Caso Silvio Almeida: crise no identitarismo – Parte 1

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Se este colunista fosse afeito à lógica politicamente correta de que em hipótese nenhuma se pode “duvidar da palavra da vítima” (e tratar por vítima, não suposta, mas de fato, já é por si só referendar a culpa e condenar por antecipação o suposto perpetrador), sobretudo se ela (ou elas, neste caso), for uma mulher, ou, se estivesse disposto a usar a arma de seus criadores contra eles mesmos, teria que tratar o agora ex-ministro como um indubitável assediador. Como não é esse meu feitio e creio que todos têm o direito de se defender, concederei a ele o benefício da dúvida.

Contudo, até o momento, o cenário não parece nada favorável a Almeida. Não nego que múltiplas denúncias são, teoricamente, passíveis de ser coordenadas ou mesmo combinadas com fins de destruir a imagem de alguém, mas não é isso o que geralmente ocorre em casos assim. Quando há uma denúncia isolada de assédio ou abuso sexual, naturalmente a chance de que seja uma denúncia falsa ou caluniosa é muito maior do que quando várias supostas vítimas passam a denunciar a mesma pessoa. Muitas vezes, basta a denúncia de uma pessoa para que outras se sintam encorajadas. A ONG Me Too recebeu quatro denúncias contra Silvio Almeida, sendo que uma das denunciantes teria sido a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco. Todos os casos teriam ocorrido em 2023. Pouco após o escândalo estourar, Isabel Rodrigues, candidata a vereadora pelo PSB na cidade de Santo André, veio a público e relatou também ter sido vítima de assédio por Almeida em 2019; o assédio, nesse caso, teria sido muito semelhante ao que teria sofrido Anielle: em ambos os casos, Almeida teria se sentando ao lado das vítimas e as tocado de forma íntima. Uma ex-aluna da Universidade de São Judas Tadeu disse à revista Intercept que, em 2009, também sofreu assédio do ex-ministro: Almeida, que havia sido seu professor por dois anos no curso de direito e integrava a banca responsável por avaliar sua monografia de conclusão de curso, teria ligado para ela diversas vezes a convidando para sair para “conversar sobre” o “tema”, pois não queria que ela fosse “prejudicada”. Conforme estudantes da mesma universidade ouvidos pela coluna de Matheus Leitão na Veja, ao menos entre os anos de 2007 a 2012, ele “oferecia notas melhores se as estudantes tivessem encontros com ele”, o que teria ocorrido mesmo com alunas que corriam risco de reprovar nas disciplinas por ele ministradas. Almeida também foi acusado de assédio moral por antigos servidores do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

O primeiro ponto a se notar é o dilema cruel que o caso impõe a identitaristas de forma global. Se fiéis à ética identitária, que, como vimos, afasta a presunção de inocência em crimes contra as mulheres, não deveriam hesitar em seus típicos linchamentos morais contra o perpetrador. Ocorre que o acusado aqui não apenas é um homem negro, mas Silvio Almeida, o principal nome do movimento negro brasileiro atual, o artífice e principal divulgador da tese do racismo estrutural, tida como principal cânone do identitarismo negro, o grande símbolo da chamada “luta antirracista”. Não é de surpreender que tantos estejam em silêncio. O medo que a militância tem de se posicionar aqui, aliás, parece ser o próprio desiderato da estratégia/narrativa adotada por Almeida desde o princípio: ele seria vítima de “racismo”.

Tão logo as denúncias repercutiram na imprensa, Almeida negou as acusações e sinalizou uma motivação racial na denúncia: “De acordo com movimentos recentes, fica evidente que há uma campanha para afetar a minha imagem enquanto homem negro em posição de destaque no Poder Público, mas estas não terão sucesso”. Na mesma toada, o Instituto Luiz Gama, fundado por Almeida, soltou uma nota em suas redes sociais afirmando que “Muitas pessoas mesquinhas e racistas não querem um ministro negro. Infelizmente, há pessoas negras que também não querem, gente que há muito tempo trama contra ele e reclama que está sendo ofuscada por ele”. A própria esposa de Almeida, Ednéia Carvalho, por meio de postagens compartilhadas em suas redes sociais, expressou que o marido estaria sendo vítima de “mentiras, ressentimento e racismo”. Já o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania emitiu nota na noite de quinta (05/09) quando as notícias vieram a público (Almeida ainda era o titular da pasta), acusando uma possível retaliação da ONG Me Too, após ser frustrada em uma tentativa de interferir na licitação do Disque 100. Interessante que a nota não mencionava o racismo como motivação. No momento em que escrevo este artigo, a referida nota não se encontrava mais disponível na página do MDCH.

