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Eu não acredito mais no Estado Laico

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Foi um pouco difícil admitir, devo confessar, mas depois de pensar, refletir e ponderar consideravelmente sobre o fenômeno da religião, ou da religiosidade, da fé, da crença em si, e também na ordem social, na cosmovisão humana, no jogo político, no poder, nas noções de sagrado e de profano; por fim, cheguei até a conclusão-mor: é impossível dissociar a religião do poder político, do poderio jurídico, da constituição das leis.

Voltando no tempo, ou melhor: retornando às sociedades mais “primitivas” (no caso, até grupos sociais que mais se assemelhariam aos nossos antepassados), vemos o seguinte: existe o xamã, o pajé, o curandeiro, o mago, o feiticeiro, o adivinho, etc., etc., etc., ao lado de quem? Do chefe.

O líder religioso sempre esteve no lugar do conselheiro, no mínimo, na política humana. Em todas as formas de governo, da tribal até a democrática, o religioso se manteve, deu sua influência e guinou o poder.

Sendo mais recente, eis a pergunta: você se separa da religião? A resposta, claro, é um sonoro não. Ninguém se separou, sequer, do paganismo greco-romano no Ocidente, aliás, e nem mesmo daquele que existia no paleolítico. Qualquer estudo simples ou complexo sobre a História das Religiões verá que, na realidade, vivemos em círculos de ritos ritmados por concepções de sagrado com uma origem na pré-história. Um simples feriado, por exemplo, ou uma data comemorativa, como um aniversário, tem uma conotação ritual comemorativa, normalmente lúdica.

Esses ritos de passagem, que funcionam em ciclos complementares, têm sua ascendência de concepções de nascimento, morte e renascimento, imaginados por tribais de dezenas de milênios atrás, da observação do cosmo em suas voltas, e da captação de padrões climáticos no ano, interpretando, como crê F. M. Cornford (1874-1943), de forma antropomorfizada o que ocorria em sua volta, dando qualidades humanas para o mundo.

Estas intenções úteis ou danosas, estas forças invisíveis que possibilitam ou frustram a ação, são elementos fragmentários da personalidade. Elas constituem a matéria-prima a partir da qual o homem, quando começou a refletir, construiu o mundo sobrenatural. Na religião romana encontramos incontáveis numina – poderes cujo conteúdo total se expressa por meio de nomes abstratos, os nomina: Jânua não é um deus totalmente pessoal que preside as entradas aos lugares, mas apenas o espírito da ‘entrada’, concebido como força presente em todas as portas, que pode ajudar ou prejudicar quem passa por elas. Existe uma escala dessesnumina elementares, que vai de espíritos até a um deus completamente antropomórfico, como os deuses de Homero[1].

O autor, sobre o caso, ainda vai mais longe: “A suposição de que coisas úteis ou danosas possuem vontade de ajudar ou prejudicar é feita de maneira tão irrefletida pela criança que chuta a porta que lhe prendeu o dedo quanto pelo homem que xinga seu taco de golfe por não ter acertado a bola. Se esse homem fosse lógico, rezaria para seus tacos de golfe antes de começar uma partida, ou murmuraria algum encantamento para fazê-los acertar sempre. Pois esses elementos projetados da personalidade são os próprios objetos da arte mágica[2].

O que Cornford argumentou, essa antropomorfização natural do que existem em nossa volta, é inerente ao Homem. Não adianta ser “ateu”, “agnóstico”. Se você bater sua cabeça em um poste, irá xingá-lo, se você achar várias notas de 100, no meio da rua, irá dizer algo positivo para elas, ou melhor: talvez para a situação. “Situações” não têm persona, não existem como entes, sequer como entes pensantes. São apenas um arranjo de axiomas que sustentam um cosmo aparentemente caótico, mas que se acomoda segundo Leis Universais (como o Princípio da Unidade, o Princípio da Veracidade, o Princípio da Existência, etc.), isto é,não faz nenhum sentido xingar ou elogiar uma situação; de fato, um romano pagão seria mais lógico – como o adulto ilógico, pois não murmura para seus tacos de golfe, no exemplo de Cornford –  ao antropomorfizar a sorte na figura da deusa Fortuna.

