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Carlos Lacerda e a Constituinte de 46: um capítulo esquecido da História

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Na Tribuna da Imprensa: Crônicas sobre a Constituinte de 1946, publicado em 2000 na editora Nova Fronteira, com organização do mestre em Ciência Política Sérgio Soares Braga, reúne os textos do então “apenas” jornalista Carlos Lacerda na coluna que adquiriu no jornal Correio da Manhã, no intervalo entre fevereiro e setembro de 1946, sobre a Assembleia Constituinte que produziria a Constituição do Brasil a viger no período conhecido como República Nova ou República Populista. É um documento precioso que resgata um capítulo vastamente esquecido, não apenas da vida do grande tribuno anticomunista, como da história das lutas por liberdade contra o autoritarismo no país.

A vida fascinante de Carlos Lacerda, que nunca fiz segredo de admirar profundamente, pode ser melhor compreendida se a dividirmos em fases. Há um  Lacerda jovem, ativo particularmente nos anos 30, que defende o comunismo e sofre um traumático rompimento com a extrema esquerda; um Lacerda nos anos 40, que enfatiza uma identificação com ideias que vão vagamente de um socialismo trabalhista ao estilo britânico ao “liberalismo moderno” dos EUA, mas que já volta seus torpedos contra o comunismo e o varguismo; um Lacerda entre os anos 50 e 60, que cada vez mais sustenta ideias que hoje seriam consideradas liberais e conservadoras, com uma identificação mais declarada com a democracia cristã alemã e o ordoliberalismo; e, finalmente, um Lacerda em queda, destruído pelo regime militar, que tenta reagir a ele com a Frente Ampla e já está com sua carreira política virtualmente encerrada.

Nas crônicas que este livro reúne, encontramos o que classificaríamos como o segundo Lacerda. Os autores que ele cita, apesar de já admirar Winston Churchill, estão mais na linha de um John Dewey (liberal “de esquerda” que defendia a igualdade de oportunidades) e um Harold Laski que na dos autores que costumamos referenciar de maneira mais entusiasmada. Parece-nos que estava então, em termos do liberalismo brasileiro na República, mais para o social-liberal Merquior que para um Roberto Campos. Porém, vivenciando o alvorecer da União Democrática Nacional, partido que nasceu como uma grande frente contra as forças egressas da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, no campo brasileiro, esse Lacerda na casa dos trinta anos já faz verdadeiras elegias às figuras clássicas da fundação da legenda, como Octavio Mangabeira, orador reconhecido e então presidente da UDN, e Armando de Sales Oliveira, que tentou enfrentar o Integralismo e o Varguismo na eleição abortada de 1937 pelo seu protótipo, a breve União Democrática Brasileira (UDB). Também já é um entusiasta de Rui Barbosa, que seria uma de suas maiores referências pelo resto da vida.

O relato cruento e satiricamente irresistível das linhas lacerdistas, usando e abusando de apelidos, invectivas pungentes, acusações e analogias das mais criativas, sugere ao leitor o impacto profundo que sua habilidade deve ter provocado para inspirar as forças mais liberais que existiam no Brasil àquele momento. Os artigos, geralmente demonstrando explícito desagrado, mostram que Lacerda experimentou alguma esperança no meio do caminho da Constituinte, para ao final consolidar aquilo que, já em gestação, se tornou a linha mestra da sua atuação política, ganhando corpo dentro da UDN.

Acertadamente Sérgio Braga, em sua pequena Introdução, destaca desta linha-mestra, que nasceu aqui e acompanhou Lacerda adiante: o “combate ao comunismo”, que já vinha desde as polêmicas críticas ao presidenciável do PCB Iedo Fiúza, só se intensificando ao longo do ano de 46 com suas investidas contra Luiz Carlos Prestes e sua bancada de extrema esquerda (muito embora tenha sido contrário à proibição da legenda); “a crítica ferrenha ao getulismo e a denúncia da permanência da máquina política getulista-estado-novista e de seus prepostos no contexto da ‘redemocratização’”; a censura aos “setores udenistas que buscavam uma aproximação” com o governo Dutra e, em consequência, aos setores “chapa branca” da UDN que aliviavam a oposição aos mandatários dos outros partidos; e, finalmente, e isto iria com Lacerda até a morte, “a necessidade de arregimentação e organização da opinião pública para a formação de um partido político que visasse à consolidação das instituições democráticas no país”, em vez da aposta no populismo ou na tecnocracia.

