rand, a gata, esse limite foi imposto por um tutor autoritário que utilizou sua superioridade natural para limitar seu espectro de ação, contra seus desejos naturais. Felizmente, para ela, este mesmo tutor é suficientemente benevolente para assumir a responsabilidade de alimentá-la, mantê-la limpa e prover serviços médicos sempre que necessário, qualquer que seja o custo. Tal benevolência advém do fato de que encontrar a gata saudável e ativa faz este mesmo tutor feliz e satisfeito – é um caso típico do egoísmo que Ayn Rand, a filósofa, proclama.

Não entendo que este seja o papel do estado brasileiro, o de tutelar seus cidadãos e determinar como devem agir. Nesse caso, por mais esclarecidos e benevolentes que possam ser, políticos e burocratas são humanos e estão procurando agir de acordo com seus próprios interesses. Não se trata de maldade – alerto o leitor incauto que verá nas referências que todos os personagens citados foram capazes de produzir justificativas plausíveis para seus atos. Para eles, tudo aquilo fazia sentido, da mesma forma por que faz sentido para o douto procurador que o estado tenha obrigação de lhe fornecer os melhores equipamentos disponíveis para execução de seu trabalho, sem importar-lhe os custos dessa ação. Nem sempre os interesses dos agentes públicos se alinham aos interesses dos cidadãos.

Infelizmente, o estado brasileiro não foi capaz de produzir um conjunto de instituições capazes de limitar a ação de vários indivíduos que agem em seu nome. Restamos com um sistema repleto de agentes públicos suficientemente corajosos para reclamar e impor seus pleitos aos cidadãos comuns, sem nenhum instrumento efetivo que permita alinhar os interesses destes agentes com os interesses dos cidadãos. Se mesmo uma gata aprendeu o que não pode fazer, pessoas inteligentes também podem aprender o seu limite. Resta agora a pergunta: como chegaremos lá?

Referências

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/procuradores-que-recebem-ate-r-100-mil-falam-em-esmola-e-protestam-contra-celular-funcional-de-r-3600.shtml

[2] https://www.ibge.gov.br/indicadores

[3] https://www.bbc.com/news/world-europe-37069609

[4] https://www.nytimes.com/1995/11/14/world/stockholm-journal-the-shame-of-a-swedish-shopper-a-morality-tale.html

[5] https://www.irishtimes.com/news/sweden-minister-resigns-over-lack-of-tv-licence-1.798045

[6] https://www.foreigner.fi/articulo/world/estonian-minister-quits-after-using-government-car-for-school-commute/20201121103336009170.html

[7] https://www.express.co.uk/news/world/733774/Delmon-Haffo-sacked-minister-whore

*José Edil G. de Medeiros é professor da Universidade de Brasília, atual chefe do Departamento de Engenharia Elétrica. Atua como Presidente do Instituto de Formação de Líderes de Brasília (IFL Brasília) e membro da diretoria executiva do IFL Brasil.

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