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O moralismo do Leblon

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Podemos imaginar a sociedade como um grande sistema composto de três subsistemas: o econômico, o político e o ético-moral-cultural. Os três subsistemas têm características específicas, mas se entrelaçam e são interdependentes. Muitos dos fenômenos que supostamente seriam restritos ao campo exclusivo de um deles influenciam — e também são motivados por — eventos ocorridos nos outros dois. Os três compartimentos possuem ritmos diferentes de evolução. Seguem normas distintas que legitimam formas de conduta diferentes.

Cada um desses subsistemas possui instituições especiais: métodos, disciplinas, padrões, propósitos, limites, atrações e repulsões. Ou seja, tem seu próprio ethos. E cada subsistema costuma, também, criar problemas para os outros dois. É dessas tensões, desejáveis em um sistema pluralista, das centelhas resultantes do seu contato e sua correção interna que costuma sair a energia que alimenta o progresso, em um processo contínuo de sedimentação de mudanças.

Eventuais deficiências no funcionamento de um dos subsistemas podem ser compensadas durante algum tempo, na medida em que os outros dois componentes continuem a operar satisfatoriamente, assumindo o ônus de levar adiante o funcionamento da sociedade. Mas quando as deficiências em um dos subsistemas são crônicas, ou quando se espalham para os demais, a sociedade estanca. Isso porque a economia não consegue produzir nem muito menos distribuir, a política não desempenha seu papel de fazer funcionar a contento a democracia e a deterioração acentuada do tecido moral termina contaminando todo o organismo.

Um exemplo dessa interação é o conjunto de motivações de natureza moral sobre as atividades econômicas e políticas. Este artigo enfatiza um aspecto dessa influência na economia. Aponta como a falsa moralidade dos ditos “progressistas” estimula desequilíbrios orçamentários nos governos de todos os países, além de prejudicar a produtividade da economia.

O progresso das sociedades depende de escolhas e providências que as pessoas tomam, de qualidades pessoais, de instituições sociais e morais e de acordos políticos. São fatores que, quando espontaneamente desencadeados, estimulam o progresso. Um subsistema moral-cultural adequado é a base e a força dinâmica da ascensão tanto de um sistema político democrático quanto de um sistema econômico liberal. Negligenciá-lo ou distorcê-lo significa envenenar o organismo. É uma atitude imoral, porque, se as sociedades sabem como criar riqueza — e não o fazem —, podemos afirmar que a pobreza é imoral. Isto é sabido desde os tempos de Adam Smith e da Revolução Industrial

Criaturas chatas, azucrinantes e extremamente enjoadas

Existem dois tipos de contaminação da economia provocados por visões equivocadas a respeito dos princípios de moralidade a serem seguidos. O primeiro rejeita a própria moralidade e foi enfatizado pelo professor James Buchanan (1919-2013), laureado com o Nobel de Economia em 1986 e principal nome da chamada Escola da Escolha Pública. Essa escola costumava afirmar que uma característica da teoria econômica do século 20, por influência do relativismo moral keynesiano na economia e coletivista na política, foi que a geração de déficits por parte do setor público não só deixou de ser considerada uma atitude condenável sob o ponto de vista moral como passou a ser tratada como necessária. Ignoravam-se os seus efeitos nefastos de longo prazo sobre a economia, e, consequentemente, sobre a vida das pessoas — especialmente as mais pobres.

Ora, ninguém contesta que o hábito de gastar seguidamente mais do que se ganha configura um modo de vida errado, sob os pontos de vista moral, econômico e financeiro. É um hábito que, quando não corrigido, cedo ou tarde será punido pelas normas que regem a ação humana, ou seja, pela própria vida. Mas o ponto essencial, que muitos não conseguem perceber, é que o Estado também está subordinado às restrições de natureza moral, econômica e financeira a que as famílias e as empresas necessariamente estão sujeitas. O que é imprudência para chefes de família e para empresários não pode passar, por milagre, a ser prudência quando se trata de agentes públicos.

