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Um cadáver chamado de “Música Brasileira”

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De gustibus et coloribus non est disputandum é um ditado popular que existe desde a Idade Média, e pode ser encontrado em manuais de culinária durante o medievo e a era moderna. Enfim, os medievais já sabiam: gosto não se discute.

Mas até que ponto?

Se gostos não são discutíveis em absoluto, nada poderia ser julgado, e o motivo seria o mais banal possível: feriríamos o gosto de alguém. Nos livros medievais de culinária, os chefes de cozinha aconselhavam e eram aconselhados a andar com cuidado nesta selva mutante que é o gosto humano: alguns preferiam comidas mais agridoces, mais salgadas, mais pastosas; uns gostam de muita carne em seus caldos, outros detestam. O cozinheiro de um nobre medieval deveria trabalhar não apenas com suas receitas ou a moda gastronômica do momento, mas também com os gostos de seus senhores. Acaso o senhor feudal preferisse um prato de salada a um prato de frutos do mar, quem era o cozinheiro para criticar?

De fato, existe uma parte dos gostos das pessoas que não podem ser discutidos. Se eu prefiro a cor azul em detrimento da vermelha, teria algum sentido criar um debate para tentar me convencer que a cor vermelha é a melhor? Com efeito, a simples ideia de se criar uma disputa em torno dessa questão seria uma burrice sem nenhum sentido.

Mas o gosto a tudo domina? Nossas preferências moldam o mundo em nossa volta? Sabemos que não.

A empatia, a comodidade, a vontade, o prazer que se sente ao fazer algo que gosta, não pode ser o norte total para a vida de ninguém. Se assim fosse, qualquer perturbação ou problema na existência de alguém, por mínimos que fossem, seriam a justificativa máxima para não fazer nada. “Não vou à reunião do trabalho hoje, pois está chovendo e não gosto que caia uma única gota de água fria em mim”; “não irei socorrer essa pessoa que levou um tiro porque não quero meu carro sujo de sangue”; “não vou tomar este remédio… não gosto de coisas amargas”.

Existem coisas para além do gosto, ou seja, que estão hierarquicamente acima do que nos satisfaz. Se discussões sobre a preferência entre salada e frutos do mar não faz sentido, só não o faz porque não é uma discussão que trata de algo acima das vontades e preferências humanas, e o mesmo vale para a discussão entre as corres azul e vermelha.

Para além desse cenário simplório, que pode ser exemplificado com mais afora os exemplos de cores e comida, existem gostos que não apenas podem, mas devem ser discutidos, julgados, moderados ou condenados moralmente. Podemos até ir para o caso da preferência alimentar: e se alguém decidir que quer viver apenas comendo chocolates e bebendo refrigerantes, com a justificativa de que possui um gosto extremo por eles? O gosto desta pessoa não pode se discutido? Não pode ser considerado um gosto imbecil, perigoso, e até mesmo ser censurado moralmente pelos costumes de uma sociedade? O gosto por ganhar dinheiro, por exemplo, não pode estar acima de como ganhar esse dinheiro. Não se pode ter lucro desonesto, por exemplo, usando do seu mau caráter só porque não prefere ganhar dinheiro honestamente – neste caso, não apenas uma censura moral por parte da sociedade deve ser feita, mas também uma censura legal, com o uso da força, onde o incentivo, apologia e o próprio ato da desonestidade devem ser caçados e sanados.

A hierarquia é evidente. O gosto é o patamar mais baixo e simples de nossas vidas, não podendo se sobrepor aos preceitos morais que nos cercam, tampouco fundamentos da condição humana e a própria realidade para além de nosso pequeno mundo subjetivo.

Mas, dando justificativa ao título deste artigo, já que gosto se discute, o gosto musical entraria na mesma questão das cores e dos sabores?

Como na questão alimentar, o gosto pela música pode variar drasticamente, porém ainda é conservada uma característica: a alimentação não pode ser definida apenas pelos gostos de quem está se alimentando, e a música também não foge da regra.

Músicas que incentivem a violência, por exemplo, estariam não no mesmo patamar daquele idiota que se alimenta terrivelmente mal (uma alimentação suicida, se alguém quiser se alimentar apenas de chocolates), mas em um mais degradante do que um sujeito que come mal, pois tais músicas acabariam por, direta ou indiretamente, agredindo terceiros. A música é um elemento universal das culturas humanas. Podemos encontra-la em todas as partes, ainda que de modos distintos, mas em todo lugar ela detém um poder colossal: a música pode influenciar as pessoas.

