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Richard Cobden e a Escola de Manchester

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Nas últimas décadas, vertentes como a Escola de Chicago, a Escola Austríaca e a Escola de Virgínia (Teoria da Escolha Pública) se tornaram as principais representantes de uma reação, no campo econômico, à prevalência keynesiana e aos descalabros desenvolvimentistas. A economia neoclássica já se desenvolvia no próprio século XIX a partir de contribuições de diferentes países e a Escola Austríaca tem como marco inaugural mais reconhecido o trabalho de Carl Menger (1840-1921), que também se iniciava por volta da mesma quadra histórica.

Entretanto, durante muito tempo o liberalismo econômico foi mais enfaticamente associado a um movimento específico que surgiu no Reino Unido – a maior potência global naquela época – e que se tornou o símbolo da agenda capitalista moderna: a chamada “escola de Manchester”. Quando, entre o final do século XIX e o começo do século XX, movimentos como o liberalismo social (propondo a admissão de uma série de papeis ao Estado com finalidades de proteção social) e, mais adiante, o ordoliberalismo (propondo, entre outras pautas, a ação estatal contra oligopólios), surgiram defendendo a necessidade de revisões no liberalismo para adaptá-lo a supostas exigências dos novos tempos, geralmente procuravam se diferenciar do que chamavam de “liberalismo manchesteriano”.

O “liberalismo manchesteriano” seria o emblema da liberdade econômica mais extrema possível, inteiramente desregulada, com a aplicação mais concreta do “laissez-faire” de que falavam, no passado, os economistas fisiocratas. Muitos bons nomes do liberalismo do século XX fizeram questão de deixar claro que não o esposavam, posto que ele se havia transformado em sinônimo de insensibilidade social, reacionarismo e atraso.

Talvez em parte por essa razão, o movimento manchesteriano permanece relativamente menosprezado pelos nossos liberais contemporâneos, ainda que tenha sido muito influente, por exemplo, sobre o célebre liberal francês Frédéric Bastiat (1801-1850). O que Bastiat fez com o brilhantismo de sua propaganda e sua crítica bem-humorada foi conscientemente tentar reproduzir as pregações manchesterianas na França, conjugadas às teorias econômicas de Jean Baptiste Say (1767-1832) – todos herdeiros e revisores da economia clássica de Adam Smith (1723-1790).

Penso que, ainda que se possam tecer críticas à Escola de Manchester, ela representa um capítulo muito importante do liberalismo e seus líderes merecem ser mais bem conhecidos. Destacam-se os nomes de Richard Cobden (1804-1865) e seu aliado John Bright (1811-1889), ambos membros do antigo Partido Liberal do Reino Unido. Segundo o historiador Alan Taylor (1906-1990), Bright foi um dos maiores oradores do Parlamento britânico e foi um dos líderes do processo de aproximação entre seu partido e os “trade unions”, os sindicatos da época – o que, por si só, já mostra que há algo de simplista na avaliação que se costuma fazer sobre o “liberalismo manchesteriano”.

Concentrar-me-ei, entretanto, em Richard Cobden, que se tornou o grande campeão do livre comércio em sua pátria. Filho de um fazendeiro cujo negócio naufragou, Cobden deixou a escola aos 15 anos para trabalhar no armazém do tio em Londres e abriu um negócio próprio junto a alguns sócios. Passou a viver em Manchester em 1832 e fez muito sucesso com a Tecelagem Cobden, conquistando uma considerável fortuna. No entanto, também tinha interesse por questões intelectuais, lia muito e publicou artigos sob o pseudônimo Libra no jornal Manchester Times, sempre discutindo temas econômicos.

A biografia de Cobden revela um homem dedicado à defesa de uma causa, de um programa, e que valorizava menos quaisquer ambições de ascensão a cargos no Executivo do que tudo o que a sua atuação no Legislativo lhe permitia fazer da tribuna. Ele se via como um evangelista do combate ao protecionismo – tanto perante os seus compatriotas quanto perante outros povos. Após visitar os EUA em 1835 e deparar com a urbanização pujante e a força do espírito de associação local, ele decidiu se insurgir contra a aristocracia agrária de seu país.