Enfim, esse elemento que é o combustível para as crenças “mágicas”, e, portanto, para as religiosas, mitológicas que, no fundo, cria o esquema de cosmovisão dos povos, seus sistemas de valor, suas explicações para o funcionamento e a origem do Mundo. A atualidade contemporânea não escapa, de maneira alguma, dessa influência.

É impossível, consequentemente, deixar a religião de lado. Nós automaticamente antropomorfizamos tudo ao nosso redor, e de modo não-proposital, o que dá, para qualquer um, a base de toda a religião. Embora, é claro, isso não nos torne necessariamente pagãos, é importantíssimo notar que a égide da crença religiosa nunca saiu de nossos seres, e, logo, de nossa sociedade.

Concepções de sagrado, por exemplo, são eminentemente religiosas. A vida, para nosso mundo contemporâneo, é algo sacro, assim como os ditos “direitos humanos”. Ao defender esses pretensos direitos, usa-se da paixão, do sentimento, da razão, para apontar a necessidade de existir, em ato, um código de direitos universal, para todas as pessoas no globo, não importando a cultura ou a História de cada povo. A crença nesses direitos, o dever de defendê-los, demonstra um fervor colossal em algo de valor, em algo sagrado. Apoiar os “direitos humanos” chega a ser uma virtude, para muitas pessoas.

O que seria isso, se não um tipo de religião? Uma espécie de religiosidade? Quem violar os Direitos Humanos, aliás, se torna um vilão, digno de Tiamat, Yam, Mot ou do principal anjo caído, Lúcifer.

Muito se engana quem crê num caráter unívoco das religiões, das fés. Religião não é um sacerdote em um templo pregando para os féis, tampouco é a crença em divindades, ou qualquer coisa sobrenatural. “Sobrenatural”, além do mais, é um conceito ocidental, criado por uma civilização que sabe diferencial o material do espiritual; a diferenciação do que é da natureza e o que está além da natureza não existe em diversas culturas. Antes do materialismo, do cristianismo ou até mesmo antes de Tales de Mileto, sequer a objetificação da “Natureza” existia; havia uma confusão (no sentindo original do termo ‘confundir’) entre o que hoje se entende por “natural” e “miraculoso”. Acontecimentos climáticos, por exemplo, eram sinônimos da ação dos espíritos, dos deuses, etc. Em muitos locais do mundo atual, essa confusão ainda existe e predomina. Religião não é a “crença no sobrenatural”, mas sim na crença no sagrado, já que o próprio conceito de sobrenatural não acompanha necessariamente o fenômeno religioso.

O confucionismo e o budismo, por exemplo, não acreditam necessariamente na existência de deuses; templos não têm a mesma função e a mesma conotação em todas as religiões do mundo, assim como “espíritos” (ou almas) sequer existem para outras crenças; o sacerdócio pode se comportar de modo absurdamente distinto de uma religião para outra. O tratamento para com as divindades, por exemplo, é extremamente diferente no cristianismo, se for comparado ao paganismo romano. Se uma prece geral não fosse atendida, a população romana costumava quebrar seus ídolos, invadir seus próprios templos, insultando os deuses – nem mesmo o todo-poderoso Júpiter escapava dessas depredações –; já no cristianismo, nada semelhante a isso ocorre com Deus, que não se comporta como um Deus pagão, mas sim como uma divindade suprema, máxima em todos os aspectos, incondicionado (YHWH: “Eu Sou aquele que É”, literalmente, quando Deus se apresenta à Moisés) e sem dependências de qualquer espécie.

“Demônios”, para os babilônicos, simplesmente formaram o mundo, apesar de sua maldade. Tiamat, morta mor Marduk, tem o seu cadáver como o formador da Terra, e a humanidade é criada pelo sangue de Kingu, o segundo esposo de Tiamat. Ambos eram demônios, tanto o monstro Kingu, como o dragão Tiamat, mas eram as sementes da vida na mente de um babilônio.

