Regulus e seus regulados
O imperador decide vender uma de suas propriedades e nomeia para negociar com os compradores o nobre Tarquinius Regulus, que faz publicar um edito estipulando que abrirá concurso público para preencher cem vagas para capataz, com as atribuições de zelar pelas terras, garantir o seu bom uso, fazer pessoalmente inspeções periódicas, determinar os preços da produção, aprovar ou proibir todas e quaisquer eventuais obras e modificações, selecionar as visitas que o novo proprietário poderá ou não receber, decidir sobre eventuais revendas e incorporações, obrigá-lo a ser politicamente correto e a cuidar do meio ambiente, fazer um seguro contra incêndio e outros requisitos semelhantes. A principal candidata a comprador é uma abastada viúva, chamada Lucretia — nome que sugere riqueza —, mulher laboriosa, arguta e que sempre soube fazer bons negócios.
Para surpresa geral, mesmo com essas características pessoais, ela aceita todas as condições propostas por Regulus e fecha o negócio, passando a ser a nova proprietária da gleba. Como assim? Por que sendo sabidamente esperta e com faro de gestora ela aceitou exigências tão absurdas? Pois é, parece estranho mesmo. Mas, se dissermos que Lucretia é uma grande empresa operadora de algum serviço dito “público”, o imperador é o Estado, e seu preposto, Tarquinius Regulus, uma agência reguladora, é menos difícil entender por que os termos estapafúrdios da operação foram ótimos para todos. Menos, entretanto, para todos os demais súditos, também conhecidos como “consumidores” ou “contribuintes”.
A conversa de cerca-lourenço dos defensores da regulação, baseada em uma teoria econômica tendenciosa segundo a qual mercados só têm defeitos e governos só possuem qualidades, é que as agências reguladoras e fiscalizadoras existem — e dedicam todos os seus esforços, com a maior pureza de intenções — para proteger os consumidores, uma vez que, pretensamente, são capazes de harmonizar e solucionar a contraposição entre os interesses “privados” dos entes regulados, os objetivos “sociais” dos consumidores e os objetivos “públicos”, estes sempre selecionados com odores de santidade, do Estado, que pautariam a atuação dos seus agentes. Acreditam ainda que, de acordo com a chamada Teoria da Captura, é possível atingir a almejada independência dessas agências.
Sinceramente, não sei o que é pior: se o viés intervencionista desses argumentos ou sua ingenuidade, que é a de pensar que no Estado todos são anjos, a totalidade das empresas é gerida por capetas e qualquer consumidor é uma criança que precisa da tutela do papai. Acontece que a verdade, desnuda e ríspida, consagrada pelos fatos e respaldada na Teoria da Escolha Pública associada a James Buchanan (Nobel de Economia em 1986), é que todos os atores são seres humanos e, como tais, têm defeitos e qualidades e buscam sempre objetivos próprios. Homens e mulheres não agem como insetos gregários, como formigas, abelhas, cupins e gafanhotos…
O viés intervencionista se expressa pelo que, infelizmente, parece ter se tornado um senso comum, que é a crença cega em que monopólios, oligopólios e cartéis são defeitos exclusivos da economia de mercado e que apenas o Estado — vale dizer, políticos, tecnocratas e burocratas — pode consertá-los. Entretanto, a realidade fulmina essa crendice, porque todos — sim, todos! — os monopólios e os cartéis existentes estão em mercados regulados pelo Estado. Afinal, se é verdade que os mercados, por serem guiados por ações humanas, têm falhas, por que não seria verdade que o Estado, igualmente dirigido por homens, também tem defeitos?
Sejamos francos: no fundo, essas agências são meras engenhocas burocráticas, montadas para manter o controle político e ao mesmo tempo alimentar os oligopólios dos setores regulados, ora ditando os preços a ser praticados, ora determinando quem pode e quem não pode entrar e sair do mercado e muitas vezes fazendo o oposto do que deveria, por definição, fazer, que seria garantir um jogo limpo para os consumidores e as empresas de menor porte. O fato é que sobejam evidências de que a atuação desses órgãos sempre foi voltada para proteger as empresas dos consumidores, esses seres egoístas que só querem saber de pagar menos e exigir o melhor.
Competição menor, serviços piores e preços maiores. Será tão difícil render-se a essa verdade?
As agências já nascem abrigando no organismo um germe perigoso, que facilita a proliferação de corrupção, tramoias, favorecimentos e subornos. As lucretias da vida, em vez de se esforçarem para ofertar serviços de qualidade, bons preços e, assim, suplantar os competidores por servirem mais satisfatoriamente aos consumidores, percebem que é mais vantajoso fazer “acertos” permanentes com os régulos e seus capatazes, oferecendo vantagens e ganhando favores, como, por exemplo, a intensificação das restrições aos concorrentes, tanto os já existentes como os potenciais.
