Entre virtudes e defeitos: uma tréplica a Antônio Carlos
Meus últimos textos para o Instituto Liberal abordaram uma característica do conservadorismo que poderia ser danosa e, enfim, um defeito que impediria algum real progresso dentro da sociedade, em algumas situações. Nos textos, afirmei que o conservadorismo preza pela prudência no âmbito político e social e que, por conta desse apreço, existe certa lentidão para algumas mudanças drásticas. Muitas vezes tradições e instituições altamente importantes e queridas pela sociedade são mazelas para o próprio cerne do Homem, como a escravidão; contudo, outros exemplos poderiam caber nessa constatação: o infanticídio, por exemplo, já foi largamente realizado em todos os continentes habitados do planeta, tendo sido considerado uma prática tradicional, normal e justa, para muitas culturas.
Em minha argumentação, preferi utilizar o contexto da escravidão brasileira e tomei por base o romance de Josué Montello, Os Sabores de São Luís, para exemplificar como o cativeiro e o racismo são males intoleráveis e, na lenteza proposta pelo conservadorismo, por mais que tais mazelas sejam mitigadas com o tempo, o mal, a dor, o sangue, a humilhação ainda permanecem, sendo alongados por essa mesma vagarosidade conservadora – malgrado a obra de Montello seja uma ficção histórica, ela não deixa de ter os elementos reais da escravidão brasileira. O autor fez uma ampla pesquisa sobre o Maranhão imperial e sobre sua capital, sua economia escravocrata, sua cultura e até mesmo sobre processos na justiça, envolvendo escravos ou negros livres abusados ou mortos por seus senhores ou patrões.
Ao lado da obra de Montello, porém, citei duas figuras históricas que usavam de argumentos conservadores para defender a escravidão e, dentro delas – mesmo que de modo brevíssimo – citei a figura de José de Alencar. Ao ler essa crítica, Antônio Carlos, escritor do site Politz, tentou rebater meus textos escrevendo sobre a Virtude do Conservadorismo, onde aponta os acertos históricos dos conservadores, seja no Brasil ou no exterior, nos últimos séculos.
Carlos afirma que, muitas vezes, o conservadorismo foi uma verdadeira ponta de lança para certas reformas. O caso de José de Alencar é o que mais o prende, pois este foi expressamente contra o escravismo em seu trabalho político: “Alencar é, com certa frequência, erroneamente apontado como “defensor” da manutenção da escravidão; na verdade ele era favorável à abolição, mas de início, defendia realmente que a mesma ocorresse “gradualmente”. Essa defesa se devia, em parte, aos possíveis impactos da abolição para a agricultura, a economia do país e mesmo na vida do escravo após o fim da escravidão. Para Alencar, esse processo mais lento iria proporcionar o tempo necessário para a transição entre o trabalho servil e o trabalho livre. Esse modo de pensar de fato gerou diversas interpretações sobre o seu real posicionamento em relação aos escravos”.
O trecho acima é suficiente para entender a grande parte da crítica feita por Antônio Carlos. Em meu texto, ao afirmar que Alencar defendia a escravidão com argumentos conservadores, basicamente, eu disse a mesma coisa apontada – com bem mais refinamento, por conta da apresentação das fontes – por Antônio Carlos; mas a diferença é na proporção e no modo por que encaro a defesa da escravidão; pois cito Alencar brevemente, somente como um exemplo do mundo real, “longe” do romance de Montello e do drama de Damião. Se coloquei José de Alencar em meu texto, o fiz apenas como um lembrete de que, na História, um problema de fato ocorreu: discursos conservadores já deram sobrevida ao sofrimento.
O principal problema no texto de Carlos, aqui, é não considerar que a lerdeza do processo de abolição não fez mais do que prolongar o sofrimento dos escravos. O que Alencar fez ao defender, nem que fosse de início, uma abolição gradual foi, na prática, confirmar o direito de escravizar, ainda que tal direito tivesse data de validade, para Alencar. As leis que libertavam escravos velhos, basicamente, apenas deram uma justificativa legal para senhores os jogarem na rua, depois que a idade os incapacitava. O “Ventre-Livre”, uma lei que, afinal, impunha um limite para a existência do cativeiro, no fundo, apenas prendia os filhos de escravos aos seus donos até certa idade e, depois, dava a possibilidade de serem separados de suas famílias e expulsos da senzala que consideravam como um lar.
O gradualismo no caso da abolição brasileira foi, no mínimo, motivo para mais sofrimento. A mentalidade política conservadora não tem uma resposta adequada quando as Instituições e Tradições ferem o âmago humano dessa forma. O exemplo do regime escravocrata brasileiro é apenas um. Poderia imaginar uma sociedade que tem uma cultura a favor do aborto, por exemplo. Uma política conservadora iria propor uma mudança lenta em defesa da vida, mas essa lentidão, afinal, não iria apenas causar mais mortes?
