“Assistolia” de uma sociedade livre

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No início, era o arbítrio sob o manto de defesa da sociedade contra pretensas ameaças golpistas que jamais se concretizavam em uma tomada das ruas por grupo militares ou paramilitares. No combate a figuras apontadas como inimigas da democracia, garantias individuais previstas na Constituição eram afastadas por togados de cúpula, em particular por um deles, autoproclamado “defensor” da ordem democrática, e obstinado em levar a cabo sua missão de aniquilar todos os disseminadores de “ódio e desinformação”, seja lá o que isso signifique. Em sua cruzada “pacificadora”, tudo era permitido ao supremo dos supremos: vídeos midiáticos com seus detentos sob ameaça de fuzis, condenações de donas de casa a longas penas sem evidências delitivas, encarceramento de oponentes por meses a fio, sem denúncia formal, e até a redução de seus réus à insolvência perpétua, mediante a imposição de multas impagáveis. De uma semana para cá, no entanto, sua permissividade exterminadora passou a mirar serezinhos ínfimos, que ainda nem puderam ver a luz.

Em recente decisão nos autos de uma ação de inconstitucionalidade do PSOL, o togado em questão derrubou, via despacho monocrático, a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que vedava a técnica conhecida como assistolia fetal, dificultando o aborto, em caso de estupro, após a 22ª semana de gestação. A assistolia, prática proibida há tempos pelo Conselho de Medicina Veterinária devido à sua notória crueldade, consiste na aplicação de uma injeção de cloreto de potássio no coração de fetos com mais de 22 semanas, induzindo parada cardíaca, após instantes de dor aguda, em seres já dotados de viabilidade extrauterina.

A sigla esquerdista, sem apoio popular ou consenso legislativo para emplacar a descriminalização do aborto entre nós, decidiu submeter a pauta ao crivo do Judiciário. Tamanha a obsessão psolista em implementar a espinha dorsal de seus delírios progressistas que seu choramingo foi apresentado ao poder não-eleito por uma dupla de ações, em instâncias diferentes. Não satisfeito em subsidiar ação civil pública proposta, perante a justiça gaúcha, pelo Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) contra o CFM, o PSOL, ao lado dessas mesmas entidades, também foi bater às portas do Supremo. Duas medidas envolvendo basicamente as mesmas partes, sob os mesmos fundamentos, e ambas voltadas ao mesmo propósito de derrubar a resolução do Conselho, não deveriam correr em paralelo, sob pena de risco de decisões conflitantes e de geração de enorme insegurança jurídica. Porém, no Brasil dos togados sem freios, não foi bem isso que presenciamos.

No Rio Grande do Sul, uma magistrada de primeira instância, embora tivesse reconhecido a inadequação da ação civil pública ao caso e feito referência à medida pendente no STF, concedeu aos esquerdistas uma liminar para a suspensão da resolução. Em recurso do CFM, outro juiz gaúcho, dessa vez, um desembargador, proferiu liminar para cassar a decisão da togada de instância inferior e para manter em vigor a norma do Conselho. Uma autêntica guerra de liminares, que não teria razão de ser em um litígio como esse, de cunho puramente técnico, onde as deliberações judiciais só poderiam ter sido tomadas após a consulta a todas as partes e, em particular, aos peritos médicos. Ora, o que togados (operadores do direito) entendem de sofrimento fetal e dos riscos de procedimentos abortivos para a vida das gestantes?

Mais grotesco ainda foi o rumo tomado pelo assunto na suprema corte, que, em tese, deveria ser composta pelos juristas mais preparados em sua área de atuação, e, devido à senioridade exigida pelo cargo, também por pessoas mais sábias, e, por isso, avessas a precipitações, e humildes diante da relevância do conhecimento alheio. Tudo muito em tese mesmo, caro leitor, pois vivemos no país cuja realidade perversa faz o mundo do “dever ser” parecer uma utopia.

Eis que, em plena vigência da liminar favorável à resolução do CFM, o supremo dos supremos resolve canetar, tornar letra morta a decisão do desembargador gaúcho em outra medida, e acolher o pedido dos psolistas, sob as alegações de que a proibição da assistolia fetal, nos casos de gestação decorrente de estupro, ensejaria “embaraços preocupantes para a saúde das mulheres” e seria atentatória ao princípio constitucional da dignidade humana. Contudo, a tal ação de inconstitucionalidade do PSOL sequer poderia ter sido admitida para julgamento, pois a controvérsia nem mesmo envolve matéria constitucional, passível de exame por parte de uma corte dita constitucional. Se, de um lado, os psolistas enxergam uma suposta dignidade feminina a ser viabilizada pelo aborto, por outro, omitem a dignidade de um ser em fase final de concepção, já capaz de vida autônoma na hipótese de uma antecipação de parto. Assim, enxergar uma falsa dicotomia entre a dignidade/saúde de uma mulher e a de um ser pronto, por ela mesma gestado, demonstra profundo menosprezo ao surgimento da vida de cada um de nós.

