fbpx

Um ano eloquente

Print Friendly, PDF & Email

O ano de 2023 será lembrado como um dos mais eloquentes da nossa história: disse tudo. Começou com a posse de um presidente de passado encardido e sem popularidade; registrou, logo na entrada, o estranho episódio — até hoje não esclarecido — de 8 de janeiro, que resultou no encarceramento de mais de mil pessoas que, embora desarmadas, foram inexplicavelmente acusadas, em um inquérito apocalíptico, de tentarem desferir um “golpe de Estado”, sem que, em sua gritante maioria, tenham praticado qualquer vandalismo e muito menos tenham tentado depor alguém; comprovou que o novo governo não tem nenhum projeto relevante e que seu único empenho é gastar os recursos subtraídos dos pagadores de impostos para dar suporte a seu projeto de poder populista, globalista e tisnado pela mancha de uma ideologia que acumula mais de um século de fracassos.

Teve mais. Na política externa, uma série de declarações de solidariedade e amor a várias ditaduras espalhadas pelo mundo; um desfile quase diário, na prática e em discursos, de incursões absurdas e descabidas do Judiciário em territórios constitucionalmente fora de sua competência; uma aparente “dobradinha” entre esse Poder e o Executivo; no Legislativo, a velha prática de negociar votos mediante a concessão de emendas, além da injustificável omissão das duas Casas nos casos críticos, em que sua atuação era premente.

Mas não ficou só nisso. Evidenciou uma crescente ameaça à liberdade dos cidadãos, especialmente a de expressão, à luz da falácia de que se trataria de uma liberdade relativa, já que seria preciso impedir a divulgação de mentiras — como se a legislação existente não contemplasse punições para caluniadores, injuriadores e difamadores. É impressionante o desplante com que o subterfúgio de “salvação” de uma democracia supostamente ameaçada foi e vem sendo utilizado para corroer a verdadeira democracia, e é assombrosa a desfaçatez com que se carimba de “antidemocrata”, “fascista” e “extremista de direita” quem quer que tenha a ousadia de pensar fora dos cânones “progressistas”. Teve também a capitulação definitiva da velha imprensa às narrativas oficiais, mediante deturpação de fatos e propagação de boatos. O ano exótico registrou, ainda, um retrocesso impressionante na condução da política econômica, com a ausência absoluta de ideias e a consagração da irresponsabilidade fiscal e da extorsão tributária.

O Brasil está doente

É certo que a economia e a cultura têm grande participação na explanação da atual instabilidade institucional, mas a explicação não pode reduzir-se a essa visão, pois há outros motivos igualmente relevantes e muito mais profundos. Por que razões, então, nossa sociedade inicia 2024 mergulhada na barafunda e na descrença, na balbúrdia e no ceticismo, na desarrumação e na perplexidade?

O Brasil está doente, mas isso não é de agora e não é nem um pouco surpreendente. O que se viu em 2023 é só mais uma das manifestações de um problema secular. O que precisa ser feito para que a fileira de crises acumuladas não se repita? A verdadeira questão a tratar é se o sistema político brasileiro responde positivamente às questões essenciais: nossa democracia, da forma como está moldada, consegue proscrever o abuso de poder enquanto resguarda os cidadãos do arbítrio do Estado? De que forma as instituições políticas devem ser organizadas para que os maus governantes, ou os menos capazes, ou os mal-intencionados, não possam causar danos em demasia? Nosso sistema político representa de fato os desejos dos eleitores?

Infelizmente, a resposta a todas essas perguntas é negativa. A começar pela constatação patética de que, dos 513 congressistas, apenas 27 (5,2%) elegeram-se pelo voto popular, como fruto de uma lei eleitoral que contempla coligações, proporcionalidade e outras jabuticabas e que permite que se escolham famosos para concorrerem e puxarem automaticamente votos para que muitos espertos sejam “eleitos pelo povo”. O voto distrital e o “recall” seriam remédios para essa aberração, mas os beneficiados pelo sistema atual, obviamente, travam a solução.

