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O defeito do conservadorismo (primeira parte)

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O conservadorismo prega a prudência e, em sua companhia, o combate às mudanças abruptas em qualquer sociedade. Sistemas de todos os tipos, já cimentados na cultura desde tempos ancestrais, devem ser respeitados, ainda que suas existências não tenham um absolutismo social e nem sejam intocáveis, admitindo mudanças, mesmo que estas sejam graduais.

Com esse mote, o conservadorismo burkeano se atenta para a naturalidade das mudanças sociais. Ele se afasta da ideologização revolucionária do iluminismo francês, bem como do racionalismo político, onde a razão humana, supostamente, imperaria sobre todo o mal social, bastando apenas um projeto de poder racional o suficiente para que tudo corresse bem. Edmund Burke viveu em uma época que evidenciava muito bem esse gosto pelo que ele chamava de “ideias metafísicas” sobre os direitos do Homem. Os pretensos direitos apenas trouxeram caos, terror e a tirania de Napoleão para os franceses e, depois, o restante da Europa. Eis a Revolução.

Contudo, o conservadorismo defendido por Burke não é apenas um antídoto para revoluções. Políticas progressistas se veem barradas pelo andamento natural das transformações existentes na sociedade, que impedem o que idealizam como um “progresso” inquestionável e nivelador de valores. Uma proposta legislativa X ou Y pode ir contra os valores e a cosmovisão que existe em uma sociedade – e, caso aprovada, pode gerar um caos social, em maior ou menor grau, que pode até ser utilizado para questionar a efetividade ou a validade de tal lei. Uma proposta conservadora, em contrapartida, respeitaria e consideraria as tradições de um povo, moldando a lei de acordo com o arranjo cultural e social precedente, para, assim, evitar atritos desnecessários.

O predicado conservador de conservar mais do que destruir tradições, contudo, tem um grande defeito, malgrado todas as suas virtudes em impedir o caos gerado pelo desprezo às tradições: o conservadorismo pode ser um empecilho para medidas que exigem uma solução imediata.

Burke, apesar de condenar essa “metafísica” revolucionária que cria direitos inalienáveis, mas que ao mesmo tempo se cega para o cenário da realidade, não dá respostas para reformas ou até mesmo demolições que devem ser feitas rapidamente na sociedade. Um exemplo para falta de resposta rápida pode ser encontrado na escravidão. Decerto que o escravismo é condenável para o conservador, assim como é certeiro que uma sociedade embasada hierárquica e economicamente no trabalho escravo – como muitas na História, desde tempos imemoriais – tem uma gigantesca tradição histórica que fornece suporte para esse sistema. Há toda uma cultura, todo um esquema de valor dado aos escravos e não-escravos, bem como nos atributos que fazem uma pessoa ser ou não ser escrava dentro de um regime escravocrata; tudo isso está cimentado e enraizado em sociedades escravistas, onde pode ser até mesmo considerado normal e louvável a apologia da escravidão, e mesmo os escravos, por conta de suas mentalidades e imaginários, podem achar suas condições como algo natural, podendo até mesmo defender a escravidão de bom grado, a mando de seus senhores.

Aqui podemos achar uma trinca dentro da proposta burkeana. É certo que Burke não condenava de todo a noção “metafísica” do Homem, pois ele acreditava na melhoria, ainda que gradual e sem fraturas, para evitar qualquer grande trauma que gerasse sangue; sua confiança de que mudanças graduais na sociedade, cedo ou tarde, iriam modificar suficientemente as instituições, de modo que até mesmo tipos de governo e economias inteiras sofreriam mudanças substanciais rumo ao progresso. É igualmente correto que a prudência burkeana também não deve ser tratada como uma lentidão mórbida para todas as modificações sociais, uma vez que agir rápido também faz parte da prudência, porém é inegável que o conservadorismo geralmente propõe uma lentidão nas mudanças, principalmente para aquelas que exigem o movimento de toda uma massa social, cultural e histórica, dentro dos ritmos e no imaginário geral.

A escravidão é um exemplo certeiro, pois ela fere diretamente o Homem em sua natureza. A liberdade, por mais que seu entendimento e sua aplicação durante a História sejam variados e plurais de acordo com cada cultura, não deixa de ser um universal abstrato. Ela está na natureza do ser, nos Homens. As consequências de uma pessoa se dizer dona de outra são as mais nocivas possíveis.

E é a respeito dessas características nocivas que Josué Montello (1917-2006) escreveu um épico que narraria a verdadeira tragédia que foi a escravidão no Brasil, em seu maior romance: Os Tambores de São Luís. O escrito de Montello trata a respeito da vida de um escravo no Maranhão, durante o século retrasado. Damião é filho de dois africanos traficados ilegalmente para o país (pois a proibição do tráfico negreiro já estava em vigor, quando os pais do protagonista chegaram ao porto de São Luís); nascido em uma fazenda de escravos, foge com seu pai, mãe e irmã para fundarem um quilombo e, já na adolescência, perde a liberdade conquistada pela fuga, quando um escravo fugitivo trai o quilombo e revela sua localização para os fazendeiros e as autoridades locais.

O que nos interessa da história de Damião, aqui, é o fato de ele ser incrivelmente apto para o trabalho intelectual desde sua adolescência. Damião aprende a ler com outro escravo fugitivo no quilombo de seu pai, habilidade esta que será decisiva em sua futura formação dentro do clero, já que sua rapidez em aprender e o fato de já saber escrever e ler em português é o que chama a atenção do bispo que visita a fazenda em que era escravizado, já perto de sua vida adulta.

Damião, como o escravo que era, viveu e viu as mazelas e os sofrimentos do cativeiro. Mesmo antes de nascer, a situação de sua família não era das melhores. Seu pai, Julião, sofreu nas mãos do homem que se dizia (bem como o direito, a lei e as instituições sociais do Brasil Imperial diziam) seu dono, o Dr. Lustosa – e o sofrimento anormal (mesmo para um escravo) que Julião sofria só foi causado por uma mentira. O filho do senhor de escravos fora envenenado e o dono queria fazer uma retaliação contra os escravos (contudo, tudo indica que o filho de Lustosa foi morto por sua própria irmã), e ali Julião criou uma inimizade com seu dono, ao contestar a acusação de assassinato imputada aos escravos. Se não bastassem os castigos físicos que sofria, o pai de Damião iria ver, mais tarde, seus filhos sendo tirados dele e, assim que soube dessa perversidade, reuniu sua família, incendiou a Casa Grande e fugiu – mas, como já foi dito, a fuga foi em vão, pois um traidor denunciou a localização do quilombo que, por anos, foi o lar da família de Damião e, durante a jornada de volta à fazenda a que pertenciam, logo após a destruição de seu quilombo, Julião é morto, fuzilado no meio de um rio, enquanto tentava fugir de seus perseguidores: tudo isso diante dos olhos de seus filhos e de sua esposa.

Continua na segunda parte.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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