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Progressismo versus conservadorismo: uma conciliação (Parte 2 – final)

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Para ler a primeira parte, clique aqui. 

Pensemos em alguns dos avanços clássicos que sempre nos saltam à mente quando divagamos sobre o progresso: abolição da escravidão, sufrágio universal, incremento da presença das mulheres no mercado de trabalho, reconhecimento e persecução de uma ampla noção de direitos humanos, ampliação da igualdade legal (tendência de progressiva redução da segregação de minorias em diferentes países) etc. Cada um desses avanços implicou diferentes desafios a seu modo, mas todos foram defendidos por progressistas do seu tempo. Não me atenho aqui a colorações políticas, que certamente foram várias — o movimento abolicionista brasileiro teve quadros tanto entre os liberais e conservadores do Império, como opositores escravagistas nesses mesmos partidos —, mas sim ao fato de que quem teve a coragem de defender tais pautas em circunstâncias nas quais muitas delas poderiam ser verdadeiros tabus estava na vanguarda do progresso.

Um progressista de seu tempo foi John Stuart Mill, que em A Sujeição das Mulheres fez uma contundente defesa da igualdade entre os sexos. Se algumas das pautas defendidas por Mill poderiam soar radicais nesta obra de 1869, quem hoje as veria como tal? Quem hoje negaria, fora talvez uma minoria microscópica de sexistas toscos (há louco para tudo), a necessidade de se conservar a igualdade legal entre homens e mulheres? Elejamos a presença das mulheres na força de trabalho como um exemplo. Quem, em sã consciência, pensaria hoje, no que podemos chamar de “mundo civilizado”, em negar a elas o edificante direito de trabalhar e serem donas de seus próprios narizes? Mesmo aqueles que, por razões culturais ou religiosas, ainda insistem em defender que elas deveriam permanecer “no lar”, se restringem ao campo da retórica e não ensaiam tentar negar-lhes o exercício de atividades econômicas. Ou seja, houve o momento da mudança radical (no plano cultural e legal), encampada por progressistas históricos, e, com a mudança já engendrada, reconhece-se a importância de mantê-la, conservá-la. A mesma lógica se aplica aos demais avanços de caráter progressista que hoje tomamos como um fato dado.

É verdade que um avanço reconhecido não implica necessariamente atingimento de um estado de perfeição, onde não cabem maiores avanços. A depender da questão, pode ser possível e desejável progredir ainda mais. Para pegar um exemplo mais recente, pensemos no casamento gay. O primeiro casamento gay legalizado aconteceu em 2001, nos Países Baixos. Ao colocarmos a data em perspectiva, é impressionante o quanto avançamos nos direitos “matrimoniais” para pessoas do mesmo sexo, sobretudo em países ocidentais. Contudo, ainda há um longo caminho que pode ser trilhado a nível global: ainda hoje há nações, principalmente na África e Oriente Médio, que criminalizam o homossexualismo, com algumas chegando a impor a pena de morte. Em se tratando de Brasil, nunca houve uma legalização de fato, com a permissão tendo sido concedida por meio de decisões judiciais, de modo que a Constituição ainda reconhece apenas a união estável entre homem e mulher como entidade familiar. Há que chegar o dia em que o casamento civil gay, por enraizado e sem apresentar — como de fato não apresenta — potencial destrutivo para as famílias, como volta e meia sugerem alguns bitolados, será visto como algo a ser conservado, sendo mais um numa ampla seara de direitos individuais irrevogáveis.

O exemplo citado é emblemático, pois demonstra bem como o comportamento de opositores fervorosos a avanços progressistas tende a se refrear com o tempo. Podemos observar isso, também, na questão da pena de morte. É de fato muito raro que um progressista seja hoje defensor da pena capital. Isso não significa, de forma nenhuma, que um conservador será necessariamente um defensor da mesma. Na verdade, podemos observar uma clara tendência de anacronismo na aplicação da pena capital. Mesmo em países democráticos com previsão para tal, caso dos EUA, a coisa tem seguido um rumo mais “humanitário”, na medida do possível. Em termos práticos, seria muito simples e barato executar os condenados com uma bala na cabeça, sem maiores cerimônias. Por que, então, a maioria dos estados americanos que ainda adotam a pena de morte utilizam a injeção letal como o meio? É claro que o caráter mais humanitário não se dá apenas em prol do condenado, mas daqueles que porventura assistem à execução e da sociedade de forma geral. Em sociedades civilizadas, mesmo defensores enérgicos da pena capital (novamente, com as exceções típicas da loucura) não teriam, hoje, estômago para execuções públicas de caráter bárbaro. Os que se esforçam para conservar essa punição (se é que dá para dar esse nome a algo em que a vida do punido é cessada) são, ainda assim, mais progressistas do que seus equivalentes do passado. No futuro, com a tendência diminuta da pena de morte e com sua eventual superação, teremos um novo patamar de civilidade a conservar — caminho já trilhado pela maior parte dos países, diga-se.