Então religião não é apenas uma Igreja que tem uma ortodoxia (a própria existência da ortodoxia sequer existe em muitas religiões), um livro sagrado, um sacerdote que cuida da espiritualidade do povo… Uma religião pode existir sem isso tudo, sendo apenas um amálgama cultural e histórico de como um povo vê o mundo. Uma noção de sacro, no bojo de um movimento global, com diretrizes e agências na ONU, secretarias e ministérios em vários países, para tratar dos Direitos Humanos, por exemplo, se assemelha a um tipo de movimento religioso não-organizado, sem uma centralização ou uma instituição uniforme para agir, mas que quer exportar sua visão de sagrado com o peso das leis, de tratados internacionais, com um grande aparelho burocrático e com influências econômicas grandiosas.

Mircea Eliade (1907-1986) define o Sagrado e o Profano, da seguinte forma: “Pode-se medir o precipício que separa as duas modalidades de experiência – sagrada e profana – lendo-se as descrições concernentes ao espaço sagrado e à construção ritual da morada humana, ou às diversas experiências religiosas do Tempo, ou às relações do homem religioso com a Natureza e o mundo dos utensílios, ou à consagração da própria vida humana, à sacralidade de que podem ser carregadas suas funções vitais (alimentação, sexualidade, trabalho etc.). Bastará lembrar no que se tornaram, para o homem moderno e a religioso, a cidade ou a casa, a Natureza, os utensílios ou o trabalho, para perceber claramente tudo o que o distingue de um homem pertencente às sociedades arcaicas ou mesmo de um camponês da Europa cristã. Para a consciência moderna, um ato fisiológico – a alimentação, a sexualidade etc. – não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda o envolva (que impõe, por exemplo, certas regras para “comer convenientemente” ou que interdiz um comportamento sexual que a moral social reprova). Mas para o “primitivo” um tal ato nunca é simplesmente fisiológico; é, ou pode tornar-se, uni “sacramento”, quer dizer, uma comunhão com o sagrado[3].

Para complementar o raciocínio: “(…) o homem a-religioso no estado puro é um fenômeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. A maioria dos ‘semreligião’ ainda se comporta religiosamente, embora não esteja consciente do fato. Não se trata somente da massa das “superstições” ou dos “tabus” do homem moderno, que têm todos uma estrutura e uma origem mágico-religiosas. O homem moderno que se sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados. Conforme mencionamos, os festejos que acompanham o Ano Novo ou a instalação numa casa nova apresentam, ainda que laicizada, a estrutura de um ritual de renovação. Constata-se o mesmo fenômeno por ocasião das festas e dos júbilos que acompanham um casamento ou o nascimento de uma criança, a obtenção de um novo emprego ou uma ascensão social etc.

Poder-se-ia escrever uma obra inteira sobre os mitos do homem moderno, sobre as mitologias camufladas nos espetáculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta “fábrica de sonhos”, retoma e utiliza inúmeros motivos míticos: a luta entre o Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as figuras e imagens exemplares (a ‘Donzela’, o ‘Herói’, a paisagem paradisíaca, o ‘Inferno’ etc.).

Até a leitura comporta uma função mitológica – não somente porque substitui a narração dos mitos nas sociedades arcaicas e a literatura oral, viva ainda nas comunidades rurais da Europa, mas sobretudo porque, graças à leitura, o homem moderno consegue obter uma “saída do Tempo” comparável à efetuada pelos mitos. Quer se “mate” o tempo com um romance policial, ou se penetre num universo temporal alheio representado por qualquer romance, a leitura projeta o homem moderno para fora de seu tempo pessoal e o integra a outros ritmos, fazendo-o viver numa outra ‘história’.

A grande maioria dos “sem religião” não está, propriamente falando, livre dos comportamentos religiosos, das teologias e mitologias. Estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível[4].

Eliade aponta uma diferença, mas também uma continuidade do sagrado e do profano. Não existem indivíduos absolutamente profanos, assim como não existem aqueles que veem todo seu cosmo como algo absolutamente sagrado. Crer que, num abandono legal da religião na lei, a mesma não influenciará na política é algo surreal, impossível de acontecer.

