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Liberais perante os Atos Institucionais militares – e outras curiosidades

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Com muito interesse e algum atraso, deparei-me com um registro bastante curioso feito pela Folha de São Paulo: os áudios e transcrições da reunião de cúpula do governo militar de Arthur da Costa e Silva (1899-1969), em 13 de dezembro de 1968, que sancionou o famigerado Ato Institucional Número 5.

Quem me conhece sabe que não escrevo sobre o regime militar com ares de julgador implacável dos personagens do passado; tudo que o registro mostra precisa ser entendido à luz do contexto vivido, toda avaliação do que os brasileiros de ontem decidiram fazer precisa ser realizada levando em consideração o que havia à disposição no calor do momento. Contudo, também tenho uma opinião muito definida: o regime militar não era uma necessidade, um governo democrático poderia ter conduzido o Brasil no combate ao comunismo terrorista e ao populismo de herança varguista, e a perpetuação de um poder tecnocrático nunca foi a promessa do movimento de 64. O AI-5, concentrando muito exageradamente poderes no Executivo e levando à cassação, inclusive, de uma liderança conservadora de grande porte como o nosso Carlos Lacerda, era o ápice do caminho equivocado que se decidiu trilhar.

Muito além, entretanto, de julgar o certo ou o errado é perceber as contradições a que a humanidade nos conduz, e como a História é mais complexa do que certas simplificações ideológicas costumam induzir a acreditar. Senão vejamos…

Em primeiro lugar, o presidente Costa e Silva, em seu discurso, faz referência à necessidade de conter o caos, a desordem, a “desagregação da Revolução”, mas não se atém a criticar o terrorismo; também se queixa da falta de colaboração do Congresso. Fica claro aqui que pesou, sim, a declaração estridente do deputado Marcio Moreira Alves, que acusou os militares de truculência e foi alvo de uma tentativa de processo na Câmara acionada pelo governo; com a tentativa frustrada, Costa e Silva passou a querer aumentar seus poderes para dispensar esse caminho que a Constituição ainda impunha. Diante dessa e de outras ocorrências – como a famosa resposta dada a Roberto Campos, quando este criticou ingerências políticas no Banco Central, e Costa e Silva disse com toda a modéstia: “o guardião da moeda sou eu” -, não se pode apontar no ex-presidente militar muita consideração pelo funcionamento normal dos poderes.

Outro “mito” que cai é o de que o presidente Médici, que governou depois de Costa e Silva e da junta militar que o sucedeu, seria uma figura muito mais moderada e sem qualquer ligação com o figurino mais autoritário que o regime assumiu na entrada dos anos 70.

Médici pode ter usado menos recursos de intimidação ao Congresso, apesar de governar no período apelidado de “Anos de Chumbo”, do que outros presidentes militares, mas concedeu apoio entusiástico ao AI-5: “Acredito, senhor presidente, que com sua formação democrática, foi Vossa Excelência tolerante por demais. Porque naquela oportunidade eu já solicitava a Vossa Excelência que fossem tomadas medidas excepcionais para combater a contrarrevolução que estava na rua”. Ou seja, Médici achou que o AI-5 tinha demorado demais.

O famoso ministro da Fazenda Delfim Netto foi em direção semelhante e disse que o AI-5 era pouco e Costa e Silva deveria ter mais poder para mexer na Constituição – leia-se: a de 67, estabelecida pelo próprio regime militar. Delfim, contudo, nunca foi uma figura que inspirasse pelo seu “liberalismo”. O que é um fenômeno histórico interessante é que alguns liberais históricos, ou figuras identificadas com as teses da retração do Estado, da desburocratização e da liberdade econômica, tiveram posições simpáticas à escalada autoritária.

Já conhecemos a ligação de Roberto Campos com o governo Castelo Branco, muito embora ele passe longe de ter sido um apoiador dos Atos Institucionais que se seguiram. O grande mestre liberal anterior ao regime militar, Eugênio Gudin, também foi um entusiasta do AI-2, que extinguiu os partidos políticos e estabeleceu as eleições indiretas. Contudo, no que diz respeito ao AI-5, a nota mais interessante é a íntegra do voto de Hélio Beltrão (o pai), que trabalhou no governo de Carlos Lacerda na Guanabara (vindo, depois, a votar favoravelmente à sua cassação) e criou o Programa de Desburocratização no regime. No governo Costa e Silva, ele era Ministro do Planejamento. O que disse Beltrão?

