Como Mises analisaria o conflito entre Israel e Hamas?
Ludwig von Mises, que foi um grande crítico do socialismo como modelo econômico, escreveu em 1927 o livro Liberalismo segundo a tradição clássica para explicar como funcionaria uma sociedade liberal baseada nas ideias do liberalismo clássico. Ele defendia a liberdade econômica como base para a liberdade individual. Escreveu esse livro alguns anos após ter escrito sobre como o socialismo fracassaria. A obra busca resgatar a doutrina clássica com uma linguagem mais moderna para a época de forma a fortalecer sua defesa de uma sociedade livre.
Marx, por outro lado, elaborou sua obra com base na crítica ao capitalismo, mas, ao contrário de Mises, não explicou como funcionaria uma sociedade comunista. Sua obra não apresentou mecanismos de fixação de preço pelo mercado, o que já tornaria o socialismo economicamente inviável. Por mais que o programa político liberal, que teve sua origem na Inglaterra e foi aplicado inicialmente também nos Estados Unidos, tenha proporcionado grandes desenvolvimentos econômicos, Mises entendia que não havia atingido o ápice e nunca se permitiu que o liberalismo fluísse totalmente.
Para mostrar como funcionaria uma sociedade que adotasse o liberalismo por completo, ele inicia conceituando o termo, apresenta seus objetivos e sua relação direta com o capitalismo. O autor é bem objetivo ao dizer que o liberalismo se trata de uma doutrina voltada para a conduta do homem neste mundo, ou seja, o foco aqui é o progresso do bem-estar material exterior do homem. Não há uma abordagem sobre necessidades interiores, espirituais e metafísicas e, tampouco, promete felicidade. Destaca também seu caráter racional, pelo qual o liberalismo é também criticado. Com esse entendimento inicial, o autor nos propõe discutir as questões sociais por meio de argumentos racionais. Ele acredita que as razões pelas quais existem posicionamentos antiliberais não são baseadas em argumentos racionais, mas em inveja e ressentimento. Essa característica é marcante principalmente no socialismo, que Mises utiliza ao longo do texto como contraponto às suas ideias.
Como a proposta do liberalismo é baseada em bem-estar material, a tese do autor é apresentada baseada no sistema econômico da sociedade. Assim, no primeiro capítulo, são apresentados todos os fundamentos da política econômica liberal. Aqui, mesmo que não tenhamos tido contato anterior com ideias liberais, são estabelecidas as bases conceituais necessárias para nos dar a ideia do como seria a visão de um liberal na posição de governante. Fica claro porque propriedade, liberdade e paz são pilares para a elaboração de toda a doutrina liberal. A partir daí é importante que todos os homens recebam tratamento igual perante a lei para que possam ser livres e usufruir dos frutos do seu trabalho e para que a paz social seja mantida. Além dessa questão da igualdade, Mises fala sobre a desigualdade de riquezas e de renda, tema muito abordado nas críticas ao liberalismo. Ele utiliza a ideia de distribuição de renda do socialismo para mostrar a diferença entre os dois pensamentos. Faz essas comparações para mostrar as diferenças entres as visões de mundo e como o liberalismo não questiona a necessidade da máquina do estado, do sistema jurídico e do governo. Pelo contrário, afirma que, para o liberal, o Estado, por meio da democracia, deve ter como principal missão proteger a propriedade privada e garantir a paz para que os benefícios da propriedade privada possam ser colhidos.
Com os fundamentos estabelecidos, o próximo capítulo apresenta como seria uma política econômica liberal. Seriam concebíveis algumas formas de organização da economia em uma sociedade baseada na divisão do trabalho. As principais delas são o capitalismo, que é o sistema da propriedade privada dos meios de produção; o socialismo ou comunismo, que seria o sistema de propriedade pública dos meios de produção; e, por fim, o sistema intervencionista. O autor então busca, por meio de fatos históricos e argumentos lógicos, provar que o socialismo é impraticável e que o capitalismo é o único sistema possível de organização social. O intervencionismo seria a tentativa de um meio termo entre os dois sistemas.
Na sequência, temos a visão da política externa liberal, que deixa clara a posição do autor de que é uma política de perspectiva mundial. Portanto, política interna e externa têm o mesmo objetivo, que é a paz. A divisão internacional do trabalho com livre comércio e liberdade de movimento é o argumento decisivo do liberalismo contra qualquer guerra. Essas ideias entram em conflito com as propostas de nacionalismo, imperialismo e políticas coloniais. Se um país se retirar da divisão internacional do trabalho, a consequência seria a queda considerável de bem-estar, padrão de vida é nível cultural de seu povo.
