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“A Corrupção da Inteligência”: brilhante documento de uma época sombria

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A maneira mais honesta de iniciar uma apreciação crítica da obra de estreia do antropólogo Flávio Gordon, A Corrupção da Inteligência: Intelectuais e Poder no Brasil, vinda à luz pela editora Record, é constatar que não houve exagero algum na empolgada recepção que recebeu. Não fazemos mais do que expressar a realidade ao dizer que é um documento brilhantemente organizado sobre tempos sombrios, autêntico registro de uma época. É uma tentativa corajosa de trazer alguma ordem a um caos destrutivo.

Sentimo-nos tentados a dizer, se nos permitirem a intromissão em texto que aborda outro livro, que nosso próprio recente lançamento, o Guia Bibliográfico da Nova Direita: 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro, poderia perfeitamente, caso tivesse surgido um pouco mais tarde, ter incluído um ensaio a respeito da obra de Gordon em sua parte final. No Guia, procuramos apresentar marcos de ideias que perfazem um processo contemporâneo de reação contra anos de uma hegemonia ideológica. Entre as causas de sua erupção, mencionamos justamente o ponto de saturação a que chegou a atmosfera política e cultural criada por essa hegemonia. Mas como essa hegemonia foi possível? Quem a estabeleceu? Com base em quê? Dificilmente alguém achará respostas melhores e mais completas que as oferecidas por Gordon nesse tesouro de sua lavra.

O autor divide seus capítulos em duas grandes partes: A vida na província e 1968: o ano que nunca termina. Poderia também ter dito o seguinte: a primeira se debruça principalmente sobre a missão de explicar “o que aconteceu” – ou mais adequado seria dizer “o que diabos aconteceu” para que elevássemos ao posto máximo da nação uma presidente que faz saudação à mandioca e à “mulher sapiens”, para que se levasse a sério uma “super doutora” e “filósofa” da USP que odeia a classe média ou para que se aplaudisse um esdrúxulo linguista que sustenta ser um “preconceito linguístico” desfraldar o aprendizado da norma culta. A segunda denuncia, sem pudores, “quem fez” – a geração de culpados, aqueles que “abriram a porteira” para as “desconstruções” e “contestações de tudo que aí está”, geração essa que se tornou, particularmente no Brasil, o “sistema”, o “mainstream” que ainda alega estar combatendo.

Gordon se propõe a traçar um quadro da chamada Nova República, todo esse período que se segue ao colapso do regime militar, sob a perspectiva do imaginário, da dimensão intelecto-cultural que o alicerça e define. Justamente, a seu ver, trata-se de uma “comunidade imaginada” elaborada “em relação ao período anterior, o regime militar, este sombrio ‘Antigo Regime’ identificado como grande obstáculo aos novos tempos que, enfim, chegavam com sua esplendorosa luminosidade”. Com efeito, era essa a narrativa quando Ulysses Guimarães ergueu triunfante aquele documento obeso chamado Constituição de 1988 – quando a maioria não supunha o que estava por vir.

Na prática, o que ocorreu, para Gordon sobretudo nos últimos 25 anos, foi a disputa “entre duas forças políticas renascidas diretamente da derrota da intelligentsia de esquerda para os militares”: o PSBD e o PT – “girondinos e jacobinos, mencheviques e bolcheviques, ‘inimigos-irmãos’”. Isso é precisamente aquilo a que chamamos “hegemonia”, mas ela não seria o que é caso se limitasse à disputa partidária e eleitoral. A dimensão intelectual e cultural, mais do que um mero pano de fundo, é o que viabiliza tal dominação, justificando e embasando as narrativas e a percepção “espiritual” da realidade – a “imaginação”, como diria Babbitt – que a tornaram tão enraizada e viabilizaram as insanidades recentes. Resta entender os mecanismos pelos quais isso se produziu, nobre tarefa que Gordon aceitou.

A resposta primordial é a de que a “inteligência” precisou ser corrompida e anestesiada para que fosse possível sequer conceber a envergadura cognitiva e moral das figuras que passaram a ditar o conteúdo destinado ao público das televisões, as bibliografias e retóricas do ambiente universitário ou mesmo os discursos presidenciais. “Inteligência”, para Gordon, é a própria “capacidade de inteligir”, de pensar, de conectar ideias para construir um pensamento, capacidade essa pervertida por uma patrulha ideológica dedicada a tornar a linguagem e a gritaria “identitária” mais poderosas que a concretude do real. Contudo, também é, talvez com ainda mais pertinência, uma “classe” dentro da sociedade, aquela que se investe do poder de “moldar o imaginário coletivo, impor narrativas e definir os termos do debate público”, responsável em larga medida pela ascensão e manutenção, por mais de uma década, do lulopetismo no poder.