A acusação de racismo tem implicações inelutáveis, ainda que até o momento ignoradas pelos próprios defensores do ex-ministro. Uma das denunciantes teria sido Anielle Franco, personagem fundamental para a queda de Almeida, que teria confirmado o assédio a ministros. Em nota lançada na sexta-feira (06/09), ela não cita Almeida textualmente, mas pede que respeitem seu espaço e privacidade, bem como diz que contribuirá “com as apurações, sempre que acionada”. Anielle não apenas é a ministra da Igualdade Racial como é negra, de modo que a primeira implicação inelutável da tese de Almeida estar sendo vítima de um complô com inspiração racista é que tal estratagema teria participação da titular de uma pasta temática dedicada ao combate ao racismo, bem como ele seria vítima de racismo por parte de uma mulher negra. Esta, é claro, é uma implicação inadmissível para grande parte da militância identitária que supõe que o racismo parte sempre do branco, direcionado ao negro.

O racismo segundo o próprio Almeida, seria uma “relação de poder”, no caso, uma relação historicamente estabelecida, de modo que o racismo só poderia ocorrer em um sentido unilateral, partindo daquele que detém o poder na relação para aquele sobre quem o poder é exercido, ou, em termos identitários (e como sempre, reducionistas), do branco sobre o negro. Quando alguém se propõe a contradizer essa lógica, logo empunham o espantalho do “racismo reverso”. Segundo Almeida, “grupos raciais minoritários podem até ser preconceituosos ou praticar discriminação, mas não podem impor desvantagens sociais a membros de outros grupos majoritários, seja direta, seja indiretamente”, donde não faria sentido falar em racismo reverso. Realmente, não faz, pois o racismo não é fenômeno unilateral para poder ser “invertido”; racismo é racismo, não importando pretensas relações de poder, mas sigamos.

Recordemos que, em seu livro, Almeida não apresenta o racismo estrutural apenas como uma entre outras tantas opções entre tipos de racismo. Ele afirma com todas as letras que o racismo é sempre estrutural. Posto isso, para a tese de que o ex-ministro esteja sendo sido vítima de racismo ficar de pé, seria necessário que os artífices da sua derrocada estivessem em posição de impor a ele, um ministro de Estado, desvantagens sociais. Ignoremos que, para além das denúncias do Me Too, outras supostas vítimas também denunciaram à imprensa ter sofrido assédio e nos atentemos à denunciante mais célebre: Anielle Franco. Teria ela uma relação de poder sobre Almeida? Não tenho dúvidas de que, fosse ela branca, ainda que mulher, muitos estariam afirmando justamente isso, ignorando que até o início do ano o ministério chefiado por ela não gozava de autonomia orçamentária e dependia (no período quando o assédio teria tido ocasião, inclusive) justamente do ministério comandando por Almeida. Se há um complô contra Silvio, esse complô teria necessariamente de contar com a participação de Anielle, e, se se argumenta que a motivação seria, ao menos em parte, racial, então temos que uma pessoa negra estaria cometendo racismo contra uma pessoa negra, algo logicamente inadmissível na tese do racismo estrutural, que comportaria no máximo dizer que ela estaria “reproduzindo o racismo internalizado” ou algo do gênero.

A coisa fica ainda mais complicada se considerarmos que — seguindo fiéis ao modo de pensar identitário — não apenas não haveria uma relação de poder, pois ambos, na condição de negros, estariam no mesmo patamar de desvantagem, mas que a desvantagem dela, duplicada por ser mulher, além de negra, seria maior. Depreendemos isso das próprias palavras de Almeida: “A força da eleição ou o reconhecimento intelectual de um homem negro e, especialmente, de uma mulher negra, não podem ser subestimados quando se trata de uma realidade dominada pelo racismo e pelo sexismo”. O “especialmente, de uma mulher negra” só pode significar que pelo sexo, além da raça, ela se encontra mais desfavorecida em relação ao homem negro.