Ser prudente, prezando por uma mudança cultural, nos valores, para depois proibir efetivamente o aborto, nessas ocasiões, não é uma solução que possa consertar um problema tão grande de modo adequado. Se demorassem cinquenta anos ou mais para que o aborto fosse proibido, quantos milhões de pessoas já não teriam sido mortas por suas próprias mães?
O conservadorismo não tem respostas para tudo. Burke não criou um manual político, tampouco uma ideologia que solapasse tudo ao redor. Seu “método” para evitar o caos se baseia em um sistema de valores e virtudes que respeita as condições sociais e a Natureza Humana das mudanças, porém a mesma proposta de mudança e reforma que respeita o passado pode ser a mesma que conserva algo de errado desse passado.
Como escrevi, “se nós conservamos um ambiente criminoso e letal, estamos apenas coadunando, às vezes comungando, com o mal, com o horror da escravidão e a sujeira do racismo”. E, antes, ao citar o exemplo do racismo existente em São Luís: “Todo o sofrimento que Damião passou, seja na escravidão ou por conta do racismo, se deve a sistemas e instituições tão enraizadas na sociedade que são ao mesmo tempo frutos e geradores de mentalidades genuinamente opressivas. Não há resposta burkeana que possa satisfatoriamente solucionar tais problemas. Resolver lentamente males como esses é basicamente permitir que o sofrimento continue por mais tempo, é deixar que o mal tenha uma sobrevida, ou uma vida inteira mais alongada.
Porém, há outro problema, que chega a ser mais terrível do que a falha da solução conservadora: os padres tinham razão! Gerar todo esse caos para ter um padre negro, malgrado todo bem que isso poderia causar para os negros livres ou escravos da cidade, iria desgastar a Igreja Maranhense a tal ponto que o estrago causado poderia limitar, ou simplesmente tornar impossíveis quaisquer progressos futuros gerados pelo clero em relação ao racismo”.
Esta é a centralidade do meu texto que Antônio Carlos não captou, em sua réplica. Meu texto é claro, em seu final, em que o conservadorismo de Burke não pode (e, embora não tenha dito isso no texto, também é verdade: isto é algo a que Burke nem se propõe) ter uma solução final para o procedimento onde todas as mudanças sociais poderão ser efetuadas sem problemas. O homem e sua imperfeição não permitem que isso ocorra.
O real defeito do conservadorismo, nesse caso, é um defeito existencial. Faz parte de o Homem estar mergulhado em um caos sem solução. Nesta semana, pelo Burke Instituto, saiu mais um texto de minha autoria tratando desse problema, onde afirmo: “Mas a prudência, bem como o demasiado zelo pelo passado, podem ser problemáticos. Se a lei X tem trezentos anos de existência, essa duração considerável pelo tempo é, por si só, uma garantia para validar essa lei? O conservador sabe muito bem que não, mas o mesmo conservador, por ser conservador, tem uma linha guia que pode incliná-lo a defender uma lei por seu passado, pelo fato de ela ter capilaridade na sociedade e como esse passado interage com o presente.
De certo que não é um problema necessariamente decorrente em todos os casos, com todos os conservadores, porém, é uma possibilidade, para além daquela apresentada dentro dos meus textos no Instituto Liberal. O conservadorismo consegue ser elástico para a inovação e, claro, ao se tratar de indivíduos conservadores podemos ter respostas variadas, podendo, ou não, serem mais ou menos inclinadas para a preservação do passado. A cegueira que pode ser produzida pelo princípio de conservação tem sua relatividade, o que não exclui sua existência”.
Por fim, o que quero enfatizar é: se há tradições maléficas, mesmo que o conservadorismo as combata, essas tradições ainda poderão ter uma sobrevida, ou mesmo algum tipo de longa extensão, dentro de um quadro de mudanças conservadoras. Mazelas que afetam a Natureza do Homem, que negam sua liberdade, sua vida, etc., podem ter capilaridade social e um histórico que as confirme em uma tradição importantíssima para as dinâmicas sociais e para a cultura de algum povo, no entanto, isso não justifica a conservação ou a mudança lenta de tais crimes e problemas. Estamos em um beco sem saída, nesses casos. A mudança abrupta, temida por Burke, gerará o caos, mas a reforma gradual apenas confirmará o sofrimento por mais tempo. O que fazer? Não há o que fazer. Burke não tem uma resposta perfeita, pois ela não existe.