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“O Abolicionismo”: a escravidão como chaga da formação nacional

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“Quanto a mim, julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de Liberdade, direito e justiça, que estas páginas contêm, derem uma boa colheita no solo ainda virgem da nova geração; e se este livro concorrer, unindo em uma só legião os abolicionistas brasileiros, para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em que vejamos a Independência completada pela abolição, e o Brasil elevado à dignidade de país livre, como o foi em 1822 à de nação soberana, perante a América e o mundo.”

Assim sintetiza o grande liberal brasileiro Joaquim Nabuco (1849-1910) a missão de seu opúsculo O Abolicionismo, vindo à luz em agosto de 1883. Trata-se de obra seminal para todos os amantes da liberdade em nosso solo. O nosso gigante recifense constrói em suas páginas uma análise histórica e sociológica, pincelada de paixão e ardor humanitário, da trajetória da escravidão desde a América Portuguesa até aqueles tempos em que começava a soçobrar o Segundo Império, ao mesmo tempo em que se anunciava o alvorecer do eterno e reluzente 13 de maio.

Até chegar à Lei Áurea, Joaquim Nabuco descreve a evolução de todas as legislações, desde a Lei Eusébio de Queirós, abolindo oficialmente o tráfico de africanos – mas sensivelmente desrespeitada -, passando pela Lei do Visconde do Rio Branco (Ventre Livre), libertando filhos de escravos. Demonstra o impacto de cada uma e as limitações de sua aplicação; desvela também aqueles que, desde o pai fundador José Bonifácio no ainda Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves até os seus contemporâneos de luta, desafiaram um costume tão entranhado em nossa sociedade. Finalmente, desfralda a bandeira da importância de sustentar a abolição total e irrestrita o quanto antes, sem transigir mais com as escusas da época, e distingue o Abolicionismo de então de outras propostas de emancipação notadamente por essa característica de não mais admitir a espera, de não mais se sujeitar a aceitar uma só alma aprisionada à servidão.

“Foi na legislatura de 1879/80 que, pela primeira vez, se viu dentro e fora do Parlamento um grupo de homens fazer da emancipação dos escravos, não da limitação do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política, a condição preliminar da sua adesão a qualquer dos partidos”, delimitou. O abolicionismo, porém, era para Nabuco muito mais do que isso. Era, acima dos partidos correntes – o Saquarema, o Luzia ou mesmo o Republicano -, uma grande concepção social, que previa uma vasta obra a ser feita para adiante da própria oficialização de um Brasil sem escravos.

O entendimento central expresso por Nabuco é de que a escravidão era mais do que um fato isolado no Brasil; era elemento essencial de sua formação como sociedade, a força motriz dos seus atrasos e das suas infâmias. Justamente porque no Brasil a escravidão não promoveu, como nos Estados Unidos, uma divisão política entre Norte e Sul – desmoronando em uma violentíssima Guerra Civil – e uma tensão racial tão profunda que cingisse quase completamente o povo em metades apartadas, envolvendo aqui, ao contrário, muito mais doses de mistura e assimilação, é que ela se enclausurou na alma do país com uma naturalidade muito mais longeva.

Se podemos apontar o patrimonialismo como uma mácula estrutural, potencializada nos primórdios pelo pombalismo, arduamente combatida por pensadores como Ricardo Vélez Rodríguez, Antônio Paim ou mesmo Roberto Campos, Nabuco identifica a escravidão como uma chaga tão poderosa quanto e que, casando-se com esse mesmo patrimonialismo e até mesmo estimulando o seu contínuo enraizamento, marca profundamente todas as esferas da nação.

“O que esse regime representa”, ele sintetiza, “já o sabemos. Moralmente é a destruição de todos os princípios e fundamentos da moralidade religiosa ou positiva – a família, a propriedade, a solidariedade social, a aspiração humanitária: politicamente, é o servilismo, a degradação do povo, a doença do funcionalismo, o enfraquecimento do amor da pátria, a divisão do interior em feudos, cada um com o seu regime penal, o seu sistema de provas, a sua inviolabilidade perante a polícia e a justiça”, porque, submetido a um regime que anula a cidadania de amplas parcelas, obstaculizando a integração e possuindo alcance limitado na geração de riquezas, o regime escravocrata estimula a sua elite a se alimentar dos cargos na burocracia estatal, favorece a indolência e compromete a gestação de espírito público.

“Econômica e socialmente”, prossegue Nabuco, “é o bem-estar transitório de uma classe única, e essa decadente e sempre renovada; a eliminação do capital produzido, pela compra de escravos; a paralisação de cada energia individual para o trabalho na população nacional; o fechamento dos nossos portos aos imigrantes que buscam a América do Sul; a importância social do dinheiro, seja como for adquirido; o desprezo por todos os que por escrúpulos se inutilizam ou atrasam numa luta de ambições materiais; a venda dos títulos de nobreza; a desmoralização da autoridade desde a mais alta até a mais baixa; a impossibilidade de surgirem individualidades dignas de dirigir o país para melhores destinos, porque o povo não sustenta os que o defendem, não é leal aos que se sacrificam por ele, e o país, no meio de todo esse rebaixamento do caráter, do trabalho honrado, das virtudes obscuras, da pobreza que procura elevar-se honestamente, está, como se disse dos estados do Sul (dos EUA), ‘apaixonado pela sua própria vergonha’.”

O projeto abolicionista de Nabuco não foi abraçado em sua completude pela elite do final do século XIX. À abolição sucedeu-se, para tristeza dele, a República, com o exílio da Família Imperial, que muito trabalhou por essa libertação, até sofrendo invectivas dos escravocratas sob pretexto de ultrapassar suas prerrogativas para isso. E com a República, mitigou-se um esforço qualquer pela integração dos escravos na sociedade e seu desenvolvimento pessoal e profissional. Os efeitos de atraso econômico, desprestígio do valor do dinheiro e do empreendedorismo e o estímulo à manutenção acomodada do patrimonialismo permaneceram agindo sobre o Brasil, nas diversas e conturbadas fases de sua história republicana.

Em O Abolicionismo, a partir do olhar de um dos nossos gigantes, que tornam nossa História, como não nos cansamos de dizer, mais reluzente, temos acesso privilegiado a uma de nossas maiores misérias, mãe lamentavelmente generosa de muitas outras cujo peso ainda se faz sentir. Se, como dizia Nabuco e ressaltamos ao começo, a obra da Independência precisava se completar com a obra da abolição, hoje precisamos completar a obra do Brasil grandioso a partir da emancipação dos espíritos para a livre iniciativa e para a dignidade e a vitalidade do indivíduo e do corpo social perante os entraves do estamento burocrático. Essa luta, talvez a mais duradoura da saga nacional, segue por ser travada.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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