No entanto, parece que muitos economistas não acolhem essa norma rudimentar de filosofia moral, o que os tem levado (desde os anos 1930) a procurar argumentos para justificar o seu não cumprimento. Por isso, a teoria econômica que prevaleceu durante esse período se caracterizou pela negligência para com os importantes elementos éticos que devem reger o comportamento de todos os agentes econômicos, inclusive o do Estado. O que explica os regimes fiscais contínua e crescentemente deficitários e, consequentemente, os regimes monetários expansionistas, bem como as políticas de endividamento. Essa desconsideração dos princípios morais — consagrados pela tradição, baseados na valorização do esforço de poupança, da parcimônia, da honestidade, do trabalho duro e da prudência — é a causa primeira de muitos problemas econômicos sérios, como inflação, desemprego e pobreza.

O segundo tipo de contaminação é de natureza diferente. Nega a moralidade anterior para nos empurrar goela adentro outro código, substituindo os velhos princípios e valores morais por uma nova moralidade inteiramente falsa. Essa tem sido uma preocupação constante na obra do economista Thomas Sowell, que vem clamando há décadas contra o processo de apropriação da ética por parte da corrente dos “politicamente corretos”. Com efeito, essas criaturas chatas, azucrinantes e extremamente enjoadas são useiras e vezeiras em utilizar um estereótipo de moralismo como pretexto para impor sua visão de mundo coletivista.

Esse grupo, que atualmente vem desfilando em todas as passarelas do mundo sob os aplausos da velha imprensa e dos partidos de esquerda, com o apoio milionário dos líderes do globalismo totalitário, recusa-se a encarar a política como deve ser: como um confronto entre opiniões e visões de mundo, preferindo tratá-la como uma guerra entre cavaleiros progressistas, sempre justos e repletos de altruísmo, e bárbaros conservadores e liberais, sempre opressivos e egoístas.

A Idade da Lacração

Sowell critica duramente o ar de superioridade moral dos ideólogos e papagaios da esquerda progressista. Desdenhando dos valores morais tradicionais, chamam ruidosamente para si um hipotético monopólio de defesa dos pobres e das minorias, enquanto acusam os que têm opiniões diferentes de defenderem o capital, os ricos, os brancos, os heterossexuais, o patriarcado, o machismo e tudo que puder ser considerado “privilégio”.

É um método premeditadamente desenhado por gramscistas, frankfurtianos e assemelhados, debatido durante décadas nos cafés de Paris por intelectuais de esquerda que adoram vinhos franceses e em centros acadêmicos por estudantes que detestam estudar. O método consiste em carimbar como mal-intencionado quem quer que divirja de suas opiniões. Ignoram que a economia é uma ciência de meios e não de fins. Procura identificar os meios mais adequados para atingir determinados fins. No carimbo, está implícito o veredicto de que todos os liberais e conservadores só pensam “naquilo”: prejudicar os pobres em benefício próprio.

Para a fauna politicamente correta, se fulano pensa diferente do que a galera dos bonzinhos considera ser o certo, deve ser tratado como alguém cruel, que se compraz em aumentar desigualdades e perseguir minorias e, portanto, precisa ser eliminado. O exemplo mais recente dessa esquizofrenia foi o “cancelamento” absurdo cometido contra o atleta Maurício Souza. Felizmente, o ato teve péssima repercussão na sociedade.

É preciso deixar claro: boas intenções não são monopólio de ninguém, embora progressistas e desenvolvimentistas façam de conta que não sabem disso. Devemos buscar inspiração nos dois maiores economistas austríacos do século 20, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Além de todos os seus ensinamentos econômicos, sempre reconheceram boas intenções em seus adversários socialistas, criticando tão somente as suas concepções. Tratava-os como adversários no campo das ideias e jamais como inimigos mortais.

O “moralismo do Leblon”, politicamente correto, parece onipresente em nossos dias, está em toda e qualquer discussão: sobre meio ambiente, reciclagem de lixo, criminalidade, mercado de trabalho, sexo (rebatizado como “gênero”), cor da pele, criação de filhos, educação, segurança alimentar, saúde… Estamos vivendo uma verdadeira Idade da Lacração. Ela é caracterizada, de um lado, pela absoluta ausência de discussão de ideias e, de outro, pelo ar insuportavelmente arrogante de superioridade moral que caracteriza seus militantes. Podemos defini-los com duas palavras: ignorância e soberba.

