A vaga que não se deseja
Existe uma distinção que raramente é levada a sério no debate institucional brasileiro: a diferença entre cargos que se conquistam e funções que se suportam. Uma vaga na Suprema Corte pertence, de modo inequívoco, à segunda categoria. Não se trata de coroação profissional, nem de prêmio por serviços prestados, nem de ápice de uma trajetória pública. Trata-se de um encargo — e de um encargo que pesa precisamente porque limita.
A confusão começa quando se importa para o Judiciário a lógica própria da política eleitoral. Para governar, é preciso querer governar. O impulso de disputar, persuadir, vencer e exercer poder sobre os outros não é um desvio da democracia representativa; é parte constitutiva dela. O problema surge quando esse mesmo impulso passa a ser tratado como virtude no momento de escolher quem deverá justamente conter o poder. O desejo que impulsiona o político é o mesmo que desqualifica o juiz constitucional.
O Supremo Tribunal Federal não existe para realizar projetos políticos nem para corrigir, segundo critérios morais próprios, as insuficiências do processo democrático. Sua função, em um arranjo verdadeiramente republicano, é outra: proteger a Constituição e os indivíduos contra as maiorias de ocasião. James Madison foi cristalino ao advertir, no Federalista nº 10, que a maior ameaça à liberdade não reside apenas em governantes tirânicos, mas na ação de facções — inclusive majoritárias — quando não encontram freios institucionais eficazes.
É exatamente por isso que a lógica de escolha dos ministros não pode reproduzir a lógica de seleção dos políticos. Aqui, a ambição não é qualidade; é indício. Quem deseja intensamente ocupar uma cadeira na Suprema Corte tende a enxergá-la como instrumento. E quem vê o cargo como instrumento dificilmente aceitará, depois de investido, a disciplina silenciosa do limite. O desejo antecedente cobra juros institucionais.
O juiz constitucional, ao contrário do político, deveria experimentar certa relutância diante da nomeação. Não por falsa modéstia, mas por consciência do que o cargo exige: autocontenção, fidelidade ao texto, indiferença ao aplauso e disposição para frustrar expectativas — inclusive as próprias. A toga não foi feita para realizar vontades, mas para contê-las. Interpretar, aqui, não é criar sentido; é obedecer a um sentido previamente fixado.
Levado a sério, esse entendimento não funciona como um manifesto nem como um rol burocrático de exigências, mas como consequência lógica do próprio papel institucional do Tribunal. Quem aceita uma vaga na Suprema Corte deve fazê-lo já comprometido com algumas renúncias fundamentais: à criatividade moral, ao protagonismo retórico, à tentação de substituir o texto por intuições pessoais de justiça.
Isso implica fidelidade estrita à Constituição como limite, prática constante de contenção judicial, rejeição consciente do moralismo jurídico, decisões fundadas em lógica e método — não em preferências individuais —, comportamento sóbrio e institucional, e respeito efetivo, cotidiano, à separação de poderes. Não se trata de virtudes heroicas, mas de deveres mínimos de quem compreende que julgar não é governar. Não por falsa modéstia, mas por consciência do que o cargo exige: autocontenção, fidelidade ao texto, indiferença ao aplauso e disposição para frustrar expectativas — inclusive as próprias. A toga não foi feita para realizar vontades, mas para contê-las. Interpretar, aqui, não é criar sentido; é obedecer a um sentido previamente fixado.
Nesse ponto, a função do ministro do Supremo se aproxima mais de um sacerdócio institucional do que de uma conquista profissional. Não no sentido místico, mas no sentido republicano: aceitar o cargo significa submeter-se a algo maior do que a própria vontade. O compromisso não é com causas, agendas ou sentimentos morais do tempo presente, mas com o texto constitucional enquanto limite. Onde começa o protagonismo pessoal, termina a função republicana.
Essa ideia não surge no vácuo. Ela decorre diretamente de uma concepção republicana do constitucionalismo segundo a qual a Constituição não é instrumento de governo, mas barreira ao poder; não é programa de ação estatal, mas escudo dos indivíduos contra maiorias de ocasião e intérpretes voluntaristas.
Como sustento em A República e o Intérprete, quando o juiz passa a desejar realizar fins — ainda que apresentados como civilizatórios — ele abandona a interpretação e assume, conscientemente ou não, a posição de governante.
Por isso, a escolha verdadeiramente republicana deveria recair, sempre que possível, sobre cidadãos que não almejam a vaga. Aqueles que não a transformaram em projeto pessoal, nem em horizonte de carreira. Aqueles que compreendem que aceitar o cargo significa abrir mão do próprio querer. Quem deseja o poder tende a exercê-lo. Quem aceita o encargo tende a respeitá-lo.
Em um país acostumado a juízes que falam como líderes políticos e decidem como legisladores morais, essa proposta soa estranha — quase ingênua. Mas é justamente aí que reside sua força. A República não se sustenta sobre boas intenções, mas sobre desconfiança institucionalmente organizada. E poucas desconfianças são tão saudáveis quanto esta: a de que quem quer demais o poder raramente é quem melhor sabe limitá-lo.
Talvez seja hora de levar essa ideia às últimas consequências. A vaga no Supremo não deveria seduzir. Deveria pesar. E só deveria ser aceita por quem, ao recebê-la, entende que não está chegando ao topo, mas assumindo um fardo — aquele que consiste em dizer o que a Constituição é, e não o que ela deveria ser.
*Leonardo Corrêa – sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela University of Pennsylvania, Co-Fundador e Presidente da Lexum e autor do livro A República e o Intérprete — Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores.
*Artigo publicado originalmente no site Lexum.