Gordon até gostaria de não ter de chamá-los de “intelectuais”, em uma acepção essencial e genuína do termo, mas entende que são esses sujeitos, controlando como sumo-sacerdotes os ditames do “bem e do belo”, ainda que por vezes “desconstruindo” (sic) esses próprios conceitos em si mesmos, que, impondo-se como “classes falantes” em todas as esferas de expressão simbólica e cultural nas sociedades contemporâneas de massa, criam a atmosfera capaz de reter o poder nas mãos das mediocridades mais autoritárias. Contra tamanho poder, nada se pode fazer sem recorrer à firmeza nas palavras e batalhar pela reconexão com a concretude do real; com uma ponta de crítica aos colegas da academia que se acostumaram a se limitar a uma troca de paparicos, Gordon explicita não ter medo de assim agir.

Dois autores expressivos da esquerda, descendentes e renovadores do legado marxista, podem ser ressaltados da obra de Gordon como mentores de todo o cenário de degradação. O primeiro deles é o italiano Antônio Gramsci, justamente quem concebeu a necessidade de obter a “hegemonia” nas esferas intelectuais e simbólicas, definindo o conceito de “intelectual” que Gordon algo a contragosto se obriga a empregar, antes de assumir o “controle” – isto é, o avanço efetivo dos marxistas sobre as instituições, alcançado, na teoria clássica, pela revolução violenta do proletariado. É de Gramsci a ideia do “intelectual orgânico”, “produto direto das classes e de sua posição respectiva no modo de produção”, como agentes do grande “Partido” com o propósito crucial de substituir o que seria, a seu ver, a “hegemonia capitalista” pela “hegemonia comunista”. O método gramsciano é, assumidamente, perseguir a criação de “novas crenças populares, isto é, de um novo senso comum e, portanto, de uma nova cultura e de uma nova filosofia, que se enraízem na consciência popular com a mesma solidez e imperatividade das crenças tradicionais”. Não se trata mais de pegar em armas e derrubar o capitalismo; se trata de proliferar escritores, funkeiros, artistas, professores dedicados apenas a torpedear o legado “ocidental, cristão, machista e homofóbico” e preparar as bases imaginativas de um mundo novo.

Toda a vida intelectual e cultural deve ser politizada; o projeto gramsciano é um projeto totalitário voltado à eliminação de toda a divergência. Um Olavo de Carvalho é, por exemplo, um boçal truculento, por se mostrar anticomunista; se uma Valesca Popozuda ou, como menciona Gordon em seu livro, um MC Brown, se tornarem símbolos do “empoderamento” ou defensores da “justiça social” preconizada pelos partidos que encampam a plataforma gramsciana, então serão considerados “grandes intelectuais contemporâneos”, à revelia de suas autênticas contribuições ao saber humano. Ou você está com eles, ou contra eles. Se estiver contra eles, representa o atraso a ser eliminado e não pode ser um intelectual genuíno.

“A tese central de Gramsci pode ser resumida à afirmação de uma relação inexorável entre cultura e poder”, sintetiza Gordon. “Uma vez aceita a premissa de que a cultura trai sempre, e necessariamente, um projeto de poder – não há arte ou ciência ‘neutras’, como costumam alegar os gramscianos –, a completa politização da vida cultural, conquanto feita em nome da ‘classe proletária’, estará justificada”. Foi exatamente a regra que passou a valer no Brasil. Em um passeio que começa nos anos 60, Flávio descreve toda a história da penetração das ideias de Gramsci por aqui, fazendo menção ao próprio Fernando Henrique Cardoso como um de seus divulgadores pioneiros, mas foi principalmente com o PT que o Gramscismo estabeleceu seu autêntico império no país, congregando todos aqueles “intelectuais orgânicos” de que falava o italiano em torno da defesa de um projeto de poder com pretensões de perpetuação – defesa que ainda hoje justifica o injustificável e enxerga virtudes nos maiores absurdos.

Gordon ressalta que tais intelectuais se condenaram ao “provincianismo temporal”; alheios propositadamente a todo o patrimônio humano, ao tesouro do passado, construíram o “rebaixamento da cultura e da imaginação moral”, pertencendo a uma geração “demasiado corporativista e autocentrada, que, adotando um critério exclusivamente político-ideológico de afinidades e repulsas, tendo, além disso, um período histórico traumático como bode expiatório sobre o qual lançar todos os seus malogros e frustrações, cobriu anões culturais de glórias e honrarias, ao mesmo tempo que relegava ao ostracismo verdadeiros gigantes das letras e das artes”.

Descrevendo a própria experiência de, na juventude, ter sido, como iniciante no mundo acadêmico, uma das crédulas vítimas a mergulhar nas armadilhas dessa hegemonia, Flávio ilustra sua explanação teórica com o espanto pela simples constatação de haver quem não se ruborize por se dizer “de direita” e delineia a difícil experiência, vivida por muitos grandes homens do século passado, de rompimento com a atmosfera totalitária dos movimentos comunistas. Aliás, esse é um dos maiores méritos de seu grande livro: uma invejável capacidade de ilustrar. Gordon explicita seu diagnóstico terrível com fatos e “causos” muito competentemente compilados, que permitem rir do ridículo, ao mesmo tempo em que se lamenta a profundidade do abismo.