Existe outra conexão inexorável entre a sociedade, mesmo aquelas que perdem cada vez mais a fé no cristianismo, e a religião tradicional. Quais serão os parâmetros de moralidade, civilidade, certo e errado, de um código legal qualquer, em tempos contemporâneos? O parâmetro é o cristianismo, é a Bíblia.

Mesmo quando um indivíduo se torna ateu, e daqueles bem rançosos para com a fé religiosa, ele não deixa de exercer uma parte do cristianismo em sua vida. Quase vinte séculos de teologia influenciam diretamente em nossas concepções de pudor, sexo, casamento, governo, caridade, igualdade. Sem um desenvolvimento teológico de um Santo Agostinho, por exemplo, nossas concepções de bem e mal seriam consideravelmente diferentes; apenas esta contribuição, de um santo do ocaso da Antiguidade, já interfere absurdamente como um corpo jurídico e legislativo será composto, em suas regras e noções de decência, ética e como lidariam com os diversos casos com que necessitam lidar, por suas profissões.

Um ateu do século XXI é bem mais cristão do que acredita. Vejamos: ateus, muitas vezes, para não serem confundidos com pessoas más (por não acreditarem em Deus) necessitam afirmar seu humanismo, mostrar seus atos de caridade… tudo o que um cristão faria, tudo criado pela religião cristã. O que é o humanismo, senão um filho do catolicismo medieval? Basta ler ou pesquisar a obra de Jean de Joinville (1224-1317) para constatar isso, quando ele descreve a vida do rei São Luís IX. O humanismo de raiz cristã, de fato, valoriza o Homem por este ser “Imagem e Semelhança de Deus”, por ele ser a mais proeminente e mais amada criatura do Universo, tendo um valor em sua existência per si; já um humanismo sem Deus, necessita fixar um valor na humanidade, na mesma intensidade que no cristianismo, para se justificar, não cair num turbilhão de imoralidade, por conta da amoralidade do ateísmo.

Um povo desprendido de sua fé pela força da lei, das instituições, não pode ser um povo que realmente exerça alguma força democrática. O Estado pode se dizer laico, mas aquilo que o legitima, o sustenta e o dá força não é: a sociedade. Nenhuma sociedade é laica.

Se um Estado se coloca contra uma força tradicional da religião, numa sociedade, ele se impõe intervindo e maculando a sociedade, já que a laicização social não ocorre. Tirar um projeto de lei, só por este ser cristão, por exemplo, é tudo o que um regime democrático não poderia tolerar.

O que se entendia por Estado laico, no nascimento deste conceito, era justamente um Estado Religioso, mas em que o poder e a influência da religião seriam colocados de baixo para cima, emanados do povo para a política, e não o oposto. Se assim não fosse, então não existiriam termos como “Deus” nas primeiras constituições laicas, nos monumentos, nas moedas, a figura da Bíblia, Jesus Cristo e dos Santos em locais e edifícios públicos. Os criadores do Estado laico antigo não queriam a falta de interferência e influência religiosa no poder político; queriam justamente a existência dela, mas numa ordem onde o povo fosse favorecido, por sua religião tradicional e majoritária.

Eu não acredito mais no Estado laico. Minha descrença atual se deve à atual militância pelo que seria esse “Estado laico”, que evidentemente minaria a opinião da maioria do povo, impediria pautas caras à população, anularia nossa moral, corromperia nossas noções de certo e errado, além de praticamente proibir que a religião dos próprios governantes influencie na governabilidade.

O Estado Laico é uma divindade que não existe, ou melhor: parece Tiamat, morta por conta de seus abusos, deposta por Marduk e, ainda como um demônio, dá forma para um corpo estatal – mas isso apenas como alegoria. Tiamat, assim como o Estado Laico, não existe.

[1] CORNFORD, Francis Macdonald. Antes e Depois de Sócrates. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13.

[2] Idem, p. 14.

[3] ELIADE, Mircea, O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. 3ª ed., São Paulo: WMF Martinsfontes, 2013, p. 19-20.

[4] Idem, p. 166-167.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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