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Dinheiro fácil, chope quente e salgados frios

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Começaram a chegar os boletos dos graves erros cometidos nos últimos anos pelos formuladores das políticas econômicas de muitos países. Mais dia, menos dia, a festa teria mesmo que terminar, mostrando — para quem ainda tinha alguma dúvida — que poucas coisas custam tão caro como dinheiro grátis. A era da grana boca-livre, da impressão desenfreada e das taxas de juros reais negativas acabou e as avarias não serão poucas.

Desde os anos 1980, os bancos centrais mundiais, na ocorrência de turbulências, vêm adotando a receita de reduzir as taxas de juros e expandir a base monetária e, portanto, entupir os bancos com moeda recém-criada, na crença de que a emprestarão e a usarão para comprar ativos, mantendo-os, assim, valorizados. Uma espécie de socorro automático ou licença para gastar, incentivando a compra de ativos financeiros sem riscos. Isso começou no Japão, em 1987, e desde então foi copiado por praticamente todos os países, notadamente em 1991, em 2001, de 2008 a 2015 e em 2020, com a pandemia. Essa verdadeira folha corrida de “proteção” oficial condicionou os agentes dos mercados financeiros a pressuporem que sempre que acontece alguma crise, os bancos centrais, com certeza, dão proteção às bolsas, aos bancos e a todos, para felicidade das nações.

Ora, isso pode funcionar no curto prazo, quando o dinheiro novo anima a economia, a bolsa e estimula os gastos, mas é fatal no longo prazo, do ponto de vista dos ciclos econômicos, da inflação e do desemprego. E assim foi por reiteradas vezes: o socorro de 1987 provocou inflação de preços e obrigou o Fed a elevar os juros em 1989, resultando na recessão de 1990; a expansão monetária da década de 1990 gerou a bolha das empresas de internet, que estourou em 2000; na década seguinte, o Fed voltou a expandir a oferta de moeda, causando a bolha imobiliária e aumentos de preços ao consumidor, o que o levou a aumentar a taxa básica de juros de 1% para 5,25%, resultando na enorme crise financeira de 2008; a partir de então, o Fed adotou uma política gigantesca de frouxidão monetária que durou até 2015, quando aumentou levemente a taxa de juros.

Os problemas com o SVB — Silicon Valley Bank, o “queridinho das startups” — e com o Signature Bank acenderam o alerta vermelho para os investidores quanto à iminência de uma crise generalizada no sistema bancário norte-americano.

Resumindo, sempre que o mercado financeiro grita “eu quero o papai”, o bondoso genitor abandona o aperto e até retrocede, diminuindo os juros, para mais adiante ser obrigado a aumentá-los de novo. E, antes da pandemia, em janeiro de 2019, depois de uma queda de 9% da bolsa, em dezembro de 2018, seguida por outra de 3,5%, o Fed fez questão de dizer “não se preocupem, filhinhos, papai está aqui” e não fez mais qualquer elevação de juros. Veio, então, a pandemia e com ela um verdadeiro campeonato mundial — algo absolutamente sem precedentes — para ver quem emitia mais moeda. Os preços ao consumidor começaram a subir, mas a resposta é que se tratava de “aumentos transitórios” por causa da pandemia. E agora, quando a inflação de preços ganhou musculatura, o Fed está sendo forçado a escolher se ignora o mercado de ações e combate a carestia, ou se vai continuar a proteger o mercado de ações e desprezar a carestia.

Os custos da política de juros zero do Fed estão se revelando e ampliando: incentivam “maus investimentos”, que produzem má alocação de capital, elevando assim os preços dos ativos mais arriscados e menos produtivos, acarretando o ciclo econômico. Por sua vez, as necessidades de financiamento do “grande Estado” criaram uma trajetória fiscal insustentável. Além disso, condições financeiras demasiadamente complacentes fornecidas pelos formuladores de políticas e reguladores criaram algo como um comportamento de manada entre os participantes do mercado financeiro.

Os problemas com o SVB — Silicon Valley Bank, o “queridinho das startups” — e com o Signature Bank acenderam o alerta vermelho para os investidores quanto à iminência de uma crise generalizada no sistema bancário norte-americano. Não obstante a linha de crédito disponibilizada pelo Fed para pagamento dos credores tenha aparentemente adiado a bolha, o fato é que o socorro não eliminou as dúvidas quanto à possibilidade de problemas semelhantes acontecerem com outras instituições financeiras no mundo inteiro.