Comendo hoje o bolo de amanhã

Pois esses arrogantes substituíram a antiga lei por novos mandamentos: 1) emitirás moeda; 2) gastarás sem piedade o dinheiro dos pagadores de impostos; 3) tributarás sem compaixão; 4) comunicar-te-ás por meio de linguagem neutra; 5) ajoelhar-te-ás diante de árvores ou quaisquer coisas verdes; 6) não comerás carne, terás hábitos alimentares de lagarta; 7) sentirás vergonha de ser branco e descender de europeus; 8) sentirás vergonha de ser heterossexual; 9) sentirás vergonha de não ser de esquerda; 10) sentirás vergonha de gastar muita água no banho, etc.

É a nova religião do moralismo social, descrita por Sowell em seu livro de 1995, com título que é autoexplicativo, A Visão dos Ungidos: Autocongratulação Como Base para a Política Social. No livro, Sowell discute a “visão trágica” que os escolhidos e eleitos da seita associam aos liberais e conservadores e a “visão dos ungidos”, que — para nenhuma surpresa — dizem ser a deles.

Os efeitos dessa subversão da moral consagrada pela tradição e sua substituição pela moral agendada para a revolução são desastrosos para os três subsistemas da sociedade, e em especial para o econômico. Primeiro, porque o intervencionismo econômico que caracteriza a economia política do déficit público tem o efeito de destruir o estoque de capital dos países. Seu financiamento nada mais é do que o consumo do capital “nacional”, em decorrência dos saques permanentes que o Estado — sempre em nome dos mandamentos dos ungidos — realiza contra os fluxos futuros das rendas a serem futuramente geradas pelos agentes privados, as quais, obviamente, serão menores do que seriam na ausência dos padrões morais relativistas que governam os moralistas do Leblon. É como se tentássemos comer hoje fatias de um bolo que só seria levado ao forno amanhã…

O efeito dessa troca do mérito por critérios alheios à eficiência obviamente é um atentado à produtividade
Segundo, a erosão dos princípios de moralidade fiscal e monetária influenciou negativamente o comportamento de famílias, empresas e cidadãos em geral, com a diferença de que a vulnerabilidade desses grupos é bem maior do que a do setor público, que tem à sua mão a faculdade de emitir papéis pintados como se fossem moeda boa e o poder de tributar. Trata-se da velha máxima de que os exemplos, em termos de padrões de conduta, tanto os bons como os maus, vêm de cima.

Normas de prudência pessoal, empresarial e pública seriam indesejáveis, uma vez que cada real gasto — e, portanto, não poupado — beneficiaria a sociedade, mediante a magia de um pretenso “efeito multiplicador”. Essa construção, aplicada no campo das finanças públicas, minou os esforços de defender regimes fiscais equilibrados, que passaram a ser tratados como coisas do passado e, assim, a serem menosprezados. O professor Buchanan estava certíssimo quando escreveu que, com Keynes, “nascia a era moderna de libertinagem fiscal, pública e privada”. Infelizmente, a depravação ainda não teve fim, haja vista a política fiscal que vem sendo executada por Joe Biden nos Estados Unidos.

Por fim, a imposição crescente de cotas de todos os tipos em universidades e órgãos públicos já chegou ao setor privado. Empresas “lacradoras” já aderiram aos ungidos e passaram a controlar quantos de seus funcionários não são brancos, quantos deles são homossexuais, transexuais, binários, quantos tomaram vacina, etc. O efeito dessa troca do mérito por critérios alheios à eficiência obviamente é um atentado à produtividade.

É mais do que tempo de dar um basta à tirania do dialeto politicamente correto. Ele tenta fantasiar de poesia heroica o que não passa de uma prosa vagabunda e da pior qualidade.

* Artigo publicado originalmente em novembro de 2021 no blog do autor.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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