O Estadão e o sequestro do liberalismo
No editorial de hoje (31/5), o Estadão fez uma verdadeira salada de conceitos, uma barafunda suntuosa, criada para confundir o leitor desavisado. No texto, há uma evidente “forçação de barra” para mudar o sentido de liberalismo. Trata-se, como diria José Saramago, de “um reflexo de má consciência que leva a dar às coisas não o nome que lhes cabe, mas o nome que as nega, como se essa operação de mágica linguística extraísse o veneno da serpente”. Na verdade, o periódico paulista está tratando de social-democracia ou progressismo. Peço, apenas, que essa constatação inicial não desencoraje o leitor. Eu, particularmente, não sou conservador; defendo, dentre outras questões, a liberação das drogas e o casamento gay – pautas, notoriamente, repudiadas pelos conservadores. Só não acho que essas questões possam ser impostas. Enfim, noves fora, o fato é que não posso deixar de ver a deturpação da palavra liberalismo.
Logo no primeiro parágrafo, o Estadão já escancara sua tendência ideológica ao criticar Donald Trump, tratando-o como inimigo da democracia. Assim como o jornal, acho a figura de Donald Trump péssima. O bufão, em linguagem machadiana, pode ser definido como “uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação”. Entretanto, isso não significa que ele fará um governo ruim para os americanos e, eventualmente, inclusive para nós brasileiros. Aliás, me parece que ele pode até ser melhor que Joe Biden. Trump é um protecionista conhecido, mas todos sabem que os Republicanos são mais propensos ao international trade que os Democratas. Os segundos sempre foram, independente do candidato, mais protecionistas. Qualquer liberal verdadeiro sabe que a liberdade no comércio internacional enriquece as nações.
Na sequência, o jornal traz uma pirueta retórica embutida em uma petição de princípio oculta. Ele dá a entender que vivemos momentos de populismo autoritário, mas, no fundo, o que o jornal condena é a tal “extrema direita”, que, ao fim e ao cabo, novamente com uma frase do atualíssimo Machado de Assis, não passa de “uma figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos”. Tudo o que é contra a agenda progressista, para o beautiful people, vira extrema direita.
Feitas essas considerações, o vespertino faz uma alusão ao artigo de David Brooks publicado no New York Times e republicado pelo próprio Estadão. Para os que entendem o cenário americano, a deturpação é auto evidente. A expressão “liberal”, adotada por David Brooks, se refere aos progressistas americanos, notoriamente associados ao pensamento esquerdista. Isso é uma manipulação semântica escancarada. O jornal usa a expressão sem explicar as circunstâncias. No Brasil, assim como na Europa, liberalismo é a doutrina dos indivíduos que acreditam em um estado mínimo, sem interferência na economia, e que respeita a liberdade de expressão – e, sim, essa liberdade de expressão defendida pelos verdadeiros liberais corresponde ao direito de dizer o que os outros não querem ouvir. A única limitação seria a situação em que essa liberdade gere um “perigo real e imediato” para outrem. Fora isso, podem ser ditas as coisas mais detestáveis, repugnantes, abomináveis, horrendas e idiotas. Liberais aceitam, e.g., que a estupidez socialista seja publicada, falada, cantada, filmada e tudo mais que se possa imaginar.
Na sequência, o Estadão traz a seguinte consideração: “uma pesquisa realizada em 24 países pelo Pew Research Center em 2023, publicada em fevereiro deste ano, revelou que a democracia representativa ainda figura no imaginário popular como o “modelo ideal” de organização política de uma sociedade. Contudo, o entusiasmo com esse modelo tem caído desde 2017. Por outro lado, os diagnósticos feitos pelo instituto devem ser vistos como um farol a iluminar a construção de saídas para essa decepção com a democracia liberal. O Pew constatou que, em média, 59% dos entrevistados não se sentem contemplados pelo progresso que a ordem liberal, em tese, deveria proporcionar. Para 74%, os políticos eleitos não são empáticos, como se vivessem alheios aos interesses da sociedade. Por fim, 42% disseram não encontrar em seus países partidos que representem suas visões de mundo e ideias para construção de agendas programáticas.”
Novamente, tem uma mistura conceitual bizarra. Agindo como um tabloide, o editorial tenta igualar liberalismo a democracia; e, mais uma vez, mistura liberalismo com outra coisa. No fundo, o que se quer é inculcar a ideia de que liberalismo seria igual à social-democracia. É óbvio que nas últimas décadas, o mundo não viveu em liberalismo. O intervencionismo expandiu, assim como as agendas progressistas. Não custa lembrar também que Hans-Hermann Hoppe, por exemplo, escreveu o livro “Democracia: o Deus que Falhou”. Igualar liberalismo a democracia é uma sandice; mas isso não significa que os liberais sejam antidemocráticos. Apenas que eles não são devotos de quaisquer ídolos (inclusive a democracia, tal qual se usa a expressão nos dias de hoje, como um dogma).
O que estamos vivenciando, na verdade, é um renascimento do pensamento conservador. O Estadão, que representa a intelectualidade brasileira, não gosta disso. Nada demais, podemos não concordar ou gostar do conservadorismo, mas é inegável que ele voltou a bater às portas do poder. A postura verdadeiramente liberal não pode ser taxá-lo de “extrema direita”. É preciso debater as ideias livremente e tentar convencer os demais de forma ética, lógica e respeitando a moral. Ao sair dessa orientação e usar erística, o Estadão presta um desserviço ao país. Usando palavra do gosto dos esquerdistas, “ressignificar” o liberalismo é o pior caminho possível. É perfeitamente possível que o jornal se identifique como liberal progressista, por exemplo, mas ele não pode sequestrar o liberalismo para usar como quer. Ao que tudo indica, as viúvas do PSDB estão tentando manipular o debate usando a tática perversa que deturpou a palavra “liberal” nos EUA. Se isso prosseguir, teremos de passar a usar a palavra libertário em contraposição ao esquerdismo e ao conservadorismo. Isso seria uma derrota para a liberdade e uma perda para o idioma.