Conforme Edmund Fawcett em seu livro Liberalism: the life of an idea, Cobden se voltou contra as guerras e a expansão de gastos militares em nome da paz, que facilitaria o intercâmbio entre as nações; a centralização administrativa, defendendo o self-government; e o protecionismo, cuja derrubada traria prosperidade ao povo. Esta última trincheira foi realmente o centro da batalha que mais o notabilizou, junto ao aliado Bright: a luta contra as Leis dos Cereais.

As Leis dos Cereais (Corn Laws), datadas de 1815, eram uma série de regulamentos impondo taxações aos grãos importados. Os grandes proprietários de terra da aristocracia britânica, com apoio majoritário dentro do Partido Conservador de Benjamin Disraeli (1804-1881) e tolerância suficiente no Partido Liberal por muito tempo para evitar reformas liberalizantes, defendiam a manutenção dessas taxas. Vendo-as como o símbolo de um passado que deveria ser desafiado, os liberais manchesterianos se agitaram e, com a liderança popular de Cobden, organizaram a Anti-Corn Law Association, um movimento ativista para se opor àquela legislação.

Conforme o historiador Asa Briggs (1921-2016), Cobden prometeu que derrubar as Leis dos Cereais significaria, ao mesmo tempo, prosperidade para os homens de indústria, facilitando o escoamento de seus produtos para os mercados da Europa continental; queda do preço dos alimentos, combatendo o desemprego; estímulo ao desenvolvimento da agricultura britânica, ensejando sua demanda em áreas urbanas e industrializadas; e a introdução de uma nova era através da abertura ao comércio internacional. O obstáculo para isso residia nos proprietários de terra, “oligarquia que cobra impostos do pão, sem princípios, insensível, voraz e saqueadora”.

Cobden também refutava a teoria dos protecionistas britânicos de que o barateamento dos produtos levaria os proprietários de terra a pagar salários mais baixos. Ao contrário, o valor no mercado era determinado por oferta e demanda, dizia Cobden, e seria isso – a oferta e demanda dos trabalhadores – que fixaria os valores dos salários. Sua argumentação era versátil e envolvia, conforme Edmund Fawcett, uma dimensão moral: o bom cristão deveria ser a favor do livre mercado e do fim das tarifas em nome do bem de seus compatriotas e irmãos.

Com a vitória do conservador Robert Peel (1788-1850), indo contra seus próprios correligionários, a derrubada das Leis dos Cereais foi alcançada. O triunfo de Cobden e seus aliados levou ao translado de Peel, William Gladstone (1809-1898) e outras lideranças do Partido Conservador para o Partido Liberal, o que iniciou um período de grande importância na política do Reino Unido, inaugurando a famosa rivalidade entre Gladstone e Disraeli. Foi Disraeli, aliás, quem, em 1848, empregou pela primeira vez a expressão “escola de Manchester”. A pregação entusiasmada do “cobdenismo” serviu para contagiar muitos outros líderes políticos e economistas ao redor do planeta, razão por que o “manchesterianismo” – esta última uma expressão que, segundo o historiador Ralph Raico (1936-2016) e o “manchesteriano” alemão Julius Faucher (182-1878), foi usada pela primeira vez pelo socialista Ferdinand Lassalle (1825-1864) – se transformou no emblema que viria a ser.

Essa pregação também fez com que Cobden protagonizasse, em 23 de janeiro de 1860, a assinatura do Cobden-Chevalier Treaty, um acordo de livre mercado entre franceses e ingleses, pondo fim a uma série de tarifas que ainda se mantinham nas relações comerciais entre os respectivos países. Pelo lado francês, figurou no tratado, como diz o nome, o economista Michel Chevalier (1806-1879), que havia sido preso durante a Monarquia de Julho por ser um socialista utópico de vertente saint-simonista.