A verdade é que, desde a conspiração que, em 1889, empurrou a República goela abaixo de um povo que amava o seu imperador, passando pela Velha República, pela Revolução de 1930, pelo Estado Novo, pela primeira redemocratização, em 1945, pelo caos que se seguiu à renúncia de Jânio, pelos arroubos comunistas de Jango e Brizola, pelos anos de governos militares, pela Nova República, pelos congelamentos de preços de Sarney e Collor e pelos anos da “tesoura PSDB-PT”, o nosso país assemelha-se a um bêbado que, de tempos em tempos, levanta-se da mesa do bar e tenta voltar para casa, mas, depois de tropeçar e agarrar-se aos postes mais próximos, acaba desistindo e volta para o botequim para tomar mais umas e outras. A comparação é um tanto grosseira, mas, infelizmente, é uma síntese realista dos acontecimentos políticos dos últimos 134 anos.

O poder para chamar na chincha

Imagine que a numeração de sua camisa seja GG e que você tente vestir uma de tamanho P. É fácil imaginar o que vai acontecer, não é? A formação da nossa sociedade foi muito diferente da que se verificou nos Estados Unidos, mas o golpe republicano varreu essas grandes diferenças para debaixo do tapete e promoveu uma tentativa danosa de transpor para a nossa realidade as instituições consagradas pelos usos, costumes e tradições norte-americanos, com a adoção, primeiro, do modelo presidencialista dos Estados Unidos, em que as funções de chefe de Estado e chefe de governo são exercidas pela pessoa do presidente, e, segundo, com o conhecido arranjo supostamente equilibrado dos Três Poderes, porém sem a presença de um quarto, acima destes, para moderar a unidade política e garantir tal equilíbrio.

A primeira Constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, além de revogar as instituições do Império, acabou com o Quarto Poder — o Poder Moderador —, atribuído ao Imperador, o chefe de Estado e árbitro dos outros três. Esse Poder, fazendo uso das atribuições constitucionais estabelecidas pela Constituição de 1824, controlava e demarcava a atuação dos demais, sempre tendo em vista a unidade política e o objetivo de alcançar a plenitude consensual. Em outras palavras, existia alguém — o imperador — que não governava, mas que tinha poder para “chamar na chincha” não apenas seus ministros mais sinistros, mas também magistrados emproados e políticos troglodíticos que tentassem impor indevidamente sua força em detrimento da vontade popular.

Ao socarem de cima para baixo um modelo de poder de um país com tintas sociais, políticas, culturais e econômicas acentuadamente diferentes das brasileiras, os republicanos não perceberam que os resultados futuros seriam dessemelhantes nos dois países. Assim, em 1889, Brasil e Estados Unidos equiparavam-se em termos econômicos, mas sabemos o que sucedeu nos capítulos seguintes da nossa aventura republicana. Deveria ser ponto pacífico que o caráter dos regimes democráticos deve variar conforme as diferenças de estrutura social, política, cultural e econômica entre os países e que as instituições políticas precisam ser moldadas levando em conta essas diferenças.

O Estado barrigudo

Há assimetrias substanciais entre o Brasil e os Estados Unidos quanto ao processo de formação política, cultural e econômica: lá, a sociedade antecedeu o Estado e a política, possibilitando que o sentimento de nacionalidade disso resultante conduzisse ao autogoverno, ao passo que no Brasil o Estado e a política precederam a formação da sociedade, o que a fez nutrir uma forte dependência por soluções formuladas pela burocracia, da qual sempre dependeu. Em outras palavras, nos Estados Unidos o processo de formação da sociedade ocorreu de baixo para cima, enquanto que entre nós ele foi de cima para baixo, e essa diferença não pode deixar de ser levada em consideração.

Ao tentarem trajar nosso país com uma veste republicana e presidencialista copiada dos Estados Unidos, mas com um federalismo apenas de fachada, voltando à analogia sugerida, os republicanos enfiaram à força no corpo do Brasil uma camisa apertada, visivelmente inapropriada para o seu tamanho, muito mais compatível com um Estado grande, barrigudo, patrimonialista e anterior à formação da sociedade. Ora, “não vestiu bem”.