Por fim, Mises acredita que as ideias liberais perderam força pois seus idealizadores não foram capazes de se fortalecer politicamente como fizeram os antiliberais. Foram muito otimistas acreditando que racionalmente as ideias liberais seriam adotadas de forma natural por todos. Não vê outra saída a não ser disseminar essas ideias na sociedade para que possa adotá-las e exigi-las de seus governantes. A grande dificuldade é que um partido a favor do liberalismo luta contra privilégios e os demais representam o interesse de uma classe específica, que está buscando manter ou aumentar seus privilégios.
As propostas apresentadas por Mises de como funcionaria uma sociedade mundial que adotasse as ideais liberais nos dão a visão de um mundo com mais liberdade a todos. Além de imaginar um progresso econômico geral, nos traz reflexões sobre a separação de Estado e iniciativa privada em campos como educação, religião e cultura. Quando ele escreveu esse livro, foi após a primeira grande guerra mundial e ele acreditava que a Liga das Nações deveria intermediar a paz, que é fundamental para o livre comércio, mas que ela não estava constituída de forma a representar o ideal liberal de Estado Supranacional. Atualmente estamos vendo que a Organização das Nações Unidas, que sucedeu a Liga das Nações após a Segunda Guerra Mundial, também não é capaz de exercer esse papel. Segundo Misses, é impossível formar uma instituição supranacional capaz de assegurar paz duradoura, sob o princípio de que os limites tradicionais, historicamente determinados, de cada país devam ser tratados como fixos e inalteráveis.
O conflito atual entre Israel e o grupo terrorista Hamas mostra que o problema não é, no entanto, de forma alguma, uma questão de organização ou técnica de governo internacional. A formação do território onde estão judeus e palestinos acontece de vários movimentos étnicos desde 2000 a.c. até a partilha da ONU com a criação do Estado de Israel em 1948. Israel aceitou essa partilha, mas os países árabes e os palestinos não, o que deu início a guerras que mudaram várias vezes as delimitações de territórios. Logo após a guerra de independência, Israel ampliou o território definido na partilha original para um novo desenho feito por armistício assinado ao fim da guerra por Egito e Jordânia. Em 1967 ocorreu uma segunda grande guerra, conhecida como a guerra dos 6 dias. Novamente, Israel foi vitorioso e conquistou territórios. A ONU, em nova tentativa de mediar a paz, elaborou uma resolução em que Israel devolveria territórios conquistados em troca do reconhecimento da existência de seu Estado, da segurança de suas fronteiras e da garantia da paz. Árabes e palestinos mais uma vez recusaram. Em 1973, acontece a guerra do Yom Kippur, um conflito militar entre uma coalizão de estados árabes, liderada por Egito e Síria, contra Israel. Dessa vez, as Nações Unidas conseguiram intermediar um cessar-fogo vinte dias depois.
Esse exemplo de conflito no Oriente Médio demonstra que, como dito por Mises, é fundamental que todo o mundo tenha um mesmo modo de pensar para que os acordos de paz sejam válidos na prática. No seu ideal, esse modo de pensar seria a aceitação incondicional e irrestrita do liberalismo. O pensamento liberal deveria permear todas as nações e suas instituições políticas para que as causas das guerras sejam eliminadas. O que vemos atualmente é justamente o contrário: as nações estão aumentando protecionismo, barreiras à migração, educação compulsória e doutrinação ideológica, intervencionismo e estatismo. Como resultado, novos conflitos e guerras declaradas estão surgindo como o conflito entre Azerbaijão e Armênia e a guerra entre Rússia e Ucrânia.
Ludwig Heinrich Edler von Mises foi um notável economista e filósofo que nasceu na região da atual Ucrânia e teve pais judeus. Foi membro da Escola Austríaca de pensamento econômico. Tornou-se uma das maiores referências na defesa do liberalismo a ponto de ser criado o Instituto Mises em 1982.
*Thiago Cristo, formado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Brasília (UnB), é Gerente de Projetos Profissional pelo Project Management Institute (PMI), com carreira desenvolvida em empresas de grande porte no segmento de telecomunicações e TI.