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A pílula da ilusão

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Muitos brasileiros conseguem intuir, pela vasta experiência, que é sempre bom desconfiar de políticos e de seus atos, porém, incoerentemente, parecem viver na ilusão de que “os políticos não prestam, mas o governo pode me dar tudo”. Essa visão é inaceitável, por ser logicamente equivocada. Se os políticos nos inspiram desconfiança, como podemos confiar no governo, ou, mais amplamente, no Estado, sabendo que ambos são controlados direta ou indiretamente pelos políticos? É um contrassenso. A verdade é que precisamos de todos — dos políticos, do governo e do Estado —, mas precisamos tê-los sempre sob o nosso controle, para não corrermos o risco de nos devorarem.

Para explicar essa afirmativa, que tal voltarmos ao início de tudo? Desde que passou a viver em sociedade, o homem percebeu que se via obrigatoriamente diante de um dilema. Na metáfora de Homero, ele deveria navegar entre dois monstros, alojados um de cada lado do Estreito de Messina, que liga os Mares Tirreno e Jônico e separa a Calábria da Sicília: Scylla, que usava suas seis cabeças para atacar quem estivesse no convés, e Charybdis, uma criatura protetora do mar que provocava turbilhões para afundar qualquer embarcação. Ou seja, nossos ancestrais mais remotos se defrontaram com uma escolha bastante difícil: viver em isolamento, o que lhes garantia liberdade total, mas lhes vedava desfrutar as vantagens da divisão do trabalho e, por isso, limitava o progresso; ou viver em grupos, em pequenas sociedades primitivas, o que lhes restringia a liberdade, mas gerava incontestáveis benefícios, entre os quais a segurança.

A fórmula encontrada para conciliar o impasse foi criar uma espécie de acordo ou consenso comunitário, que implicava cessão de parte da sua liberdade em troca de garantias aos direitos individuais básicos, para que os mais fortes, inteligentes, capazes e perspicazes não dominassem os mais fracos, néscios, incapazes e broncos, o que resultaria na concentração do poder em mãos de poucos. Essa é, em síntese, a origem do Estado e de seu braço executivo, o governo: para evitar que alguém ou algum grupo se transformasse em opressor dos demais, nossos antepassados optaram por viver em sociedades, e isso os levou a aceitar a existência de um ente teoricamente neutro, equidistante e preocupado em zelar pelos interesses de todos, pelo dito bem comum dos cidadãos. Belas palavras, sem dúvida, e muitas pessoas acham bonito descrever esse acordo tácito como contrato social. (Porém, se você se der ao trabalho de pesquisar na internet e em todos os cartórios, duvido que encontre esse documento escrito, com assinaturas e firmas reconhecidas.)

Conquanto a maneira de conciliar o referido dilema seja bastante antiga, a hipertrofia que o Estado experimentou, especialmente a partir do século 20, fez com que aquele ente que nascera para prevenir um mal — o abuso de poder pela força física por parte de poucos indivíduos — acabasse produzindo outro, maior: a concentração de poder político, econômico e cultural em suas mãos. Liberais clássicos e minarquistas (nome que se dá aos defensores do Estado mínimo) não advogam que o Estado não deve ser “forte” e muito menos desejam extingui-lo, mas entendem que a extensão de seus poderes deve ser severamente limitada, uma vez que seu ethos não pode ser separado do respeito à liberdade individual responsável como um bem natural e ligado ao supremo direito à vida, o que nos conduz à defesa do papel que a lei deve desempenhar para garantir a liberdade e os direitos de todos. Para os liberais clássicos, o Estado deve ser contido tanto quanto possível, limitando-se à manutenção de instituições indispensáveis e, além disso, as regras que o regem devem ser estabelecidas como normas gerais de justa conduta. Quando os comandos ou ordens prevalecem sobre a lei negativa — a common law —, os cidadãos tornam-se servos do Estado e caem no que Hayek chamou de caminho da servidão.

Tendo essa necessidade fundamental de comedimento do poder em mente, é importante refletirmos sobre cinco pontos a respeito da natureza do Estado: 1) a tese de que “o governo somos nós”, em decorrência do poder do nosso voto, na prática, é questionável e na verdade contém um forte componente retórico; 2) o Estado não é uma associação voluntária, como um clube ou um sindicato, mas uma organização que procura manter o monopólio do uso da força e da coerção em uma determinada área territorial; 3) tampouco é verdadeira a noção, algo mística, de que o Estado é uma grande “família humana”, que se reúne aos domingos em torno da mesa de almoço para solucionar os problemas de todos: na verdade, nada nos impede de enxergá-lo também como um canal legalizado para a apropriação, mesmo que parcial, da propriedade privada, uma instituição natural fundamental e anterior à sua própria criação; 4) é falaciosa a ideia, ingenuamente difundida entre economistas, políticos e intelectuais ditos progressistas, de que o Estado, sempre que intervém na economia e na nossa vida, o faz movido por boas intenções e “motivos superiores”, corrigindo falhas do mercado desalmado e preocupado permanentemente com o bem de todos; e 5) o Estado é composto de seres humanos e, portanto, reflete suas fraquezas, entre as quais a de se interessar mais por assuntos de alcance particular e pela preservação do poder do que pela busca do bem comum.

Por esses motivos, que parecem ser incontestáveis — noves fora a credulidade ingênua e a necessidade de negá-los para preservar ou ganhar poder —, as instituições devem ser modeladas com o objetivo de garantir a contenção do poder do Estado sobre os indivíduos. Convido o leitor a refletir sobre o que escrevi acima e acredito que chegará à conclusão de que o Estado não é nosso dono, nem tampouco nosso pai ou tutor; é nosso empregado e, além disso, vive às nossas custas. No dia em que os cidadãos chegarem à constatação tão simples de que o mecanismo de poder cerceia as suas liberdades, teremos o mundo que as pessoas de bem e que prezam a vida, a liberdade e a propriedade almejam.