Segue-se que, para manter a narrativa de que as denúncias de assédio contra Almeida são produto do racismo, é preciso violar a própria teoria do racismo estrutural. Ainda que se argumentasse que Anielle, vivendo em uma “sociedade racista”, teria, mesmo enquanto mulher negra, o racismo internalizado e, portanto, a disposição de prejudicar outra pessoa negra, por ela não estar em condição de impor “desvantagens sociais” a um homem, ainda que negro, estando, pelo contrário, no catálogo de vitimização identitário em uma posição mais desfavorável (mulher + negra), ela não poderia cometer racismo contra ele. O preço a pagar por se insistir nessa narrativa é admitir que é possível haver racismo independente de uma relação de poder, isto é, que mesmo uma pessoa não tendo condições de impor desvantagens sociais a outra, ela ainda assim poderia cometer racismo. Isso seria admitir, por exemplo, que é possível que um negro cometa racismo contra um branco, conclusão que destrona a teoria do racismo estrutural e é uma blasfêmia a qualquer ouvido identitário.

Bem se vê que a hipótese de racismo na derrocada de Almeida é uma estratégia suicida. Uma melhor estratégia parece ser deixar de lado a questão racial e tratar tudo como uma querela por poder ou influência — como sinalizado na nota inicial divulgada pelo MDCH. Como vimos, nessa nota, acusava-se a ONG Me Too de tentar interferir na licitação do Disque 100, inferindo-se que as denúncias contra o ministro divulgadas pela ONG seriam uma farsa e fariam parte de uma estratégia para desestabilizá-lo. Essa linha de defesa, se, por um lado, parece servir em partes (implicaa aceitação do óbvio ululante de que pessoas negras podem sofrer e até mesmo ser vítimas de artimanhas sem que o racismo seja a motivação) às hostes do identitarismo negro, traz consequências inelutáveis para o identitarismo feminista.

A ONG é uma espécie de sucursal brasileira do chamado movimento Me Too, em que celebridades usam a hashtag #MeToo para denunciar abusos sofridos. Um dos casos mais célebres foram as denúncias de assédio contra o produtor Harvey Weinstein, que, no momento, está cumprindo pena por estupro; após uma postagem inicial da atriz americana Alyssa Milano acusando-o de assédio sexual, seguiram-se mais de oitenta denúncias contra o produtor de Hollywood. O movimento tem, desde então, grande importância para as hostes feministas.

Consideremos, por um momento, que a ONG tenha produzido denúncias falsas contra Almeida por nada mais nada menos do que poder. Tal complô iria requerer uma estratégia combinada de todos os denunciantes, incluindo Anielle. Já quanto aos que relataram assédio depois, como ex-alunos e uma professora, das três, uma: ou fariam parte da conspiração e estão mentindo, ou não fazem parte do complô, mas, por alguma razão, decidiram mentir, ou os conspiradores deram sorte de, após forjarem denúncias, descobrirem que o alvo era de fato assediador.

Sendo verdadeira a conspiração, isso significaria que a versão brasileira daquele que certamente é o acontecimento mais relevante do movimento feminista recente se valeria das próprias denúncias para objetivos tão escusos quanto interferir em licitações públicas e derrubar ministros de Estado que não aquiescessem com seus objetivos. É fácil imaginar o impacto que um escândalo de denúncias forjadas para interferir na esfera pública teria. Quem levaria a sério uma ONG e, por extensão, um movimento sem escrúpulos de chegar a algo tão vil? Não revelaria isso um grande desrespeito pelas vítimas verdadeiras que confiam ou já confiaram no movimento? Não iria tal tática criminosa, ao prostituir a denúncia de assédio, desencorajar outras vítimas de virem a público relatar o que sofreram, bem como não daria um componente a mais para a descredibilização de suas histórias, caso o fizessem?

Para além das possíveis consequências para as vítimas, vislumbremos também as de natureza política. Tal conspiração teria ao menos uma aliada no seio do governo Lula 3, o mais identitário da história do país, envolvendo diretamente um ministério temático e identitário comandado por ela. Seria a comprovação fática e indubitável de que essas questões podem servir como uma desculpa pela busca do poder pessoal e que até mesmo personalidades notórias da militância identitária não viveriam conforme suas retóricas.