Poucos dias depois, tal apreensão fortaleceu-se com a repercussão do caso do Credit Suisse, o segundo maior banco suíço, quando o seu principal acionista se negou a ajudar na reestruturação da situação financeira do banco, depois de cinco trimestres consecutivos operando no vermelho e do prejuízo líquido de 1,4 bilhão de francos suíços registrado no último trimestre de 2022. O banco, tradicionalmente conhecido por sua solidez, recorreu ao Banco Central suíço, contratando um empréstimo para tonificar a liquidez, mas os mercados não deixaram de lado o desassossego. No último fim de semana, depois de negociações intermediadas pelas autoridades reguladoras do país, o UBS divulgou que aceitou comprar o Credit Suisse, por US$ 3,25 bilhões.

Do outro lado do mundo, os bancos chineses também mostram vulnerabilidades, embora de natureza diferente e urgência menor do que as que se observam nos Estados Unidos e na Europa, mas que nem por isso deixam de alertar para a possibilidade de crise financeira. Desde a bolha de 2008, a relação dívida/PIB do país pulou de 140% para 295%, e no fim do ano passado 289 bancos regionais foram considerados de alto risco pelo Banco do Povo (o Banco Central local), devido principalmente ao salto no chamado “crédito não produtivo”, que diminuiu a lucratividade do setor financeiro e aumentou a dívida das instituições, tendências que se aprofundaram após o enfraquecimento da economia chinesa em 2022. Vários analistas vêm afirmando que os riscos associados a dívidas de difícil cobrança provocadas pelo mau crédito podem se espalhar e, como é habitual, desfilam recomendações a Pequim, para que volte a adotar uma postura expansionista na política monetária.

Esses eventos evidenciam a presença de sinais fortes de uma possível fratura no sistema financeiro global. Adicionalmente, as decisões das autoridades de criar linhas de crédito para proteger os credores dos bancos em perigo, como o socorro de US$ 30 bilhões do Fed ao First Republic Bank, e a sinalização de que continuarão a fazer o mesmo em casos semelhantes, podem acirrar as preocupações. No início desta semana, o mesmo Fed e outros cinco bancos centrais de países desenvolvidos injetaram liquidez nos mercados financeiros, anunciando que doravante adotarão essa prática diariamente, ao invés de semanalmente. O socorro do papai passa a ser diário.

Por outro lado, dois dias depois, o Federal Reserve, por unanimidade, prosseguiu no ciclo de aperto monetário e elevou a taxa básica de juros dos Fed Funds em 0,25 pp, passando-a para o intervalo de 4,75% a 5% ao ano. Papai quer ser bonzinho, mas continua preocupado com a inflação de preços.

Infelizmente, é muito comum culpar-se tudo, exceto os verdadeiros responsáveis pelos ciclos econômicos e as bolhas, ou seja, os incentivos perversos criados pela política monetária folgada e pela regulamentação pesada, que engessam os mercados financeiros. E exigem-se cortes nas taxas de juros e “flexibilidade monetária” para solucionar o problema. Isso não resolve. No máximo, pode dar um alívio no curto prazo, mas no longo prazo só piora as coisas. Não se resolvem os problemas de uma bolha criando-se mais bolhas.

Acontece que o SVB, assim como o Credit Suisse e os demais bancos ameaçados não fizeram nada além de seguir fielmente regulamentações, estímulos de política monetária e recomendações de economistas keynesianos. Suas ações enfeixam, por assim dizer, um resumo do pensamento dominante na mainstream economics, que implicam um desenho político que induz à acumulação de riscos. O colapso do SVB, por exemplo, parece ter muito menos a ver com uma administração imprudente do que se costuma acreditar, pois seus gestores, embora excessivamente intrépidos, seguiram o livro-texto de cabo a rabo e, com isso, mereceram os parabéns dos professores, só que essa sua “aplicação” nos estudos acabou matando a pop star da tecnologia.

