John Locke e os ideais liberais de justiça e representação (primeira parte)

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John Locke (1632-1704) viveu num período bastante conturbado da história da Inglaterra, ao ensejo da queda da Monarquia Absoluta e da sua substituição pela Monarquia Constitucional. Os aspectos essenciais da concepção política lockeana estão contidos nos Dois Tratados sobre o Governo. Para os leitores ibero-americanos, acostumados aos arroubos retóricos do pensamento revolucionário inspirado em Jean-Jacques Rousseau (1712-1776), é difícil entender como um homem tímido, de trato afável, defensor da tolerância, pudesse ter pensado a maior revolução política que a Europa presenciou no século XVII. Mas foi justamente isso que aconteceu com o pensamento de Locke. Os ingleses, aliás, são dados a esse tipo de contraste.

Outra revolução, no campo da epistemologia, foi efetivada por um seguidor do empirismo lockeano: David Hume (1711-1776), que possuía uma personalidade afável e que, no entanto, realizou a denominada revolução copernicana do conhecimento, ao ter formulado a perspectiva transcendental. Ambos os pensadores encararam a perseguição dos detentores do saber oficial. Locke foi expulso da Universidade de Oxford e Hume jamais conseguiu entrar como professor de moral nas Universidades da Escócia, como era seu desejo. Ambos pagaram um pesado tributo pela sua fidelidade à vida, quer no terreno da reflexão política, quer na seara da teoria do conhecimento. da antropologia e da filosofia política.

Luis Rodríguez Aranda, na introdução espanhola aos Dois tratados, destacou, em relação a Locke, esse paradoxo com as seguintes palavras: “Este Ensayo sobre el gobierno civil (…) es uno de los libros políticos que más honda y persistente infuencia han ejercido en el pensamiento político europeo y americano. Aunque las ideas que expresa no son absolutamente originales, en su tiempo fué una obra revolucionaria. Sin embargo, no hay que pensar que su autor haya sido un hombre exaltado y anárquico. John Locke fué un hombre dulce, modesto y de buen sentido, cualidad esta última que, según algunos de sus contemporáneos, ganaba la simpatia de las personas a quienes trataba. En el retrato que hay de él en Christ Church, uno de los colegios más venerables de Oxford, aparece con un rostro enfermizo y delicado. Y, en efecto, su salud no fué nunca buena a lo largo de su vida” [Rodríguez Aranda, 1973: XI].

Os Dois tratados sobre o governo não são uma obra puramente teórica. O pensamento político do nosso autor referia-se, no contexto da tradição empirista inglesa, aos fatos da vida real. Firma Locke, certamente, uma nova teoria. Mas escorada numa base histórica que deve ser levada permanentemente em consideração. A experiência inglesa, na tentativa de superar o absolutismo, esse é o chão em que se firma. De novo, para nós, ibero-americanos, acostumados às teorias abstratas em matéria política, como se se tratasse de deduções de princípios gerais aplicáveis aos fatos concretos, o arrazoado do filósofo inglês soa estranho. Daí por que é necessário que, constantemente, lembremos o princípio de referência da teoria ao curso concreto da história, que permeia o pensamento político lockeano.

É Rodríguez Aranda, novamente, quem nos lembra esse aspecto, ressaltado no contexto da formação do filósofo, que parecia não se interessar pela teoria abstrata. A propósito, frisa o citado autor: “Un condiscípulo suyo lo describe como un espíritu descontento. En clase, mientras los demás alumnos tomaban apuntes, desdeñaba hacerlo. Alcanzó el grado de master em 1658. En el tiempo que estudió Locke en Oxford imperaba aún el escolasticismo, y su influencia, como han demostrado Gibson y Krakowski, es muy importante en él. Se cansó pronto del árido método escolástico porque le interesaban más los hechos reales que las abstracciones y las cuestiones sin utilidad, según su propia expresión” [Rodríguez Aranda, 1973: XI-XII].

I – Contexto histórico.

