A verdadeira genealogia dos governos do Rio de Janeiro
Com o Rio de Janeiro novamente nos holofotes por cenas de violência e enfrentamento policial, a militância virtual esquerdista se pôs a bradar que o problema do Estado seria ter tido apenas governos “de direita”. Para situar o debate em seu devido lugar, impõe-se reconstruir uma autêntica genealogia do poder político fluminense.
Em primeiro lugar, deve-se identificar a existência de duas entidades distintas na maior parte do tempo: a cidade do Rio de Janeiro e o Estado do Rio de Janeiro ao seu redor. A cidade foi alçada pelo Império Português à posição de capital do Estado do Brasil nos tempos de poderio do marquês de Pombal, em 1763. Foi a capital do Reino Unido quando a Corte de dom João VI a utilizou como refúgio depois do ataque napoleônico aos portugueses. Durante o Império, a então capital do país era chamada de Município Neutro, administrada diretamente pelo governo nacional, enquanto o território vizinho — a então província do Rio de Janeiro — era, como as demais do país, comandado por “presidentes de província” nomeados pelo governo imperial, que poderiam ser oriundos de qualquer outra parte do Brasil, embora tenha havido uma elite poderosa em Campos dos Goytacazes que, por vezes, assumia o comando.
Com o golpe republicano, o Município Neutro se tornou Distrito Federal, cujo prefeito, até 1934, era indicado diretamente pelo presidente da República. A cidade se construiu, portanto, por muito tempo, com a vocação de centro político do país — uma extensão e materialização do próprio Estado nacional. Já os “presidentes estaduais” do restante do Rio de Janeiro, com capital em Niterói, eram oriundos da oligarquia local, entre nomes como o autoritário Alberto Torres e o poderoso Nilo Peçanha. Com o advento da ditadura de Getúlio Vargas, tanto a capital federal quanto o Estado do Rio foram colocados sob o tacão de interventores nomeados pelo caudilho. No território do Estado, essa dominação exerceu efeitos mais duradouros, porque a liderança do próprio genro de Vargas, Amaral Peixoto, fez com que, quando da reabertura política, em 1945, o PSD — partido que congregava a elite política do regime varguista — fosse, de longe, a força mais poderosa da região.
O governo de Juscelino Kubitschek deu o primeiro grande golpe na cidade do Rio de Janeiro, transferindo a capital para Brasília. A cidade se transformou em uma cidade-Estado: o Estado da Guanabara. Felizmente, enquanto os herdeiros do varguismo dominavam o Estado do Rio, o primeiro governo da Guanabara foi capitaneado pelo maior líder da UDN, Carlos Lacerda, que realizou administração enaltecida até hoje, mesmo por seus críticos. Lamentavelmente, após ele vieram Negrão de Lima, com apoio do governo militar, de jornais como O Globo e dos adeptos de Vargas, e Chagas Freitas. Esse último era do MDB, o partido de oposição consentida, mas mantinha relações cordiais com os donos do poder. Sua origem era ademarista, ou seja, era um aliado do antigo governador de São Paulo Ademar de Barros, ao qual foi atribuída a célebre acusação de que “rouba, mas faz”. O chaguismo se caracterizou pela exploração de uma máquina clientelista e por uma relação demagógica com o funcionalismo público, aproveitando-se da situação de uma cidade forjada para ser capital — consequentemente, para “encarnar” o Estado — e privada de sua principal função, para se impor.
No governo do gaúcho Ernesto Geisel, em 1974, tomou-se a decisão de fundir a cidade e o Estado do Rio em um único organismo político: o novo Estado do Rio de Janeiro, com o Estado da Guanabara se convertendo em sua capital. Dois organismos que, como vimos, evoluíram com identidades separadas foram amalgamados. O MDB fluminense, absorvendo o MDB guanabarino, fundiu a estrutura chaguista com o poderio das hostes de Amaral Peixoto. Era o prenúncio do desastre.
Na reta final do governo militar, sob o clima da anistia, do retorno das lideranças de esquerda e do advento da Nova República, foi a vez de outro gaúcho estabelecer momento decisivo na história do Rio: Leonel Brizola. Através dele, o PDT chegava ao poder, com sua proposta de aplicar o “socialismo moreno”, versão cabocla que misturava teses socializantes com populismo varguista. Brizola não inventou as favelas, que já existiam desde o começo da República, sucedendo os cortiços do Império. Não inventou, evidentemente, o crime. No entanto, como diria sua grande adversária Sandra Cavalcanti, pupila de Carlos Lacerda, a pretexto de direitos humanos, inibiria a ação repressiva ao banditismo, ensejando a proliferação desenfreada das favelas e sua ocupação por organizações cada vez mais sofisticadas do crime organizado.
A culpa pelo estado de coisas atual não é exclusivamente de Brizola, evidentemente. Os sucessores poderiam ter mudado o caminho. No entanto, seu DNA está inscrito na genealogia dos governos que o sucederam. Depois de Brizola, Moreira Franco, genro de Amaral Peixoto, originado da esquerdista Ação Popular, foi governador. Brizola retornou ao poder logo depois, cedendo lugar ao seu vice, Nilo Batista. O sucessor, Marcello Alencar, era brizolista de origem e trocou o PDT pelo PSDB por não conseguir indicar um aliado à sucessão, não porque tivesse experimentado uma profunda conversão ideológica — que já não seria tão profunda de qualquer maneira, pois, ressaltemos sempre, o PSDB é um partido social-democrata, não liberal clássico ou conservador. Anthony Garotinho, por sua vez, foi petista na juventude, cresceu politicamente sob a aba de Brizola e rompeu com ele por divergências nas eleições municipais, assumindo a faceta de líder populista. Sua vice era a petista Benedita da Silva, que assumiu quando ele se tornou presidenciável. Foi sucedida pela esposa de Garotinho, Rosinha. Até pelo menos 2015, a filha dos dois, Clarissa Garotinho, falava emocionada da importância de Brizola para sua família.
Por fim, antes da onda bolsonarista que elegeu Wilson Witzel, tivemos o domínio do então PMDB de Sérgio Cabral e Pezão. Cabral foi aliado de Marcello Alencar e apoiado pelo casal Garotinho. Foi também um aliado histórico dos governos do PT. Pezão, além de seu vice, foi secretário de Rosinha. Não há como tergiversar: a lista prova que todos os nomes que capitanearam o Rio estavam direta ou indiretamente ligados a uma máquina, ou cultura política que foi fabricada pelo brizolismo, fundindo-se ao peixotismo e ao chaguismo. Não há nem sinal de liberalismo ou de uma visão liberal-conservadora em nenhum desses personagens, que trafegaram entre o “centrão”, o populismo assistencialista, a social-democracia e a esquerda, sem exceções. Não houve, depois de Brizola, nenhum Lacerda, nenhum Reagan ou Thatcher tupiniquim governando o Rio. Essa cultura política explica, em boa medida, a sucessão de decadências que experimentamos.
*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.