Com seu ritmo, sua letra, a música tem o poder de influenciar nossos comportamentos nos mais variados campos – música e sexo, poder, prestígio, honra, moral, legitimidade, alegria, tristeza, raiva, amor, felicidade, nostalgia, inteligência, etc., estão extremamente relacionados. Desde os batuques e canções que a humanidade praticava e componha no paleolítico, a música serviu para dar identidade aos Homens e suas variadas sociedades. A música é extremamente alinhada com a religião, em quase todas as culturas, fazendo parte da reencenação da criação, destruição e salvação do mundo, em diversos cultos pela História.

Contos de heroísmo, tragédias, amor, guerra e paz foram feitos e cantados por toda a humanidade. Os primeiros escritos do Ocidente, a Ilíada e a Odisseia, eram canções postas no “papel”. A música tem o poder de nos moldar, de nos fazer mudar ou endurecer mais ainda no que somos e cremos… e está aí o grande problema.

O gosto musical de alguém, quando blindado pelo clichê barato do argumento da “não discussão”, acaba por se elevar acima de tudo e todos. Poderíamos usar várias músicas nacionais ou estrangeiras para extrair um exemplo de como uma música pode ser ruim e perversa, mas basta nos atermos a música mais massificada de nosso país: o funk.

O funk brasileiro é o maior exemplo de como uma música pode ser degenerada nos mais variados graus. A letra não raramente é violenta, pervertida e perigosa. Estupro, roubo, assassinato, agressão verbal, ou a perversidade sexual mais imprudente são mantras quase que invioláveis de uma grandiosa parte do funk no Brasil. Em uma sociedade onde “gosto não se discute” se torna um dogma que serve de parâmetro para todo e qualquer julgamento, a coisa mais natural a acontecer é, justamente, o crescimento das mensagens e das músicas mais criminosas e nojentas que se pode ter.

Alguém poderia objetar: “mas o funk não é apenas a letra, também é o ritmo, a ‘batida’; além de existirem funks onde as letras são pacíficas, letras que falam da família, do amor, que criticam a violência, a desonestidade, etc.”. De fato, a existência de tais letras de funk não pode ser questionada, mas uma pergunta também não pode deixar de ser feita: quantas dessas músicas conquistam o grande espaço na população? Quantas delas são as mais proeminentes no mercado? Elas estão entre as mais escutadas? As mais famosas? Sabemos que não.

E para objetar, ainda, a questão de o ritmo poder ser, ou não, julgado como algo bom ou ruim, é necessária uma análise mais profunda, que irá muito além do subjetivo do Homem, firmando-se em dados objetivos aos quais as pessoas, em sua densa maioria, reagem.

A beleza e a arte só podem ser definidas se respeitarem algum tipo de forma. O aspecto formal da arte é o que a faz ser um trabalho diferenciado dos demais, onde a beleza formal se sobrepõe e define o que é e o que não é arte. O disforme, ou a sobreposição de um conteúdo qualquer sobre a forma dada ao trabalho artístico, são os critérios que podem ser usados para saber o que é e o que não é arte, o que é ou não é belo e, portanto, são os parâmetros gerais para saber o que é ou não bom, no meio artístico.

Qual é a forma do funk? De fato, esse gênero musical pode possuir alguma forma artística, mas qual é o calibre dessa forma? O que podemos retirar e nos nutrir, em nosso espírito, com o ritmo musical do funk? Ele promove algo que vá além de certas sensações imediatas? Sabemos que não.

O ritmo totalmente pesado e dançante do funk é apenas um estímulo, um que só aponta para uma direção, para a descontração e o entretenimento momentâneo, para a sensação pura e vazia. Não se pode tirar muito da batida de um funk, nem esperar uma melodia concisa e bela. É apenas algo para você se mexer, algo com um começo, meio e fim. Você não ficará reflexivo e tentando investigar cada detalhe musical do funk por muito tempo. É como comer um doce barato e jogar sua embalagem fora.