Os Dois tratados sobre o governo foram escritos por Locke entre o final de 1679 e agosto de 1689. Revelam, mais do que o fato da Revolução Gloriosa de 1688, que depôs Jaime II (1633-1701), uma corrente de ideias em defesa da liberdade e de uma modalidade de governo compatível com este ideal. A obra está associada à revolução no terreno das ideias e das instituições, com o abandono definitivo do Ancien Régime e com a sua substituição por uma trama institucional que pressupõe a concepção do poder e do Estado, que faz do povo a figura central da vida política. Os Dois tratados sobre o governodevem ser entendidos no contexto do empreendimento efetivado por Locke e Anthony Ashley Cooper, 1º conde de Shaftesbury (1621-1683), no sentido de encontrar uma nova forma de convívio político, afinada com o ideal da liberdade.

A propósito deste ponto, Peter Laslett (1915-2001) escreve: “Tal como está reconstituída, a composição dos Dois tratados sobre o governo só pode estar vinculada à relação de Locke com Shaftesbury, ligação esta que chegou ao fim de maneira traumática. A necessidade de partir para o exílio, a perda de sua posição em Christ Church, o fantasma de um julgamento e até mesmo de uma execução estavam completamente associados, na mente daquele homem cauteloso, introvertido e tímido, ao fato de haver escrito sobre política. Quando retornou, em 1689, e decidiu publicar o que escrevera, não estava num país cujo futuro político parecesse estável. A volta de Jaime II foi uma possibilidade que pairou por toda a década de 1690; caso isso acontecesse, significava o exílio para Locke e, talvez, teria ponderado ele, uma sorte mais cruel para o conhecido autor daquele livro. Sua própria experiência e o destino de seus amigos e aliados não lhe deixavam dúvidas de que um monarca católico Stuart jamais hesitaria em usar contra ele o que quer que fosse encontrado em seus papéis pessoais. Começamos a entender, com isso, sua atitude extraordinariamente furtiva com respeito à autoria dos Dois tratados e sua persistente recusa em admitir que os escrevera” [Laslett, 1998: 95-96].

Assim, pois, é na busca de um novo modelo de convívio político que se situa a inspiração da obra. Essa busca constitui o ideal acalentado e pensado por Locke e por Shaftesbury ao longo da década de 1680. Nesse sentido, pode-se dizer que o escrito de Locke foi uma justificativa da Revolução de 1688. A respeito deste ponto, frisa Laslett: “(…) O escrito de Locke justificou, de fato, a Gloriosa Revolução whig de 1688, se é que se pode empregar tal expressão em absoluto. Parte do texto foi sem dúvida escrita em 1689, visando aplicar-se à situação corrente, e seu autor deve ter tido a intenção de que o conjunto da obra fosse lido como comentário acerca de tais acontecimentos. Contudo, não se pode sustentar que o livro tenha sido originalmente concebido como uma justificação de uma revolução já consumada. Um exame detalhado do texto e das evidências nele contidas revela que não foi 1688 que fixou a atenção de Locke sobre a natureza da sociedade e da política, a personalidade política e a propriedade, os direitos do indivíduo e os imperativos éticos que pesam sobre o governo. A conjunção de eventos que voltou seu pensamento para essas questões deve ser buscada num período anterior. Na verdade, os Dois tratadosrevelam um clamor por uma revolução a ser promovida, e não a racionalização de uma revolução necessitada de justificativas” [Laslett, 1998: 67-68].

Isso posto, devemos lembrar um outro aspecto da vida intelectual de Locke, intimamente ligado à escrita dos Dois tratados: o seu acurado senso de cidadania, que o levava a ter a convicção de que um intelectual não esgotava a sua missão nos deveres da academia, mas que deveria retribuir, mediante uma colaboração concreta na gestão pública, aquilo que recebeu na sua formação. A respeito, escreve Laslett: “O extraordinário na atitude e no comportamento de Locke era sua insistência nos deveres do cidadão no governo; considerava sua atividade, bem como a do seu amigo Isaac Newton (1643-1727), responsável pela Casa da Moeda, como a justa contribuição devida por um intelectual à atividade de governo. Se pretendermos compreender Locke enquanto escritor político, devemos nos deter um pouco em seu peculiar relacionamento com os políticos” [Laslett, 1998: 58]. Traço bem típico, aliás, dos pensadores que constituíram, na França, a geração dos doutrinários.