A única estrada segura

Pela adoção de um modelo tripartite de Poderes desprovido de um mecanismo capacitado para alcançar o consenso em razão da extinção da prerrogativa moderadora do chefe de Estado, acumulada com a de chefe de governo na mesma pessoa e pela ausência, devido ao apego da sociedade ao Estado, de mecanismos capazes de controlar essa mesma pessoa, que passou consequentemente a concentrar uma alta carga de poder, observamos ao longo do século 20 sucessivos golpes de Estado e períodos autoritários e populistas.

O nosso presidencialismo com sua suposta tripartição harmônica dos Poderes está muito distante do que a democracia constitucional brasileira precisaria adotar, considerando nossas raízes históricas. Entre os inúmeros males que nosso sistema provoca, salta aos olhos a promiscuidade entre Estado e governo. O certo seria o Estado cuidar do consenso político e buscar uma unidade de valores morais na representação política, enquanto o governo deveria representar fidedignamente os interesses e aspirações ideológicas e setoriais resultantes de um embate entre partidos. Por conseguinte, as funções de ambos devem ser distintas: o Estado deve zelar pelo consenso; e o governo, por sua vez, por administrar a divergência de ideias, pois uma coisa é cuidar de valores, e outra é cuidar de partidos e doutrinas ou ideologias. Adicionalmente, governo e oposição possuem objetivos que não costumam coincidir, ou seja, estão em permanente conflito, o qual inexiste no Estado, que deve atentar apenas para valores e o bem comum. Em vista disso, é patente a necessidade de demarcar fronteiras funcionais e institucionais entre Estado e governo, no sentido de que valores e consenso político não abriguem objetivos ideológicos de um partido ou de um chefe de governo. Essa parece ser a única estrada segura para instituições mais eficazes e que espelhem a vontade popular.

O Quarto Poder

Há quem considere o parlamentarismo como solução para esse problema. É verdade que ele tem o mérito de dissociar as figuras dos chefes de Estado e de governo, tornando possível que qualquer governo dure somente enquanto for considerado bom. Porém, a nossa história republicana atesta que propor um parlamentarismo com eleição direta para presidente é abrir campo à repetição da desastrosa década de 1960, que culminou, depois de um verdadeiro minueto de trocas de primeiros-ministros, com o plebiscito de 1963, que decidiu pelo retorno ao presidencialismo, sem que a maior parte dos eleitores soubesse exatamente no que estava votando, decisão que se repetiu no plebiscito de 1993, em que a opção pelo retorno à monarquia foi incluída, mas, inexplicavelmente, simplesmente proibiu-se que os monarquistas participassem da propaganda eleitoral.

A monarquia constitucional parlamentar representa o equilíbrio entre os dois modelos parlamentaristas republicanos, porque um soberano com poderes limitados é um meio-termo entre um presidente enfraquecido e um que age como um ditador potencial

No nosso caso, então, tudo indica ser a República parlamentar superior à República presidencialista, mas há argumentos no sentido de que a solução isolada de substituir o presidencialismo pelo parlamentarismo, embora necessária, não seja suficiente. É preciso acrescentar algo mais — o Quarto Poder. A monarquia constitucional parlamentar representa o equilíbrio entre os dois modelos parlamentaristas republicanos, porque um soberano com poderes limitados é um meio-termo entre um presidente enfraquecido e um que age como um ditador potencial. O que dele se exige é apenas que represente com dignidade o Estado e exerça o Poder Moderador. Para tal, não precisa competir por verbas eleitorais nem se comprometer com partidos, sindicatos ou grupos econômicos, o que o imuniza contra a corrupção e lhe permite que olhe para o longo prazo.

Sem dúvida, 2023 foi um ano eloquente, e seu maior recado é que é mais do que tempo de reformar nossas instituições políticas, para evitarmos tantas “emoções” indesejadas.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

Pular para o conteúdo