Proibir a vacinação via setor privado é contraproducente
A tão aguardada vacinação contra a covid-19 finalmente teve início no Brasil, não por causa, mas apesar do governo Bolsonaro que, como falei em artigo recente, é o grande responsável pelo atraso da vacinação. Tivesse o governo brasileiro aceitado a oferta da Pfizer em agosto e poderíamos ter iniciado a vacinação já em dezembro.
Apesar de termos dado o pontapé inicial com seis milhões de doses da Coronavac – suficiente para imunizar três milhões de brasileiros, considerando as duas doses – as expectativas não são as mais otimistas. Com atraso no recebimento de insumos vindos da China, a Fiocruz, produtora da vacina de Oxford/AstraZeneca, que é a única vacina aprovada em caráter emergencial pela Anvisa, além da Coronavac, alterou a previsão de entrega das primeiras doses para início de março. O atraso na entrega do insumo IFA também impactou a produção da vacina pelo Butantan, a qual se encontra parada desde domingo (17). Além das 6 milhões de doses já distribuídas, há mais 4,8 milhões aguardando autorização da Anvisa para distribuição.
Como é fácil notar, garantir a imunização em massa em um país com 210 milhões de habitantes não é uma tarefa fácil, e logo na largada percebemos o problema de ainda não termos outras opções de vacina à disposição – insisto, em agosto a Pfizer ofereceu 70 milhões de doses. Como a vacina é a única garantia de fim à pandemia, é lógico pensar que o maior número de vacinas disponíveis e de pessoas imunizadas só pode concorrer para o interesse de toda a sociedade. Portanto, parece no mínimo contraproducente que o governo imponha restrições às empresas na compra de vacinas e imunização de seus funcionários.
O argumento central da proibição é o de que o governo deve ser o único responsável pela vacinação. Bom, como foi relatado acima, a razão de a vacinação não ter se iniciado antes e de não termos um maior número de doses foi por uma série de erros do governo. Quem proíbe a compra argumentando nesse sentido no mínimo deveria poder satisfazer a promessa de imediato, o que, obviamente, não é o caso.
Um segundo argumento, este mais relevante, é o de que a compra de vacinas pelo setor privado reduziria a oferta de vacinas para o setor público. Como já disse no meu outro artigo, o governo é o agente natural da vacinação em massa. Sendo assim, não coloco a vacinação privada como uma panaceia; ocorre que toda ajuda é bem-vinda. O argumento da restrição da oferta faria sentido se se estivesse discutindo a compra dos fornecedores já contratados pelo governo, hipótese em que, sim, faria sentido priorizar o plano nacional de imunização, em um momento em que a necessidade de doses está muito longe de ser satisfeita. O que não faz nenhum sentido é proibir as empresas de comprarem/importarem de outros fornecedores, afinal, são doses que não viriam para o Brasil de qualquer forma. Ademais, é pouco crível que a demanda do setor privado fosse implicar concorrência significativa ao governo.
Além destes, há um terceiro argumento – o mais ridículo -, o de que seria antiético que alguém se beneficiasse “furando a fila”, se vacinando de forma paralela à vacinação via SUS. A razão pela qual o argumento soa ridículo é porque representa uma frontal contradição em relação à argumentação pró-vacinação, em especial, a argumentação pró-obrigatoriedade da vacina. Todo argumento de convencimento da vacinação versa não apenas sobre o benefício particular de se vacinar, mas também sobre o benefício coletivo. Quanto mais escassas são as vacinas, mais este raciocínio ganha força. Os que torcem o nariz para o empresário que deseja comprar vacinas com o argumento de que ele estaria se beneficiando pelo seu poder econômico ignoram que indiretamente ele estará beneficiando a sociedade.
Imagine que o dono de um supermercado, por exemplo, pudesse comprar vacinas de um fornecedor estrangeiro e imunizar todos os funcionários de sua empresa. Então, alguém poderia arguir que não seria justo o jovem de vinte e poucos anos, saudável, que embala as compras, poder se vacinar antes dos grupos prioritários que aguardam na fila do SUS. O que os que adotam esse raciocínio ignoram é que aquele jovem, agora imunizado, não correrá o risco de, ao embalar as compras da, digamos, Dona Maria, 70 anos, diabética, que pacientemente aguarda a sua vez de ser vacinada no posto de saúde de seu bairro, contaminá-la com o vírus. Sim, é verdade que se o dono do supermercado destinasse as doses adquiridas a grupos mais prioritários, o benefício social seria maior, mas lembremos que a alternativa – proibição da compra – é um cenário com menos pessoas imunizadas e, pela lógica, menos desejável.
Importante destacar que, embora a compra de vacinas por empresas esteja restrita, não há registro de proibição da compra por clínicas particulares. A oferta de vacina por clínicas particulares também foi ponto de debate nas redes. O raciocínio é o mesmo exposto anteriormente. Os que se escandalizam com a ideia de que alguém possa pagar para adquirir uma vacina que não estaria disponível no país de outra forma ignoram o benefício coletivo de essa pessoa ser imunizada. Os que não conseguem raciocinar fora do anacronismo da luta de classes bradarão: “mas assim o rico tomará antes do pobre”. Ora, se o “rico” – ignorando o fato de que não só ricos estariam dispostos a pagar para se vacinar – entrar em uma clínica e adquirir uma vacina, não só ele se imunizará e protegerá aqueles com quem tiver contato, como deixará de demandar uma dose adicional do SUS, dose que poderá ser destinada a alguém que necessite mais.
Em conclusão, reitero que não apresento a vacinação via setor privado como panaceia, mas, em um momento como o que vivemos, toda a ajuda importa e toda iniciativa que possa aumentar a oferta de doses colaborará para que possamos, o quanto antes possível, virar a página.