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Não é preciso inventar moda: já existe o liberalismo

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A doutora em Sociologia da USP, jornalista e mestre em Comunicação Social pela UFMG, Isabelle Anchieta publicou um artigo no Estadão no último dia 25 de agosto, na seção de “Cultura”, com o título A maioria excluída: efeitos bolsonarianos e trumpianos no país Tupiniquim?. A tese principal de Isabelle é que, resumindo, as políticas identitárias levadas a efeito pelas esquerdas a partir dos anos 60 chegaram a uma posição extrema de penetração e poder na sociedade e despertaram reações de potencial similar.

A seu ver, candidatos como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil representam a reação dos grupos vistos como “majoritários”, execrados pelos agentes da gritaria identitária, que teriam passado a psicologicamente entender a si mesmos como uma “identidade” coletiva ameaçada. Os grupos ligados às agendas identitárias teriam formalmente se associado a movimentos e setores políticos à esquerda, adquirido influência, amplo predomínio nos meios de comunicação, com patrocínio governamental e privado – acrescentaríamos: polpudo patrocínio privado, de fundações e instituições como a Open Society de George Soros.

Ela explica que os grupos identitários “gradualmente, organizam-se e se profissionalizam em torno de uma ideologia política mais à esquerda” e “ganham força e recursos financeiros provindos das mais diversas fontes, desde a governamental até a sociedade civil”. Eles estariam ocupando agora “de tal maneira a cena social que as “minorias” mais parecem ter se tornado as maiorias”, estando “na TV, nos jornais, nas revistas e mesmo na política”.

Grande ponto para a doutora Isabelle. Não seria possível concordar mais com esse diagnóstico que ela descreve. Ela diz ainda, baseando-se em um posicionamento do cientista político e historiador de ideias Mark Lilla (que se auto define como um pensador de esquerda), autor de A Mente Imprudente e A Mente Naufragada, que o pêndulo se inverteu e “ser branco ou branca, de uma classe abastada (ou mesmo de classe média)” – lembremos aqui a gritaria de Marilena Chauí contra esta última –, “conservador nos costumes, católico ou evangélico não pega bem em uma sociedade cujo pertencimento a um grupo, engajado em uma causa social identitária, é a única via da nova redenção social e pessoal”.

Com isso, “de subversivos, os rebeldes tornam-se os novos donos do poder e as ideias revolucionárias são naturalizadas como o novo politicamente correto”, tornando-se a norma “o casamento gay, o banheiro unissex, o aprendizado das sexualidades e o engajamento social atrelado às ideologias políticas de esquerda nas escolas e fora delas”. Isso tudo é precisamente o que articulistas, pensadores, comunicadores e escritores liberais e conservadores, no Brasil ou fora dele, têm denunciado à exaustão. No entanto, talvez, por estar sendo dito por uma doutora da USP, chame a merecida atenção de um público que desprezaria outras fontes.

Mark Lilla, citado por Isabelle, alega que os jovens estão se formando completamente submersos na pauta identitária, tornando-a o sinônimo de tudo que há e transparecendo incapazes de discutir qualquer outra dimensão dos problemas sociais. Curiosamente, ele diz que a identidade passou por cima até da “classe”, o conceito-chave para as esquerdas no passado. A “onda conservadora” – ou, como preferem alguns analistas, “onda populista de direita” – seria produto da percepção dos “brancos, rurais e religiosos” de que eles mesmos se podem pensar como “um grupo desfavorecido cuja identidade está sendo ameaçada ou ignorada”, reagindo “contra a onipresente retórica da identidade” em prol da própria.

O que se está dizendo, em outras palavras, é que uma engenhoca desenvolvida por intelectuais que se apoderou do linguajar do debate público suscitou uma reação de amplas parcelas populares que simplesmente não a toleram, não a veem conversar em nada com suas realidades particulares e a enxergam tirânica e perigosa. Em todos esses pontos, Isabelle e Lilla estão admiravelmente corretos. Tudo isso sem dúvida está acontecendo. A ideologia do “identitarismo” crônico “contracultural” da Nova Esquerda, instrumentalizada por atores sociais de todas as esferas em busca do poder, tem monopolizado as atenções e torrado a paciência. É esse cenário que tem impulsionado candidaturas que se dispõem a desprezar sua “etiqueta” autoritária e pedante.

No entanto, ao final de seu artigo, Isabelle comenta que os “extremos” precisam ser combatidos através do que ela chama, em sua pesquisa de doutoramento, de “individumanismo”, pois, “se por um lado, não é possível negar o importante processo de individualização e de reconhecimento das igualdades promovido por grupos identitários, não se pode, por outro, cairmos em um revanchismo igualmente preconceituoso que, para exaltar a vítima, precisa criar algozes”. Ela conclui: “o importante é compor um novo lugar de identificação fora desse sistema binário em prol de um entendimento social ampliado do outro, que une, iguala e pacifica sem homogeneizar. A humanidade composta de indivíduos: o individumano; quando, enfim, pudermos nos engajar na vida em comum para além das estereotipias que nos separam”.

É claro que uma apreciação mais completa desse estranho conceito de “individumanismo” demandaria ler a pesquisa de doutoramento que enseja o comentário. No entanto, aqui parece haver a sugestão de um falso ineditismo que tem contribuição duvidosa à discussão da busca por uma saída ao problema das tensões correntes. Em primeiro lugar, é questionável – no mínimo merece maiores ponderações – se os tais “grupos identitários” foram ou são tão fundamentais assim para promover o respeito e o reconhecimento dos direitos alheios. Não se pode atribuir ao movimento negro ou ao feminismo a maior parte dos avanços e sucessos obtidos no combate ao racismo e na emancipação feminina. Uma análise judiciosa da História mostra isso.

Há uma diversidade de fatores que pesaram muito mais que a militância de uns e outros; isso não quer dizer que nenhum movimento de “grupos” tenha tido méritos, é claro. As sufragistas, por exemplo, tinham toda razão em demandar o direito das mulheres de votar. Martin Luther King, de combater a segregação racial junto a seus fiéis e amigos. Que semelhança, porém, essas pessoas guardam com a loucura identitária policialesca que observamos agindo agora? As próprias sufragistas eram, muitas delas, mulheres de pendores bastante tradicionais e religiosos. São fenômenos de uma tal ordem de distinção que soa quase pornográfico tratá-los como sendo a mesma coisa.

Quanto à ideia de que a humanidade é composta de indivíduos e é preciso frisá-los como suas unidades fundamentais, em seus direitos e liberdades, não é preciso inventar nenhuma moda. Isso é precisamente o “individualismo metodológico” tão caro ao liberalismo. Desde a sua origem, ainda que superando lentamente os limites e empecilhos sociais, o liberalismo é justamente, em suas diversas tendências, um discurso pela proteção do indivíduo perante uma absoluta homogeneização opressiva e uma imposição do arbítrio. Não importa, levando esta ideia às suas melhores consequências, se o indivíduo é homem, mulher, negro, caucasiano, budista ou judeu. Com todo o respeito à doutora Isabelle, o de que realmente precisamos é do enraizamento e do estímulo devidos a esse liberalismo, que dispensa humanização, porque não é e nunca foi desumano.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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