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O arcabouço fiscal das exceções que fazem uma péssima regra

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O Brasil herdou, do fim do Regime Militar e da transição para a Nova República, um cenário de caos fiscal e econômico, que desaguou em uma premente necessidade dos novos governos, já sob tutela jurídica da Constituição de 1988, de arrumar os gastos públicos e destravar a economia. Esse esforço, que durou quase 30 anos, passou a sofrer recentemente duros golpes legislativos, culminando no engodo e retrocesso que é o chamado “novo arcabouço fiscal”.

A primeira arrumação fiscal e monetária já se deu com o Plano Real, em 1994, mas foi com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), criada em 2000, que se aprofundaram diversas regras para o controle das finanças públicas no Brasil. Entre essas regras, destacam-se os limites setoriais para a dívida pública, em especial quanto às despesas com pessoal e outras despesas do governo, inclusive com medidas de transparência e controle social e punições para o gestor público em caso de descumprimento de suas medidas.

No entanto, os limites globais de endividamento continuaram, até certo ponto, flexibilizados pela LRF, que garantia ao Senado a competência para estipular esses limites por resolução, o que não trazia a solidez necessária para uma real âncora fiscal.

O estouro da dívida pública na década de 2010, nas gestões de Dilma Rousseff, em conjunto com as pedaladas fiscais, apenas aprofundaram o sentimento nacional sobre a importância de uma regra fiscal sólida. Isso gerou a conjuntura política que propiciou a Emenda Constitucional 95/2016, estipulando limites à despesa primária em vários níveis e órgãos, podendo haver aumento do gasto de acordo com a variação do IPCA — o que, na prática, é uma correção pela inflação, com poucas exceções.

A Emenda Constitucional do Teto gerou as condições políticas, fiscais e econômicas necessárias para um aumento vertiginoso dos investimentos no país, o que se concretizou em conjunto com uma importante política de concessões e privatizações implementadas pelo governo Bolsonaro.

A ocorrência da pandemia mundial, com a crescente elevação dos gastos públicos por basicamente todos os países, gerou na sociedade brasileira o sentimento de se acompanhar esse movimento para combater a recessão econômica. Foi um típico movimento anticíclico que, inclusive, não é a política econômica recomendada por escolas mais liberais, tais como a Escola Austríaca de Economia.

No entanto, o governo, embora economicamente mais liberal, cedeu ao apelo popular — ainda que de maneira mais responsável que em comparação aos demais governos alhures. Dentre outras medidas, tivemos o aumento do repasse direto de recursos para os cidadãos e o aumento das transferências da União para Estados e Municípios.

Tivemos, por fim, a controversa PEC apelidada de “kamikaze” ou “da bondade”, que formalizou o aumento do teto de gastos durante o ano eleitoral de 2022. Isso gerou, naquele momento, o começo do fim da importante política de teto de gastos e das balizas jurídicas de segurança econômica para investimento no Brasil.

Após a vitória eleitoral do candidato Lula, a equipe de transição do novo governo imediatamente demonstra sua verve apreciadora da bisonha tese de que crescimento econômico se faz com aumento de gasto público, quando já se está comprovado e testado por várias experiências que é a segurança fiscal e jurídica, a poupança e o investimento em educação e tecnologia que geram o aumento de produtividade enriquecedor de uma nação.

Essa equipe econômica então apresentou uma “PEC da transição” que, com sua aprovação e promulgação como EC 126/2022, ainda durante a legislatura do Parlamento eleito em 2018, menos liberal e conservador que o de 2022, deu fim ao regime de segurança fiscal do teto de gastos e revogou os artigos da EC 95 que estipulavam limites gerais de gasto. Essa medida garantiu ao novo governo o direito de emitir títulos da dívida pública para bancar até R$ 145 bilhões em gastos, sendo, na prática, o velho imposto inflacionário da década de 1980, entre outros crimes de gastança pública desmedida.

Como contrapartida, o Congresso exigiu que o novo governo apresentasse uma nova âncora fiscal em substituição ao fim do teto de gastos corrigidos pelo IPCA anualmente. O prazo dado foi 31 de agosto de 2023.

Isso foi cumprido através do PLP 93/2023, onde o governo distorce a ideia original de correção e limites dos gastos pela inflação, ainda que formalmente a mantenha. Na EC 95, eram apenas quatro as exceções à regra original, sendo uma de transferência de recursos, outra sobre créditos extraordinários decorrentes de guerra ou calamidades, outra sobre gastos em eleições e uma última sobre aumento de capital de estatais. Tudo muito lógico e razoável.

Já no novo projeto temos inacreditáveis treze incisos, com a maior variedade possível de excepcionalidades, desde as que já constavam até despesas com educação, saúde, meio ambiente, obras de engenharia em geral… uma verdadeira farra. Flexibiliza também enormemente a expansão do gasto de acordo com o aumento real de receita.

No último ano, com a emenda “kamikaze”, já tivemos um aumento da despesa total acima da inflação de 6%. A expectativa é que 2023 repita esse gasto e acrescente pelo menos mais 3% acima da inflação. É a receita (com ironia, porque é despesa) do caos fiscal.

Segundo o filósofo alemão Carl Hempel, que participou do famoso círculo de Viena e depois migrou para os EUA, sendo a grande referência mundial de estudos sobre lógica no século 20, uma regra deixa de ser uma regra quando não se aplica a todas as situações relevantes. Ele afirmava que a utilidade de uma regra depende da sua capacidade de prever ou explicar eventos observados e, se ela perde essa capacidade, perde sua própria essência de regra.

Com toda essa “flexibilidade” apresentada pelo arcabouço fiscal para ancorar o gasto público, o limite deste gasto fica na imaginação do leitor do novo arcabouço fiscal, e apenas ali. No dizer antigo, é “regra para inglês ver”, tais como as regras de redução da atividade escravagista que nunca geravam efeitos reais durante o período imperial.

No fim, o falso arcabouço fiscal, desnaturado pelas suas inúmeras exceções que combatem e contradizem a regra, nos impõe uma regra fiscal clandestina de gastos sem limite, má alocação de recursos públicos e privados, capitalismo de compadrio, inflação, corrupção, aumento da carga tributária e empobrecimento coletivo, reduzindo a qualidade de vida de toda a população brasileira. Nada que nos seja novidade, mas que pensávamos ter ficado no Lixo, com “L” maiúsculo, da história.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste. 

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Bernardo Santoro

Bernardo Santoro

Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Mestrando em Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política das Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal.

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