Penso que restou claro o porquê de eu dizer que progressismo e conservadorismo podem se encontrar no percurso do tempo. Esse é um ponto que julgo bastante óbvio, mas que é frequentemente desprezado por muitos ditos progressistas radicais, que não raro descambam para o identitarismo, bem como por muitos ditos conservadores, que por sua vez descambam para o reacionarismo. O progresso não acontece sempre de forma linear e a inovação e renovação que ele pode significar não significa sempre rompimento, tampouco destruição do passado, ou falta de reconhecimento do fato de que o progresso de outrora precisa ser mantido, de modo a permitir o progresso do futuro. Já as tradições e os costumes não são estáticos e não é desejável concebê-los como tal. A rejeição a mudanças pela via revolucionária pode muito bem ser entendida não como uma rejeição da mudança per se, mas um encorajamento da mudança pela via democrática, quando a mudança for desejável — e convenhamos, o conservador político típico tece tantas críticas e vê tantos pontos a mudar nas leis, quando não nas próprias instituições, quanto muitos progressistas típicos.

Porém, se o progresso é algo positivo, em uma perspectiva histórica, por que o identitarismo, visto por muitos como uma expressão máxima do progressismo radical, soa tão hostil à liberdade quanto o reacionarismo mais chulo? Sobre os reacionários, não há muito o que dizer que já não seja autoexplicativo; são inimigos habituais do progresso e gostariam de operar uma revolução às avessas, como disse anteriormente; enxergam todas as mazelas do mundo (mazela que às vezes só existe em suas cabeças), como uma doença do progresso. Já no caso dos identitários, há que se arguir se eles mesmos podem ser catalogados como adeptos do progressismo, haja vista que atuam como seus mais inveterados inimigos.

O maior desserviço que pode ser feito por aqueles que pretendem empunhar pautas ditas progressistas é negar os méritos do progresso em si, tal como nos alerta Steven Pinker. Quando os identitários se reúnem para alardear os males do “patriarcado”, do “racismo estrutural” e quejandos, respondendo às réplicas de que vivemos hoje em um patamar de igualdade legal inédito na história com apelos ao “lugar de fala” e acusando os interlocutores dos tantos “istas” e “fóbicos” que tenham na manga, o que fazem é negar o progresso.

O identitário típico recorre a um personagem, um arquétipo com todos os atributos de caráter reacionário que consiga reunir. Esse personagem é ao mesmo tempo machista, racista, homofóbico etc, e representa tudo aquilo que precisa ser destruído. Só que o identitário não para aí; ele sente a necessidade de extrapolar isso para toda a sociedade, de modo que as doenças do arquétipo se tornam enfermidades da própria sociedade, o que explica teorias generalistas e rasas como a do racismo estrutural. Para corroborar a tese, é necessário exagerar a frequência das enfermidades, sendo para isso necessário multiplicar suas possibilidades de ocorrência, o que explica a tentativa de transformar o uso de até mesmo expressões da física, como buraco negro, em um caso de racismo. Diz-se, então, que as minorias vivem em uma espécie de estado de exceção, paralelo à plena vigência da democracia liberal, cujos atributos, ora os identitários tentam encampar, como perfeitos engenheiros de obra pronta, ora negam peremptoriamente. Na retórica dos que negam, as democracias liberais ocidentais são uma espécie de experiência fascista, pior para minorias do que certos países do Oriente Médio.

Em sua jornada para destruir o arquétipo que, transmutado para a sociedade, é imaginário, nem percebem que lhe fazem um favor. O perfeito reacionário, por óbvio, nega as benesses do progresso. O que seu dito rival, identitário, faz? Argumenta, também, que o progressismo falhou e trata aquilo que é considerado avanço como uma “ilusão burguesa”. Assim, os “rivais” concordam com a demonização do progresso e, cada qual a seu modo, defendem a inadequação e necessidade de “resgate” ou “desconstrução” da ordem vigente.

A vantagem de tratar daqueles que, acredito, são os principais inimigos do progresso, é que eles ilustram bem o fato de que não é preciso optar entre progressismo e conservadorismo, desde que pensemos no decurso do tempo. Por acreditar que a sociedade está envenenada, os identitários não veem nada a conservar. Por também acreditarem que a sociedade está envenenada, embora com outro tipo de veneno, os reacionários veem perigo em progredir. O que precisamos é continuar progredindo, o que só é possível conservando e, se necessário, aperfeiçoando os progressos de outrora.

Fontes:

https://pt.euronews.com/2021/04/01/1-casamento-homossexual-faz-20-anos#:~:text=H%C3%A1%2020%20anos%20o%20presidente,duas%20pessoas%20do%20mesmo%20sexo.

https://www.bbc.com/news/world-45434583

https://www.humandignitytrust.org/lgbt-the-law/map-of-criminalisation/

https://www.findlaw.com/criminal/criminal-procedure/death-penalty-laws-by-state.html

https://deathpenaltyinfo.org/policy-issues/international

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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