Não existe complexidade em um ritmo de funk, nem mesmo uma simplicidade encantadora. O que existe é algo frenético, rápido, prático. Funks não foram feitos para se tornarem perenes no tempo: foram feitos para o momento, e apesar de estarem massificados em um nível monstruoso, poucas pessoas realmente dão valor ao funk.

A principal diferença entre um funkeiro e alguém de bom gosto é apenas o tempo que o funkeiro leva para abandonar de vez a música que escuta. Quando uma nova música é criada e popularizada, a escutam em um ritmo altíssimo sejam nos bares, nas festas, nos bailes, nos shows, na internet, no celular, nas praias, nas praças. A letra e o ritmo são grudados na mente de milhões de pessoas que gostam da música, mas não dão valor para esta.

Depois de alguns meses, pouquíssimos funkeiros toleram escutar a música que idolatravam antes. A música, por causa de uma curta e simples passagem do tempo, se torna insuportável, se for tocada em certas festas. O que o povo quer é a música do momento, e nem percebem que, assim, denunciam o total descaso para com seu próprio gênero musical e para com as músicas que gostam.

Alguém ainda escuta funks de 2007? 2003? Ou quem sabe de 2010? 2011? Não? Não escutam mais porque essas músicas morreram, porque, no fundo, não têm valor. São objetos absolutos do momento. Não valem muita coisa, ou mesmo nada, fora de seu período de estouro, na cabeça de um funkeiro. No fim, todos que gostam realmente de funk sabem que a música que escutam é uma grande porcaria – eles apenas são os que mais demoram a perceber esse fato.

Se compararmos outros gêneros e músicas com o funk, veremos o completo e verdadeiro amor que uma grande música causa, para seus apreciadores, em detrimento ao sucesso passageiro do funk. Nada vindo dessa poça musical pode ser clássico, nada pode transcender os tempos, passar as gerações e continuar sendo apreciados por anos, décadas ou séculos depois. O funk sequer foi criado para isso, não almeja nada além de um momento e de uma sensação barata de gozo.

Neste aspecto podemos dizer, sem nenhum medo, a verdade: o funk é de um mal gosto tremendo e profundo.

Claro, podem dizer que é descabido comparar Funk com outros tipos de músicas diferentes, como a música de concerto (música clássica), mas esse descabimento e essa insensatez comparativa é a mesma de querer comparar uma moeda de cinco centavos com uma tonelada de ouro puro. Só não faz sentido comparar e julgar o funk com parâmetros máximos da música universal porque é evidente que moeda vale menos do que a tonelada de ouro, e comparar o evidente não faz sentido.

O que Bach, Vivaldi e Beethoven podem proporcionar está muito além do que qualquer música funk pode produzir – é como querer comparar Poderoso Chefão com um filme pornográfico qualquer –, além de não gerarem o efeito que o funk gera: ele normaliza, seja por meio do ritmo ou da letra, a animalidade do Homem. Sexo, violência, perversão e afins são disseminados normalmente dentro de qualquer ambiente com funk.

O apego para com a batida, a amostra de sexualidade, dinheiro, fama e violência alimentam e normalizam estas coisas em qualquer sociedade. A música molda o ambiente ao redor, criando induções e cosmovisões com base em sua forma e conteúdo musical. O crescimento da violência no Brasil não acompanha o crescimento da bestialidade no funk atoa. É um sintoma claro de uma cultura que incentiva esses males, ou seja, de uma cultura doente.

Por fim, o funk não está sozinho neste barco. Poderia colocar muitas músicas mais antigas do que o funk, ou ainda músicas estrangeiras quase ou tão podres quanto, porém algo fica evidenciado: a música mais massificada no Brasil é apenas um cadáver podre. Sequer seus apreciadores e defensores a levam realmente a sério, mas ainda assim ela é divulgada e tocada até os ouvidos de todos sangrarem.

Mas como reverter esta situação? Que tal prestarmos atenção em nossa própria visão de mundo? Basta retirar o ego do subjetivo humano de seu trono, mostrar que gostos podem ser discutidos e que algo para além de nós, uma verdade objetiva, impera sobre nossos gostos e opiniões. Assim, e apenas assim, teremos uma boa base para criticar e refinar a situação musical de nosso país… mas até lá, aguentem a porcaria que é produzida para as massas, aguentem um funkeiro achando que tem um gosto tão bom quanto um apreciador de Mozart ou Frank Sinatra.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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