“A maior parte dos intelectuais da geração 1968”, aqueles que tinham certeza de que mudariam o mundo, “deixou de ser comunista apenas nominalmente”, abraçando o “marxismo ocidental”, uma associação entre Gramsci e a Escola de Frankfurt, que tem por “expressão mais visível nos meios de comunicação de massa” o “multiculturalismo politicamente correto”.  É nesse contexto que brilha, como grande expoente frankfurtiano, Herbert Marcuse, o segundo nome de esquerda que gostaríamos de destacar da análise de Gordon. Ele seria “o maior responsável pela guinada ‘freudiana’ – voltada às pulsões e à psique individual – da crítica marxista”. Com Marcuse, baseado em teorias freudianas, o hedonismo se torna regra e cabe à civilização despir-se de qualquer contenção à busca animalesca dos prazeres.

As teses marcusianas da “revolução sexual” se alastraram no Brasil no período que os fundadores da Nova República e a sua “intelectualidade” enxergam como “a era sombria dos generais”, ou seja, entre os anos 60 e 70. Junto ao Gramscismo, elas explicam muito do comportamento grotesco e primitivo que vemos hoje, tanto nas militâncias estudantis e protestos de “movimentos sociais” e “coletivos”, quanto na retórica de “especialistas” convidados por programas da grande imprensa televisiva nacional.

Unida às teorias de divisão da sociedade em “classes” calcadas em uma retórica identitária de “minorias” e “vítimas”, a sexualidade se torna o grande tema do debate público, alimentando as formas mais doentias de feminismo, as perversões mais bizarras da ideologia de gênero e a recente transformação de uma mostra “artística” em que um homem nu é tocado por uma criança em nobre manifestação de protesto contra a tirania do “patriarcado” e da “sociedade conservadora”.

Mais do que traçar esse diagnóstico, Gordon estuda ainda dois temas históricos muito relevantes antes de concluir seu trabalho. Um deles é a atuação dos soviéticos e da KGB no Brasil e na dinâmica política da Guerra Fria, propositadamente ocultada pelos “intelectuais gramscianos”. O outro é a responsabilidade dos próprios militares do famigerado regime nisso tudo; longe de santificá-los ou inocentá-los, o autor traz à tona dados inequívocos do crescimento de todo esse discurso da esquerda contemporânea durante o período de vigência do seu sistema de exceção, sem o que a erupção do que seria a essência da Nova República talvez não se desse como se deu.

Ele analisa meticulosamente um importante guru do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva, um antiliberal, porém crítico do AI-5, defensor da tese de que o Brasil não prescinde de ciclos de centralização ou fechamento e ciclos de abertura, tendo sido o cérebro por trás da estratégia, que deveria ser aplaudida pelos gramscianos, de “entregar a cultura para as forças de esquerda, como técnica de descompressão do poder político”. Gordon define o regime militar como caracterizado “pela hipertrofia do poder executivo, que, pretendendo pairar tecnocraticamente acima das disputas ideológicas, restringiu a participação política e se afirmou como representante direto e verdadeiro da ‘nação’”, calcando-se no “fetiche positivista da técnica e da ciência”.

O título da conclusão do livro, tratando mais diretamente do impacto de toda essa atmosfera no cotidiano das universidades brasileiras e do seu isolamento em relação ao universo simbólico e imaginário do povo em geral, é tão inusitado quanto sugestivo: O homem que arrastava tijolos com o pênis, a mulher-cachorro e outras histórias fabulosas da universidade brasileira. É preferível nada dizer em específico sobre o significado dessas expressões curiosas para não estragar a surpresa e o assombro do leitor.

Sim, assombro; porque o efeito que o livro de Flávio Gordon precisa ter sobre os leitores mais desavisados é fazê-los recobrar a capacidade de se espantarem. As cenas debiloides e tragicômicas que presenciamos na atual quadra histórica precisam ser vistas sob o ângulo do patético de que se revestem – mas um patético extraordinariamente perigoso. É uma pestilenta e perseverante metamorfose do mal, que se adaptou às demandas dos novos tempos para aplicar com impressionante sucesso um dos mais nefastos assaltos à civilização já empreendidos.

Sucesso, mas não a vitória final. A Corrupção da Inteligência é a prova da força da resistência. É prova de que as melhores conquistas do simples bom senso ainda se podem fazer ouvir, e de que nós os venceremos pelo cansaço geral com seu matraqueio vão, porque, ao fim e ao cabo, não são mais que uns chatos de galocha.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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