“Fui formado no respeito às instituições democráticas e à ordem jurídica” e “sou filho de um homem público que consumiu a sua vida combatendo a ditadura. Eu mesmo, na minha obscura vida pública, registrei vários atos claros de repúdio à ditadura. Nesse momento em que somos chamados a manifestar-nos sobre um ato que formalmente parece atentar contra a ordem jurídica e as instituições democráticas, é preciso realizar uma profunda reflexão e identificar o interesse profundo nacional”, ele começou.

Beltrão rapidamente anestesiou suas precauções e descreveu o caos pré-1964, afirmando que “nenhuma consideração de ordem puramente formal” pode afastar o governo “da responsabilidade de assegurar neste país a ordem e a tranquilidade para o trabalho e para o desenvolvimento”. A conclusão: “penso que a medida que será tomada esta noite vai exigir de todos nós muita ponderação, muito equilíbrio, muita moderação, muita austeridade, muito cuidado na execução dela. Porque é na execução dela que se revelará ou não o conteúdo antidemocrático, ditatorial ou arbitrário”. A frase mais interessante vem a seguir: “É necessário realmente assumir a responsabilidade de uma ditadura, mas a ditadura só será ditadura na medida em que os poderes excepcionais que estão sendo concedidos ao governo forem usados arbitrariamente, ditatorialmente”.

O que Hélio Beltrão faz aqui é, a despeito de sua sustentação da liberdade econômica, se afastar de teorias liberais no campo institucional e político. Afinal, ele está subordinando o caráter ditatorial de um regime às pessoas que o manipulam e coordenam, e não aos limites constitucionais a que a autoridade está sujeita independentemente de quem a exerce. Esse é um raciocínio tipicamente antiliberal, para o qual as pessoas que ocupam determinado cargo são mais importantes do que as regras que precisam obedecer.

Uma última curiosidade é que, ao contrário, o vice-presidente Pedro Aleixo, que era um representante da ala mais nacionalista da UDN, defensor do monopólio estatal da exploração do petróleo, dos minérios atômicos, da eletricidade e até das telecomunicações, a despeito de seu anticomunismo, foi o único voto contrário ao AI-5. Aleixo, deposto depois que Costa e Silva adoeceu para não assumir a presidência, era, quaisquer que fossem suas ideias, de uma virilidade indiscutível. Sentado a uma mesa cheia de generais, sem destemor, ele disse que a manifestação de Marcio Moreira Alves não era cabível de ser punida com a cassação de seu mandato, mas que reconhecia os dramas do momento. Por isso, considerava aconselhável “a adoção de uma medida de ordem constitucional que viesse a permitir o melhor exame do caso em todas as suas consequências”, adotando “o estado de sítio”, previsto constitucionalmente.

“Da leitura que fiz do Ato Institucional, cheguei à sincera conclusão de que o que menos se faz nele é resguardar a Constituição, que no seu artigo 1º declara-me preservada. Eu estaria faltando um dever para comigo mesmo se não emitisse, com sinceridade, esta opinião. Porque, da Constituição – que antes de tudo é um instrumento de garantia de direitos da pessoa humana, de garantia de direitos políticos -, não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente apreciável como sendo uma caracterização do regime democrático”. As críticas viris continuam, vindas de um homem que está diante do presidente e vários outros militares, frise-se: “Nem os próprios tribunais poderiam realmente funcionar para preservar quem quer que seja, do abuso do mais remoto e do mais distante – e vamos dar ênfase assim, usando uma linguagem vulgar -, do mais ínfimo de todos os agentes da autoridade. Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é com uma aparente ressalva da existência dos vestígios de poderes constitucionais existentes em virtude da Constituição de 24 de janeiro de 1967, é instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura”.

Trazemos esses dados que nos chamaram a atenção não para atacar a honra desta ou daquela figura, mas sim para destacar, primeiro, que a realidade é mais redonda do que simplismos abstratos podem fazer crer. Segundo que, mesmo que admiremos pessoas e tenhamos ícones em que nos mirar, as pautas e ideias são mais valiosas que as individualidades. Sou muitíssimo mais simpático, pessoalmente, por exemplo, às teses econômicas de Beltrão do que de Pedro Aleixo, mas não posso deixar de admirar, neste último, a coragem e ousadia de seu voto, com o qual, assim como Carlos Lacerda, provavelmente tenderia a me colocar na época. Hoje, diante dos fatos que presentemente nos importam, nos guiemos também por essa premissa: os princípios e as bandeiras mais do que personalismos.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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