Sempre é bom lembrar que economistas com boa formação vêm manifestando há bastante tempo preocupações quanto à eventualidade de uma bolha financeira de âmbito mundial, mas parece que a maioria dos analistas espalhados pelo mundo não entendeu que a festa está acabando. Os salgadinhos esfriaram, mas exigem que os cozinheiros os requentem; o chope esquentou, mas reclamam que é preciso pôr mais gelo na serpentina; o DJ já está guardando todos os equipamentos, mas querem obrigá-lo a voltar ao serviço; e, sobretudo, os donos da festa — os governos — estão quebrados, mas os convidados querem constrangê-los a gastar mais e mais.

A verdade é que nenhum sistema econômico, por mais sólido que possa aparentar, pode resistir a um longo período de taxas de juros excepcionalmente baixas combinadas com políticas fiscais extremamente frouxas. Mais dia, menos dia, a racionalidade econômica manda os boletos, na forma de inflação, desemprego e bolhas. E, quando chegam, é habitual lançar a culpa exatamente sobre quem tentou consertar os descalabros, sob a acusação de que a terapia que recomendam — por sinal, a única apropriada —, a saber, austeridade monetária sustentada por austeridade fiscal, esfria a atividade econômica e provoca recessão. E aí, seguem-se apelos pungentes e discursos frementes para que os bancos centrais e o Papai Estado intervenham e socorram gregos e troianos. Sempre foi assim e parece que não vai mudar, até a grande bolha apocalíptica do fim dos tempos.

A deterioração desses bancos não teria acontecido se os bancos centrais tivessem evitado suas políticas monetárias extremamente frouxas, ora sob o argumento de evitar recessões, ora sob o da pandemia. Tomemos o exemplo do SVB, que tinha, em 31/12/2022, cerca de US$ 209 bilhões em ativos totais e US$ 175 bilhões em depósitos totais. Seu fantástico crescimento e êxito não teriam ocorrido sem que o Fed não tivesse praticado as taxas de juros reais negativas e a política monetária bastante frouxa que impôs, sem a bolha tecnológica que estourou em 2022 e sem os incentivos para a acumulação de dívidas soberanas e títulos lastreados em hipotecas (MBS — mortgage-backed securities). O “erro” do banco foi seguir exatamente os incentivos criados pela regulamentação e pela política monetária expansionista. Agentes econômicos, sejam indivíduos sejam empresas, reagem a incentivos, e os altos riscos assumidos pelo SVB foram uma simples resposta

Em 2021, os depósitos do banco praticamente duplicaram com o boom tecnológico, assim como os seus ativos, dos quais 40% eram formados por treasuries e títulos hipotecários de longo prazo e os restantes 60% por investimentos em tecnologia e capital de risco. Mas a inflação não era transitória e o dinheiro fácil não era infinito. E vieram os aumentos de taxas de juros, impondo perdas pesadas ao banco e disparando o alerta de uma boa e velha conhecida, a corrida bancária: os depositantes não têm 100% de suas contas de depósito disponíveis em dinheiro; o Fed praticou taxas de juros incrivelmente baixas por anos e depois, em 2022 e 2023, começou a aumentar as taxas; isso fez o SVB, que detinha extensas participações em títulos de longo prazo do governo dos EUA, perder; as perdas aumentaram e o banco não conseguiu garantir o dinheiro necessário para cobrir o déficit; os clientes perceberam o que estava acontecendo e correram para sacar seus depósitos.

Por essas razões, economistas da tradição da Escola Austríaca, como Mises e Rothbard, sempre frisaram que os efeitos finais de expansões artificiais de crédito são tiro e queda: cedo ou tarde, levam ao colapso. A solução para evitar corridas bancárias e ciclos de negócios é a instituição do regime de padrão ouro, junto com um requisito de reserva de 100% para contas de depósitos. Mas tais medidas estão fora de cogitação e assim deverão permanecer por um bom tempo, ao custo de um desfile de bolhas.

Em suma, graças a muitos anos de políticas monetárias extremamente frouxas, as economias dos EUA, da Europa e da China tornaram-se exageradamente dependentes de taxas de juros ultrabaixas e dinheiro abundante e fácil, ou seja, se fragilizaram. Se os bancos centrais encerrarem o atual ciclo de aperto, a inflação de preços continuará elevada; se não encerrarem, os bancos terão de aprender a sobreviver.

 

*Artigo publicado originalmente no site da Revista Oeste.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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