A democracia não pode ser encarada como um fim, e sim como um meio — imperfeito, mas sem dúvida o melhor até hoje encontrado — para garantir os direitos dos cidadãos e protegê-los dos predadores habituais, os dragões do poder.

Os liberais têm razão quando colocam em primeiro plano que em regimes efetivamente democráticos as instituições devem contemplar mecanismos fortes de contenção do poder. Hayek analisou esse problema talvez melhor do que qualquer outro e não estava se referindo apenas a ditaduras, uma vez que existem democracias em que há uma concentração exagerada de poder. Quando isso acontece, as instituições e o próprio contrato social precisam ser revistos. E esse é nitidamente o caso do Brasil destes dias estranhíssimos que estamos vivendo. É impossível negar que os Três Poderes estão falhando em assegurar o que minimamente deles se espera e se deve exigir e que, portanto, o sistema como um todo está carecendo de ajustes, uma vez que o desejável balanceamento dos famosos freios e contrapesos não está prevalecendo e que estamos assistindo a uma concentração de poder em pouquíssimas mãos como jamais aconteceu em toda a nossa história. Não estou me referindo apenas ao Judiciário, mas também ao Legislativo e ao Executivo. Estamos diante de um problema sério.

A democracia não pode ser encarada como um fim, e sim como um meio — imperfeito, mas sem dúvida o melhor até hoje encontrado — para garantir os direitos dos cidadãos e protegê-los dos predadores habituais, os dragões do poder. No entanto, para que desempenhe satisfatoriamente as suas finalidades, precisa de arranjos institucionais adequados, para que não seja um simples rótulo, tal como, por exemplo, na antiga República Democrática Alemã, ou na República Popular Democrática da Coreia, nomes bonitos para ditaduras comunistas.

No filme Matrix há uma famosa cena em que o personagem Neo é levado a escolher entre tomar uma pílula azul e manter-se vivendo na ilusão ou tomar uma pílula vermelha (red pill) e defrontar-se com a realidade. Dada a baderna institucional que estamos presenciando no Brasil, quem acredita que estamos vivendo em uma democracia plena está sinalizando claramente — por ingenuidade, problemas sérios com neurônios ou por simples acomodação — que escolheu a pílula azul. Basta acompanhar o dia a dia para detectar a presença de uma grande crise nas instituições e concluir que o melhor que se pode dizer de nossa democracia é que é “relativa”.

É preciso frisar o papel vergonhoso da velha imprensa, ao incentivar incansavelmente o consumo da pílula azul da fantasia, quando afirma que está tudo normal; que a Constituição está sendo respeitada; que a nossa democracia é “pujante”; que o povo está bem representado; que se algo está errado é por culpa exclusiva da “extrema direita” (expressão que esfrega despudoradamente na cara de quem quer que não se alinhe ao que classifica como “progressismo”); que a economia está em ordem; que não existe doutrinação política nas escolas e universidades; que não existe perseguição a opositores nem a jornalistas; e que não há pessoas mantidas em custódia por razões políticas. Existe um esforço enorme de desinformação, que equivale a intoxicar a população com a pílula azul, levando-a a crer que a concentração desproporcional de poder em pouquíssimas mãos que se pode constatar diariamente é a coisa mais natural do mundo.

Para um viciado, ou melhor — para sermos politicamente corretos —, para um “usuário” de pílulas azuis, não há nada de errado com a ingerência permanente do Judiciário em assuntos que nem remotamente lhe dizem respeito; com inquéritos que muitos juristas vêm classificando há bastante tempo como ilegais; com cassações de mandatos populares; com filigranas que desviam sutilmente o texto constitucional; com apreensões sumárias de passaportes e bloqueios de contas de jornalistas; com prisões em massa; com julgamentos coletivos sumários; e com várias decisões monocráticas estapafúrdias.

Tampouco, para quem escolheu a pílula azul, não há qualquer problema na concentração descomunal de poder nas mãos dos presidentes das duas Casas do Legislativo, que têm a permissão de decidir a seu bel-prazer o que vai ser ou não votado e quando e como vai ser votado; que engavetam todas as demandas que podem ameaçar os seus projetos políticos, mesmo as de interesse da população; e que aceitam submissa e passivamente intromissões dos outros dois Poderes na seara que a Constituição lhes atribui exclusivamente. Também não há nada de equivocado com a extravagância de três dezenas de partidos políticos sugadores de fundos pagos com o nosso dinheiro e sem qualquer compromisso doutrinário; e, ainda, com o inacreditável mecanismo do voto proporcional.

Não há também motivos para preocupação quando o Executivo trata as instituições do Estado como se lhe pertencessem; quando por pura ideologia se posiciona favoravelmente a grupos terroristas como o Hamas; ou declara amor eterno a ditadores carniceiros; ou se gaba da escolha de comunistas para ocuparem altos cargos; ou protagoniza, à revelia dos eleitores, espetáculos deprimentes como o da semana passada na Amazônia, com aquele passeio ridículo no mato de dois chefes de Estado, em comemoração à rendição do governo à agenda globalista representada pelo presidente francês.

A aceitação passiva de tantas anomalias é uma manifestação indiscutível dos efeitos da pílula azul, que dá magicamente o caráter de bênção à blasfêmia, de sapiência à ignorância, de verdade à mentira, de normalidade à loucura, de legal ao inconstitucional, sempre em nome da democracia da jabuticaba.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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