Temos, portanto, um choque potencial entre o identitarismo negro e o identitarismo feminista. Não seria, aliás, a primeira vez, e a verdade é que o identitarismo é recheado de oportunidades para cisão, a despeito de tentativas de combinar correntes com conflitos dormentes, como o feminismo e a ideologia queer.

Pode-se tentar ainda uma terceira alternativa, que é admitir a culpa de Silvio Almeida, salvaguardando o feminismo, mas tentando ainda conservar a legitimidade de sua teoria, com um argumento de separação de autor e obra. Bom, como já vimos, tal estratégia dependeria, em último caso, de uma confissão do próprio Almeida e o abandono da carapuça racial, pois a tese de que ele foi vítima de racismo se choca com sua própria teoria. Contudo, creio que nem mesmo assim sua teoria permaneceria incólume.

A tese do racismo estrutural é o Silvio Almeida e ele é a tese. Não que veja grande mérito na teoria, tão reducionista e simplista quanto eloquentemente apresentada, bem como sujeita a contradições imediatas. Se essa tese se tornou lugar-comum a ponto de diversos setores da opinião pública a repetirem como uma verdade absoluta, isso tem mais a ver com a permeabilidade destes setores (intelectual, jornalístico, acadêmico, artístico) ao identitarismo e ao prestígio que Almeida conseguiu angariar perante esse público do que ao fato de ter sido “comprovada” como a explicação para o racismo no Brasil — aliás, é um fetiche acadêmico essa ideia de que teorias sociais são passíveis de comprovação científica, tais como as obtidas pelas ciências biológicas ou exatas, por exemplo. Partindo-se do fato de o apelo da tese estar assentado na “autoridade” de Almeida, é pouco crível que ela não sofreria abalos se ele confessasse ou se restassem provados os assédios a ele imputados, sobretudo após ter negado desde o primeiro momento.

No que concerne às denúncias, não faço aqui juízo de valor de nada, como disse desde o princípio. O que me interessa aqui são os fatos e as consequências deles derivadas, e é um fato que há diferentes narrativas e diferentes correntes identitárias em rota de colisão neste momento.

(Continua…)

Fontes:

https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/ministro-dos-direitos-humanos-silvio-almeida-e-acusado-de-assediar-mulheres-entre-elas-a-ministra-da-igualdade-racial-anielle-francohttps://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/silvio-almeida-mao-anielle-reuniao

https://www.poder360.com.br/poder-governo/candidata-a-vereadora-diz-ter-sido-abusada-por-silvio-almeida-em-2019/

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/ministro-silvio-almeida-e-acusado-de-assedio-sexual-e-moral/

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/silvio-almeida-veja-a-cronologia-da-crise-que-derrubou-ministro/

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/ministerio-me-too-tentou-interferir-licitacao-disque-100/

https://crusoe.com.br/diario/ministerio-de-almeida-poe-em-duvida-intencoes-da-me-too/

https://www.gov.br/mdh/acl_users/credentials_cookie_auth/require_login?came_from=https%3A//www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2024/setembro/nota-de-esclarecimento-sobre-tentativa-de-interferencia-da-me-too-na-nova-licitacao-do-disque-100

https://www.terra.com.br/nos/esposa-de-silvio-almeida-diz-que-denuncias-sao-absurdas-e-as-atribui-ao-racismo,62cf1d8369b3d8aff0e5d5f92ce3cb42hyln9hdk.html

https://www.poder360.com.br/poder-flash/leia-a-integra-nota-de-anielle-franco-sobre-casos-de-abuso-sexual/

https://www.intercept.com.br/2024/09/10/ex-aluna-silvio-almeida-relata-ter-sido-assediada-banca-de-monografia/

https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/estudantes-de-direito-relataram-assedio-de-silvio-almeida-a-colegas

https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/um-detalhe-que-pode-mudar-os-rumos-do-inquerito-de-silvio-almeida

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cwyjzjvyx1go

https://istoe.com.br/harvey-weinstein-esta-fora-de-perigo-apos-cirurgia-no-coracao-2/

Racismo Estrutural — Silvio Almeida

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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