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O fim da ordem e o banimento do Homem

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S. Lewis não precisa de apresentações. Seu legado na literatura, filosofia e teologia ecoam pelo globo nas mentes, mãos e bocas de uma legião de pessoas, porém, infelizmente, ainda é um fato de que ele seja muito mais conhecido por suas obras no campo da fantasia em relação ao universo da crítica e da filosofia.

Lançado em 1944, A abolição do homem é uma dessas obras que não são bem conhecidas. O livro trata de ideologias que levam a humanidade a perder seu peito, isto é, se abolir ao fechar seu coração para algo que está acima de si mesma. Essa obra nada mais é do que uma crítica (a pedido dos próprios autores) a um livro escolar de literatura, feito para crianças; apesar disso e de sua brevidade, a obra de Lewis tem peso, com concretude e tato. Lewis não é um sujeito sem talento em sua escrita e A abolição do homem é a prova disso, pois na crítica que faz, Lewis vai além – de fato, vai quilômetros além de uma simples análise a um material didático. Para o autor, o que importa são as raízes problemáticas do objeto de sua análise.

Os autores do livro (o Livro Verde, como preferiu chamar o autor), apelidados de Gaio e Tito (por caridade, Lewis decidiu não nomear, seus autores), partem de premissas subjetivistas em suas produções para as escolas. Não temem em cair em absurdos de análise; não se baseiam no passado e em princípios para iluminar os alunos com o brilho da literatura de outrora, brilhantismo este que seria preciso para fazer comparações entre bons e maus exemplos literários.

O subjetivismo de Gaio e Tito não permite tais comparações, tais voltas ao passado. A novidade, a preocupação de centrar os homens em si próprios, domina a proposta do Livro Verde. A própria percepção das noções de sublime e belo cai no ralo do ego humano. Ao ver algo bonito em um exemplo, um dos personagens didáticos do Livro Verde sente algo forte, entretanto, o próprio material escolar afirma que esse sentimento forte não vem do que o personagem viu, mas do que pensou, do que sentiu. Essa internalização dobra o Homem e o cega para o objetivo. O erro de um material escolar nada mais é do que um erro filosófico de Gaio e Tito.

A ordem natural de valor é corroída. As crianças regadas pelo Livro Verde se tornarão homens sem peito, voltados apenas para si.

Notemos como Lewis os refuta facilmente:

Mesmo na sua própria visão – e em qualquer outra que se possa imaginar – ao dizer Isso é sublime, a pessoa não quer dizer Tenho sentimentos sublimes. Mesmo se reconhecermos que a noção qualitativa de sublimidade seja simples e unicamente uma projeção de nossas próprias emoções nas coisas, ainda assim, as emoções que incitam as projeções são os correlativos e, portanto, quase os opostos das qualidades projetadas. Os sentimentos que fazem uma pessoa chamar um objeto de sublime não são sentimentos sublimes, mas de veneração. Se quisermos reduzir Isso é sublime a qualquer afirmação sobre os sentimentos de quem está falando, a tradução apropriada seria Tenho sentimentos humildes. Se a visão sustentada pro Gaio e Tito fosse aplicada consistentemente, ela levaria a absurdos evidentes. E os forçaria a ter que sustentar que Você é desprezível signifique Tenho sentimentos desprezíveis. A rigor, Seus sentimentos são desprezíveis significa Meus sentimentos são desprezíveis”.

Essa constatação, apesar de ser o suficiente para mostrar a inépcia dos autores, precisa ir adiante. O aluno que estudar literatura a partir do Livro Verde entenderá que qualquer juízo de valor será algo, de antemão, interno, ou seja, um estado emocional do emissor.

Qualquer Verdade ou valor acima do indivíduo seria inalcançável ou inexistente por si só. Não existiriam motivos para a aprovação ou desaprovação de qualquer coisa que seja não estando contidos, a priori, no que alguém sente e entende por qualquer objeto que seja. Bondade, beleza, etc., não teriam naturalidades per se, mas apenas correspondências sentimentais variadas – estas, sim, seriam as importantes e verdadeiras.

Essa é a negação do que Lewis chama de Tao – contudo, não confundamos o Tao de Lewis com a divindade suprema chinesa, ou mesmo algo sobrenatural. Para o autor, Tao é o caminho, a natureza, a estrada. O Tao é o norte pelo qual devemos nos guiar, “a realidade que vai além das situações”.

É nesse além que nós devemos ter em mira para nossos pensamentos, práticas e desejos. É algo objetivo, uma doutrina de valor que se ergue acima de todo e qualquer juízo porque é o que deve direciona-los; um critério máximo, a Lei Natural, a Verdade.

Aqueles que conhecem o Tao podem sustentar que chamar as crianças de adoráveis ou os velhinhos de veneráveis não significa simplesmente registrar um fato psicológico sobre nossas emoções parentais ou filiais naquele momento, mas reconhecer certa qualidade que demanda uma resposta, independentemente se a demos ou não. Eu mesmo não aprecio a companhia de crianças pequenas; mas já que falo a partir do interior do Tao, reconheço que esse é um defeito meu – da mesma forma que uma pessoa pode ter que reconhecer que é surda ou daltônica (…). Nenhuma emoção é, em si mesma, um juízo; nesse sentido, todas as emoções e sentimentos são analógicas, mas elas podem ser racionais ou irracionais quando se conformam ou deixam de se conformar com a razão”.