Richard Cobden estava certo de que o livre mercado poderia unir a humanidade. Foi crítico de ações de força dos britânicos contra outros povos, ações que mereceriam, em sua leitura, o castigo por sua injustiça e violência. O idealismo com que enxergava sua causa fica patente nos seguintes trechos de sua lavra, disponibilizados pelo Liberty Fund:

“Fui acusado de cuidar demais dos interesses materiais. Não obstante, (…) acredito que o ganho material será o menor ganho para a humanidade com o sucesso desse princípio. Eu enxergo mais longe; vejo no princípio do livre comércio aquilo que atuará no mundo moral como o princípio da gravitação no Universo – aproximando os homens, colocando de lado o antagonismo de raça, credo e linguagem, e nos unindo pelos laços de paz eterna. Eu olhei ainda mais longe. Especulei, e provavelmente sonhei, a respeito do futuro nebuloso – sim, daqui a mil anos -, especulei sobre qual pode ser o efeito do triunfo desse princípio. Acredito que o efeito será mudar a face do mundo, de modo a introduzir um sistema de governo totalmente distinto daquele que agora prevalece. Eu acredito que o desejo e o motivo para grandes e poderosos impérios, de gigantescos exércitos e grandes marinhas, de materiais usados para a destruição de vidas e a desolação das recompensas do trabalho, morrerão. Eu acredito que tais coisas deixarão de ser necessárias, ou de ser usadas, quando a humanidade se tornar uma família, e livremente o homem trocar os frutos de seu trabalho com seu irmão.”

Havia certo grau de utopismo nas palavras e no temperamento de Cobden, mas a energia quase profética com que se pronunciava era parte intrínseca do significado do movimento que liderava. De todo modo, o pensamento que esposava foi alvo de muitas interpretações imperfeitas e equivocadas. Por exemplo: a ideia, disseminada após o advento do liberalismo social e da social-democracia moderna, de que o “liberalismo manchesteriano”, o “liberalismo do século XIX”, era praticamente anarquista, ou idêntico às teses que defendem os libertários do século XX, não é verdadeira a respeito de quase nenhum expoente histórico do processo de desenvolvimento do liberalismo; vide Adam Smith, que defendia certas ações estatais para além da segurança e da justiça, assim como Tocqueville e o próprio Menger, para nos atermos a alguns exemplos fulcrais. O caso de Cobden não é diferente: o campeão de Manchester era, veja-se, um partidário do envolvimento do Estado na educação popular. “Interferência governamental é tão necessária para a educação quanto a não-interferência é essencial ao comércio”, dizia, conforme citado por Fawcett. Cobden também, embora geralmente descentralizador, declarou-se favorável à União de Abraham Lincoln (1809-1865) na Guerra Civil dos EUA, alegando que esta estaria lutando contra o escravismo.

Acredito que houve uma espécie de propaganda revisionista que estabeleceu uma percepção relativamente equivocada a respeito dos liberais clássicos, o que englobou de forma ainda mais significativa a escola de Manchester. Mesmo assim, o liberal social John Hobson (1858-1940), por exemplo, era um admirador de Cobden, tendo publicado em 1919 a obra Richard Cobden: The International Men.

Cobden era muito menos dogmático do que se passou a acreditar e, sem sombra de dúvidas, um homem de percepção muito mais vasta e fascinante do que se caricaturou. Eis uma biografia e uma passagem da História que os liberais deveriam conhecer melhor e sobre que deveriam meditar mais detidamente. Afastando-se imagens preconcebidas, por mais críticas que se possam fazer a Cobden, o espírito vigoroso com que se dedicava à sua causa e a habilidade com que mobilizava o poder do verbo a seu favor têm o que ensinar aos defensores atuais de suas mais meritórias bandeiras.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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