Lacerda denuncia nas crônicas persistentemente a prevalência das forças do PSD e do PTB, em particular do Queremismo (isto é, dos desejosos da manutenção dos poderes de Vargas), sempre tergiversando, retardando o império da lei, procurando manter contradições e limitações que favorecessem a máquina herdada do Estado Novo, configurada na legislação eleitoral e na cultura política da qual o próprio presidente Dutra, golpista de 37, não se teria despido. O jornalista inclui a menção alarmante, nas últimas crônicas, a documentos e artigos públicos que demonstram uma perseguição à sua livre atividade profissional e até uma tentativa de sequestro, o que o motivou a comprar um revólver. Destemidamente, desafia os perseguidores a atacarem-no no local de trabalho e em sua casa, e ao próprio Getúlio Vargas a fazer pessoalmente “o que manda fazer por intermédio de terceiros”. Apenas uma entre tantas coisas que nunca leríamos nos jornais politicamente corretos de hoje – em tempos que, lamentamos dizer, não são nem um pouco mais pacíficos.

De Vargas, que já havia rasgado mais de uma Constituição, ele diz ainda: “Para que jurar fidelidade à Constituição? Senta simplesmente numa cadeira qualquer. Senta – e fica. Para que jurar? Quem acredita no teu juramento, se nem tu mesmo poderás levar-te a sério? Nem mesmo os mortos se levantam à tua passagem. Eles te veem passar e sorriem, os mortos, os queridos mortos, e te dizem: ‘Vem. O teu reinado ainda não acabou. Enquanto houver neste país um ingênuo e um canalha, ambos baterão palmas ao senador gaúcho Getúlio Dornelles Vargas”.

Do ponto de vista propositivo, já defendia Lacerda a “descentralização” e que o Estado não exerça “mais do que o estritamente necessário”. Já combatia a “hipertrofia burocrática a que se atinge pela fórmula clássica do socialismo de Estado”;  já pregava que “a fonte da vida social” é, “continua a ser” e “há de ser cada vez mais” o “indivíduo”; já dizia que não cabe sustentar “um sistema”, “uma panaceia”, “uma fórmula miraculosa ou demoníaca como aquelas que levam a ganhar fatalmente no jogo, ou induzem à morbidez do fanatismo político”, sendo a única fórmula “a convicção de que a democracia não é um fim, mas um meio, não é um ponto de chegada e sim um de partida como um processo incessante, dia a dia renovado, aperfeiçoado, verificado na vida profunda das instituições”.

O que mais se destacava de sua pregação era, entretanto, que a única maneira de fazer frente efetiva ao autoritarismo e arcaísmo clientelista da máquina de propaganda e de organização viciada da ditadura estadonovista era a criação de um espírito democrático genuíno, instigado por um trabalho educativo da UDN para soerguer o povo brasileiro. Seria, por outra, instigar o espírito público para que houvesse efetivamente partidos no Brasil, a começar pela UDN, e não simplesmente órgãos da elite varguista que revestiam de cor ideológica uma máquina sem alma. Essa linha mestra vai permanecer nos anos que se seguem, como se percebe em livros como Discursos Parlamentares, que já acompanha Lacerda na fase clássica de parlamentar nos anos 50.

Vale a pena ler as crônicas de Lacerda, independentemente de se concordar ou não com suas teses, não apenas porque ele era um escritor político absolutamente genial, de fazer inveja a qualquer contemporâneo, mas porque registra, ponto por ponto, as turbulentas batalhas políticas que procuraram estabelecer para o Brasil qual seria seu rumo no pós-guerra, quando se enfrentaram os inimigos da ditadura Vargas, os herdeiros do seu espólio e os comunistas, prontos a apoiar os segundos quando o Komintern julgava conveniente. Encerramos com estas palavras da última crônica do livro, escritas quando Lacerda viajava:

Deixai ainda que vos diga, vendo de longe a pátria e o povo, que ainda existe para nós, homens e mulheres de uma Nação debruçada sobre o seu destino como um Narciso precocemente envelhecido, uma possibilidade de salvação. Façamos, os homens de boa vontade, em todas as categorias e profissões, um quadrado de resistência. Tratemos de munir-nos de todas as nossas armas, cada qual com as suas; convoquemos as consciências, acordemos os sonâmbulos, consolemos os agonizantes, inclinemo-nos à cabeceira dos enfermos – e preparemos os que surgem, confiemos nestes, deixemos para eles um exemplo de inconformismo, de resistência inexpugnável, através do qual se possa sentir, hoje ou algum dia, que não desesperamos. Há que existir nos subterrâneos uma esperança de reabilitação nacional. Dediquemo-nos inteiramente, com uma confiança insolente, à objurgatória, à imprecação, ao grito, ao guincho, ao uivo, ao berro, quando a palavra serena, a exortação, o conselho, a advertência leal já não bastarem. E, até o último tiro, resistamos. Pois na resistência até a morte está o segredo da ressurreição”.

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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