Frise-se que, bem longe da tese sustentada por esse togado magno, a norma do CFM não implicou revogação do dispositivo do Código Penal que autoriza a prática abortiva após estupro. Afinal, desde a concepção até a 22ª semana, a vítima da violência dispõe de tempo mais que suficiente para deliberar se aniquilará o feto ou se levará a gestação a termo, seja para oferecer o recém-nascido a programas de adoção, seja para criá-lo. Quanto à vedação à assistolia, nenhum trecho da legislação penal prevê a imposição de dor ao fruto inocente de um ato de abuso. Aliás, nenhuma sociedade humana livre sequer cogitaria tal dispositivo.

Contudo, não parou por aí o autoritarismo do magistrado supremo. Uma semana após a primeira canetada, proferiu uma segunda, para ordenar a suspensão de todos os processos judiciais, administrativos e disciplinares, assim como a proibição de instauração de qualquer procedimento administrativo ou disciplinar contra médicos “aborteiros”, praticantes da assistolia fetal. O novo arroubo foi ensejado pela tomada de conhecimento, por parte do togado, da indignação refletida em “manifestações populares na sede do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, bem como a “suspensão do programa Aborto Legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, repercutindo em supostas vítimas de violência.” Como é próprio a índoles autoritárias, a divergência opinativa levou o poderoso juiz a conjugar o verbo de sua preferência: “proibir” qualquer tipo de procedimento, administrativo e/ou judicial contra os médicos adeptos da prática cruel da assistolia.

A mais nova proibição do magistrado representou um acinte à própria autonomia administrativa dos conselhos profissionais, que dispõem do poder-dever de fiscalizar as condutas de seus membros. Não à toa cobram anuidades caras e mantêm estruturas próprias de colegiados voltados à apreciação das condutas de seus membros à luz das normas éticas aplicáveis àquele ofício. Como vem ocorrendo nos últimos cinco anos, cada deliberação desse potentado traz consigo uma quebra de paradigma institucional; dessa vez, foi a corporação médica, esvaziada em suas funções fiscalizatórias, já que os procedimentos disciplinares contra os adeptos de assistolia fetal se acham paralisados, à espera de deliberação do supremo tribunal. Qual será o próximo conselho a ter sua esfera de competência invadida por um ou mais togados?

A seu turno, a interdição à instauração de novos procedimentos administrativos ou disciplinares com base na Resolução do CFM consiste em novo atentado ao princípio da legalidade estrita. Ora, se, com base nessa premissa inerente a qualquer Estado de Direito, alguém só pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer por força de dispositivo de lei (aprovada no Congresso) e se não há – nem poderia haver! – qualquer norma legal impeditiva da atividade fiscalizatória de gestores públicos e de conselhos, o togado torna a se substituir à legislação em sentido estrito e a impor seus desejos como sendo a verdadeira “lei” vigente por aqui.

No país cuja cúpula judiciária vem adotando, na prática, o chamado “direito penal do inimigo” contra indivíduos adultos rotulados como “antidemocráticos”, os mais recentes “inimigos” escolhidos pelo establishment togado parecem ser indefesos fetos, poucas semanas antes de conhecerem este mundo. De fato, as decisões ora comentadas não devem ser lidas como atitudes isoladas, oriundas de uma única natureza despótica; antes, devem ser associadas a uma certa agenda ideológica que já levou uma ex-presidente da corte suprema a colocar em votação a pauta abortista e a manifestar-se favorável a esta, e que motivou o atual primeiro juiz, notório prosélito esquerdista, a incitar uma campanha da sociedade em prol do aborto.

Depois de tanto tolherem nossas liberdades opinativas e de ameaçarem nossos direitos à propriedade e à posse, os poderosos de toga dirigem sua sanha contra nascituros. Haverá algum limite a tamanha torpeza? Estarão esses figurões já tão convencidos de sua pseudo-natureza de “homens-deuses” a ponto de se sentirem empoderados o bastante para a escolha sobre quem virá ou não à luz? Não são perguntas retóricas. Pelo contrário, nossas reflexões e reações diante delas poderão definir nosso futuro próximo como uma comunidade de insetos homogeneizados ou como uma sociedade de indivíduos livres.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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