Anotemos, de passagem, que o termo doutrinários foi aplicado, pela primeira vez a Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845) que, na Sorbonne, em Paris, formou uma geração de pensadores e homens de ação que se contrapuseram decididamente ao absolutismo e da qual emergiram figuras importantes do liberalismo francês, como Henry-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) e François Guizot (1787-1874) que deram forma teórica à corrente, e Alexis de Tocqueville (1805-1859) que incorporou o ideal democrático às teses doutrinárias.

Mas o relacionamento com o mundo dos políticos não colocava Locke no mesmo patamar deles, como se simplesmente assinasse embaixo das suas exigências. O nosso pensador era consciente de que deveria fecundar a atividade política com a lucidez das suas idéias. Laslett ilustrou esse tipo de relação da seguinte forma: “Dotado de prodigiosa agilidade e eficiência como orador na exposição de idéias, um verdadeiro gênio na plácida clareza com que conseguia deslindar as coisas mais intrincadas, Locke não era um homem capaz de perder-se no ato dos fatos políticos ou mesmo da criação intelectual. Sua eficácia situava-se em outro patamar, num poder de fascinar os homens de ação; em seus últimos anos, ele usufruiu plenamente a influência diretora que tal eficiência lhe conferira” [Laslett, 1998: 60].

No entanto, esse trabalho de iluminação sobre a cena política não foi realizado por Locke de maneira tranquila. Os azares da conjuntura política perturbavam-no. A crítica o deixava inseguro. Procurava manter a fidelidade à razão, contudo, sem abandonar a perspectiva da política real. Isso produzia no nosso autor uma tensão interior que foi se aplacando com o correr dos anos, na medida em que observava que as suas idéias, concebidas dolorosamente no esforço por entender o fluir dos fatos, terminaram por iluminar, de forma decisiva, nos rumos tomados pelos acontecimentos. Perspectiva complexa que encontramos em outro pensador liberal, Alexis de Tocqueville (1805-1859). A respeito dessa vivência complexa por parte de Locke, frisa Laslett: “(…) Ele sentia a necessidade de amadurecer particularmente como filósofo, antes de ser publicado, e sentia-se, ao mesmo tempo, ansioso por publicar livros e temeroso de ser publicado. No período final de sua vida, Locke superou esse medo e, ao perceber que os escritos que publicava alcançavam sucesso, passou a publicar mais. A crítica sempre o perturbou profundamente, sendo por certo esta uma das razões para sua recusa a reconhecer livros que sabia serem controversos. O efeito de todo esse quadro foi levá-lo a publicar, tardiamente, seus escritos e entrar para a História apenas na velhice, mas não se tratava apenas de uma questão de acumular experiências e, sobretudo, isso não foi deliberado” [Laslett, 1998:54-55].

O que terminou acontecendo, de fato, foi que a obra de Locke agiu como uma espécie de raison d´État para uma revolução que culminou na deposição do Ancien Régime e sua substituição por um novo modelo. A Convenção do Parlamento, que traçava o futuro constitucional da Inglaterra, fez a Declaração de Direitos que estabeleceu a Monarquia Constitucional, em 12 de Fevereiro de 1688. Nessa data, Guilherme III de Orange (1650-1702) e Maria II (1662-1694) foram convidados a ocupar o trono como Monarcas Constitucionais. Locke tinha a esperança de que os Dois tratados fossem suficientes “(…) para consolidar o trono de nosso grande restaurador, o atual rei Guilherme; para confirmar seu título no do Consentimento do Povo (…) e justificar perante o mundo o povo da Inglaterra, cujo amor por seus direitos justos e naturais e determinação em preservá-los salvou a Nação, quando esta se encontrava na iminência da escravidão e da ruína (…)” [Locke, 1998: 197-198].

*Artigo publicado no site do autor.

 

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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