Privatizar e ao mesmo tempo criar um órgão para “regular” aquilo que se privatizou — uma prática adotada sem modéstia pela social-democracia que infestou o Brasil durante décadas — não passa de um artifício simulatório de mudança, porque mantém a ingerência do Estado, suas influências políticas e favorecimentos. Observando o histórico das agências reguladoras, a impressão que se tem é que foram criadas intencionalmente para destruir qualquer ensaio insolente de prosperidade que tenha ousado surgir nos mercados, sem a sua autorização. Em linguagem kantiana, elas são coisas em si, existem para isso.
Vamos a um exemplo. Imaginemos que Regulus envia seus capatazes concursados para inspecionar e credenciar granjas de todos os tamanhos. É claro que suas regras minuciosas implicam custos para todos os granjeiros, mas é evidente que os menores terão muito mais dificuldades, o que, de saída, já contribui para diminuir sua capacidade de competir com os grandes. Mas não é só isso. Os grandes possuem capacidade de entrar em mancomunações e fazer acordos espúrios com os funcionários de Regulus, livrando-se assim total ou parcialmente dos custos de cumprir as regras, enquanto os pequenos não têm dinheiro para isso.
O resumo da ópera é que esses órgãos, supostamente criados para proteger os consumidores, terminam contribuindo para a formação ou a manutenção do tipo mais prejudicial de oligopólio que pode existir. Trata-se do oligopólio legal, com suas conhecidas e inevitáveis consequências. A saber: preços mais altos e serviços de qualidade inferior aos que ocorreriam em regime de competição potencial, entendido não como um mercado com pequeno número de empresas, mas com ausência de barreiras de qualquer tipo à entrada e saída de quaisquer firmas.
Há agências reguladoras de todos os tipos e gostos, a grande maioria na esfera federal, mas também no âmbito estadual e até municipal. Enumerá-las e escrever suas siglas seria exigir do alfabeto um esforço acima do que suas forças podem suportar, mesmo tendo sido reforçado com mais algumas letras pela última — e desnecessária — reforma ortográfica. Sua presença está em cada botequim e esquina, nos setores de energia elétrica, telecomunicações, petróleo, transporte aéreo e terrestre, atividades audiovisuais, recursos hídricos, saúde suplementar, fármacos, vigilância sanitária e — com licença do exagero — em qualquer atividade que “ameace” beneficiar os consumidores.
O próprio Banco Central não deixa de ser uma dessas agências, com suas regulamentações que impedem o surgimento de pequenos bancos e a vinda de bancos estrangeiros, garantindo a reserva de mercado para os cinco grandes, que concentram 80,7% das operações de crédito no país; o mesmo sucede nas telecomunicações, em que a Anatel protege quatro empresas telefônicas e impede a vinda para o país de outras já consagradas no mundo; no setor aéreo, a Anac faz todo o possível para que os passageiros brasileiros disponham de apenas três opções de empresa e paguem cerca de 200% a mais por quilômetro voado do que os norte-americanos; no setor de transportes rodoviários, a ANTT bloqueia bastante a competição, seja proibindo novas empresas, seja vedando que as já existentes compitam entre si, ao estabelecer monopólios de trajetos; no setor elétrico, quem se esforça valentemente para atrapalhar é a Aneel, com o resultado de prejudicar o aumento da oferta de energia; a história se repete nos setores de petróleo, com a ANP; de saúde e saúde suplementar, com a Anvisa e a ANS. Competição menor, serviços piores e preços maiores. Será tão difícil render-se a essa verdade?
O furor regulatório não tem limites. Atravanca ou mesmo destrói o que encontra pela frente: estações de rádio e de televisão, padarias, hotéis, restaurantes, provedoras de internet, motéis, oficinas mecânicas, hospitais, açougues, escolas, cinemas, teatros etc. só podem funcionar se cumprirem um ritual despótico, com inumeráveis processos burocráticos, registros cartoriais, licenciamentos, taxas, inspeções, propinas e alvarás.
O melhor destino que se pode dar às agências reguladoras — inclusive ao Banco Central — é fechá-las. Com a abolição de todas as barreiras, para que exista competição de verdade, o consumidor poderá ser bem atendido e quem é obrigado a pagar impostos, respeitado. O problema não é como fazer o governo proteger os consumidores, mas como proteger os consumidores do governo.
*Artigo publicado originalmente no blog do autor.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio