Mário Vargas Llosa (1936-2025) – In Memoriam

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A Literatura, afirma Fernando Cristóvão (1929-), professor de filologia românica da Universidade de Lisboa, “é a antropologia das antropologias”. Efetivamente, se quisermos flagrar o ser humano na sua mais profunda identidade, sem que intermedeiem filtros, a obra literária apresenta-nos, como diria Nelson Rodrigues (1912-1980), “a vida como ela é”.

Fui professor de Teoria da Literatura na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellín, nos anos setenta do século passado. Nas minhas aulas sobre os criadores do “boom” literário latino-americano e sobre seus antecessores, abordava autores como García Márquez, Mario Vargas Llosa, Erico Veríssimo, Octavio Paz, Domingo Faustino Sarmiento, Ernesto Sábato, Ramiro Barcelos (Pseudônimo, Amaro Juvenal), Jorge Icaza, Miguel Angel Asturias, Augusto Roa Bastos, V. S. Naipaul, etc..

Nas minhas aulas procurava ilustrar, a partir da narrativa desses autores, o pano de fundo dos costumes e instituições políticas, com a finalidade de tecer um quadro variado do que seria “o inconsciente coletivo” do patrimonialismo latino-americano, com a tendência típica desse tipo de arquitetura social , de encarar o público como privado. Dessa forma, consegui me aproximar do fenômeno do autoritarismo familístico, patrocinado pelo caudilhismo latino-americano. Fruto dessas reflexões foi meu livro, publicado em 2008, com o título: A análise do Patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado gerido como bem de família (Prefácio de Arno Wehling). Rio de Janeiro: Documenta Histórica – Instituto Liberal, 263 páginas.

Ressaltam, nessa plêiade de autores, dois escritores, como os que de forma mais viva recriaram os traços dos Estados Patrimoniais, na América Latina: o colombiano García Márquez, com as suas grandes narrativas do real-maravilhoso, que se podem exemplificar com duas das suas obras: Cien años de soledad (1967) e El otoño del patriarca(1975). O outro autor que melhor desenha o quadro do Patrimonialismo é o peruano Mario Vargas Llosa, com dois romances da sua autoria, dentre os muitos que escreveu: La guerra del fin del mundo (1981) e La fiesta del chivo (2000).

García Márquez confessava que a arte de narrar histórias extraordinárias a herdou da sua avó, que lhe contava fantásticas sagas de vivos e de mortos, de anjos e de diabos, de liberais e conservadores, nas longas tardes pachorrentas da sua cidade, Aracataca, ao som das cigarras desesperadas com os escaldantes entardeceres que não passavam, nas beiras pantanosas do Rio Magdalena antes de se jogar, tumultuoso, nas azuis águas do Mar Caribe, para saciar definitivamente a sede de refrescantes ares e de horizontes infinitos. Ali, em Aracataca, o jovem jornalista criou o seu mundo de assombrações, nomeando a sua cidade com o nome que ficou famoso: Macondo. Não podia faltar, claro, o herói resoluto que matava inimigos e que, sentenciado a morte, fugiu feito assombração do pelotão de fuzilamento, o fantástico e inapelável coronel Aureliano Buendía, Patriarca de Patriarcas, amante indomável e inapelável herói de inúmeras batalhas.

O escritor peruano Vargas Llosa, nascido em Arequipa, a “cidade branca” dos Andes, filho de um pai rigoroso e ausente que o colocou, ainda imberbe, no Colégio Militar, entregou aos leitores latinoamericanos inúmeras obras concretizadas em grandes narrativas romanceadas que perpetuam a saga do poder inapelável do líder patrimonialista. Dentre elas, destaco La guerra del fin del mundo (1981), que conta a guerra de Canudos entre o exército positivista e republicano e os valentíssimos sertanejos do “fim do mundo”, nas imensas solidões brasileiras que integram o paupérrimo Sertão Nordestino e que tinham como capital das suas esperanças o povoado de Canudos, em 1896-1897, sob a proteção mítica de Dom Sebastião, o rei português que sumiu na batalha de Alcácer Quibir em 4 de agosto de 1578, no Marrocos, no decorrer da última Cruzada Cristã contra os infiéis islâmicos. A sina de Canudos ocorreu na trilha de esperança assinalada pelo mito sebastianista, segundo o qual, o próprio Rei dom Sebastião emergiria das águas do Oceano, com as suas hostes de cavaleiros, para libertar o povo pobre do Sertão da ditadura togada dos positivistas, aos quais prestava continência o exército republicano. A massa dos amotinados de Canudos seguia a pregação do profeta do deserto, Antônio Conselheiro, portador de uma fé inabalável no poder dos miseráveis que combatiam as forças republicanas. Como o mito tem poder que se sobrepõe às limitações do espaço e do tempo, as improvisadas hostes de sertanejos comandados por Antônio Conselheiro venceram as forças republicanas, tendo sido necessária a intervenção do próprio Presidente da República para organizar uma força especial que vencesse definitivamente os heroicos esfarrapados. Vargas Llosa conta a inaudita valentia dos heróis de Canudos em La guerra del fin del mundo. Em 2021, Vargas Llosa foi o primeiro escritor estrangeiro a ser admitido na Academia Francesa, em Paris, tendo assumido a cadeira de número 18, que tinha sido ocupada, no século XIX, pelo grande pensador liberal Alexis de Tocqueville (1805-1859).