Em nome de motivos mais “racionais”, que põem o sentimento em pé de igualdade com o juízo, em nome de uma modernidade, como clamam Gaio e Tito, em prol do novo em detrimento do velho, o Tao é combatido. A consequência é que não há nada para lapidar esses mesmos sentimentos que dizem governar o Homem. Sem dados objetivos, apenas subjetivos, nada serve de critério, já que não existem regras acima do mundo interno dos sujeitos, nada pode servir de parâmetro para uma melhoria interna.

Contudo, fugir do Tao é impossível. É claro que a tentativa de escapar de seu domínio causa consequências negativas diretas e indiretas, pois um afastamento do Tao de fato ocorre, porém nunca uma fuga total.

Mesmo Gaio e Tito (e, atualmente, uma legião de progressistas) necessitaram de motivos para compor o Livro Verde. Como pergunta Lewis, “Por mais subjetivistas que eles possam ser em relação a alguns valores tradicionais, Gaio e Tito mostraram, pela própria iniciativa de escrever o Livro verde, que deve haver outros valores que, para eles, nada têm de subjetivos. Eles escrevem para produzir certos estados de espírito na nova geração, não propriamente por achar que esses estados de espírito sejam intrinsicamente justos ou bons, mas certamente porque supõem que sejam o meio para algum estado de sociedade que consideram desejável (…). E tal finalidade de valor precisava ter grande valor aos olhos deles. Seria um subterfúgio abster-se de chamá-la de boa e usar, em vez disso, predicados como ‘necessária’, ‘progressista’ ou ‘eficiente’. Num debate, eles poderiam ser forçados a responder às questões ‘necessário para quê?’, ‘progredindo rumo para quê?’ e ‘eficiente para quê?’, tendo então que admitir, por fim, que alguns estados de coisas são bons por si próprios, mesmo na opinião deles. E, dessa vez, eles não poderiam alegar que ‘bom’ descreve somente as suas próprias emoções, porque o único propósito do livro é condicionar o jovem leitor a concordar com suas opiniões, o que seria a tentativa de um tolo ou de um vilão, a não ser que eles sustentem que suas opiniões são de alguma forma válidas ou corretas”.

O dogmatismo é claro. Busca-se um norte, um bem. Existe, portanto, uma noção de certo e errado, por mais que esta noção esteja deturpada e carcomida por uma busca de um “mundo melhor”, mais moderno…

O Tao continua intransponível. Sua percepção pode ser diferente em várias culturas, mas ele mesmo não é um produto cultural. A sociedade não cria o Tao, porém, o percebe, logo, qualquer ideologia contemporânea tem laços permanentes com o Tao, pois as inescapáveis premissas supremas estão nesse Caminho, nesse norte. Elas são percebidas pelas sociedades, também são quebradas, claro; há uma pluralidade de percepções, existem regras morais socialmente aceitáveis que se afastam do Tao, contudo crer que ele é um produto da sociedade é um disparate.

O Tao é metacultural. Ele está na natureza, todavia, está acima do instinto humano. Não podemos encarar todos os valores como subprodutos do instinto de preservação porque, na verdade, os instintos não são premissas. Eles podem estar em atrito, podem muitas vezes nos inclinar para algo negativo. Por exemplo, o Homem tem o instinto de reprodução, sendo este a base para nosso comportamento sexual, mas um estupro pode ser justificado por esse mesmo instinto estar presente nos machos de nossa espécie? Ou o instinto de preservação deve ser considerado quando essa autopreservação pode gerar várias mortes como consequência?

O que progressistas, como Gaio e Tito, fazem é deixar o Tao em cacos e escolher o que pegar e não pegar dele, para seus planos – mas tudo o que conseguem são, afinal, pedaços mal colados de uma garrafa. Nas palavras de Lewis, “A rebelião das novas ideologias contra o Tao é a rebelião dos ramos contra a árvore; se os rebeldes tiverem sucesso, acabarão descobrindo que terão acarretado a destruição de si mesmos”.

Aos que tentam abolir o Tao, não há escapatória. A abolição do Tao é a abolição da própria humanidade, pois se fazem isso completamente, saem do Homem para ir ao vazio. Lewis é claro e certeiro: sem o Tao, não há motivos para o progresso, não há razões para proteger a vida e evitar a morte, não existem significados em morrer para defender alguém, lutar por um inocente, amar, saber distinguir honestidade de corrupção; mesmo a fidelidade conjugal, a vida em sociedade e a própria busca pelo saber e a ciência seriam esvaziados. Amar, buscar, defender, progredir, acertar… com visão no quê? Se não há nada além do Homem, não há critérios, justiça, não há ordem.

Lewis foi até o fundo da questão quando viu as precedências teóricas de um mero livro de escola. Há raízes profundas em erros colossais e, para saber combatê-los, devemos mergulhar nessas águas profundas.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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