Diferentemente de García Márquez, que sempre teve uma queda pelos ditadores de esquerda, dentre os quais sobressaía no seu panteão de crenças a figura de Fidel Castro (1926-2016), Vargas Llosa, embora simpatizante, no início da sua carreira de escritor, para com os líderes da esquerda latino-americana, foi, aos poucos, se distanciando deles para passar a abraçar uma posição de centro, se aproximando do Liberalismo. Combateu os socialistas na América Latina e particularmente no Peru, chegando a postular o seu nome como candidato dos liberais no pleito presidencial que elegeu Alberto Fujimori, de direita, nas eleições de 1990. Desgostoso com os desvios da democracia peruana, presa nas redes da corrupção, Vargas Llosa fixou residência na Espanha, tendo adotado a nacionalidade desse país. Passou uma longa temporada em República Dominicana, no Caribe e, como fruto da sua permanência nessa ilha escreveu La fiesta del chivo (2000), acerca do poder patrimonialista exercido nesse país por Rafael Leonidas Trujillo (1891-1961), na longa ditadura que se estendeu de 1930 até 1961. Com cores vivas Vargas Llosa descreve a crueldade do ditador para com os dominicanos, destacando o castigo com que os opositores eram punidos, sendo jogados vivos aos tubarões.

Vargas Llosa e García Márquez foram vizinhos em Barcelona, ao longo dos anos 70, quando o escritor colombiano escrevia o seu romance mais importante, Cien años de soledad, que foi a obra que terminou fazendo com que a Comissão do Prêmio Nobel lhe concedesse o invejado galardão em 1982. A partir daí tornaram-se amigos inseparáveis. No entanto, em 1976 desentenderam-se, na entrada do Museu de Belas Artes da cidade do México. Na ocasião, Vargas Llosa – que tinha recebido o Prêmio Nobel de Literatura em 2010 – desferiu um cruzado de direita no rosto do seu amigo García Márquez, dizendo as seguintes palavras: “Isso é pelo que você fez com a Patrícia em Barcelona”. Ora, a bela Patrícia, que era prima e mulher de Vargas Llosa, tinha-se separado temporariamente do marido em 1975. O Nobel colombiano, ao que parece, “teria avançado o sinal” com a ex-mulher de Vargas Llosa, sendo que o casal se reconciliou logo depois. Mas os antigos amigos, Prêmios Nobel de Literatura com grande merecimento, não se reconciliaram mais, infelizmente, em que pese as pontes colocadas por amigos comuns.

Aos motivos emocionais da briga, somaram-se as diferenças políticas entre ambos os escritores. García Márquez permaneceu fiel na sua admiração aos ditadores de esquerda, sendo incondicional admirador de Fidel Castro e do coronel Hugo Chávez, da Venezuela. Já Vargas Llosa derivou em matéria de escolhas políticas em direção ao campo liberal. Nos últimos escritos revelou a sua defesa da liberdade, de forma incondicional, praticamente em termos tocquevillianos. Quando recebeu o Prêmio Nobel, no seu discurso de agradecimento frisou:

No debemos dejarnos intimidar por quienes quisieran arrebatarnos la libertad que conquistamos durante la larga lucha de la civilización. Nunca me sentí un extranjero en Europa”.

*Artigo publicado originalmente no site do autor.

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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